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Abellio – "etapas" na co-constituição sujeito-objeto

sexta-feira 10 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Na visão do filósofo Raymond Abellio   (1965, 1981 e 1989), um processo mais denso e complexo se dá na constituição de um objeto técnico, que é o processo de gênese ou de instituição do “eu” que deste objeto se apropria. Um processo em que “sujeito” e objeto técnico se configuram, sob tensão permanente, como polos de uma díade, em co-gênese mútua. Em outras palavras, “eu” e técnica são, neste processo, o zênite e o nadir, ou seja, os extremos de um eixo ordenador na gênese e desenvolvimento de ambos.

Esse processo, cujas etapas respondem pela instituição do “eu” e pela constituição do objeto técnico, simultaneamente, responde também pela ascensão progressiva da Razão a um determinado lugar e papel, no indivíduo e na sociedade.

Dado o próprio caráter “iniciatório” do processo de instituição do “eu”, Abellio identifica suas etapas a “ritos de passagem” nesta gênese. Usando, com reservas, uma terminologia religiosa, Abellio denomina as etapas desta gênese “sacramentos”, que etimologicamente diríamos que podem significar “fazimentos sagrados”, parafraseando Darcy Ribeiro.

Assim sendo, entre o momento da etapa de concepção e o da etapa de nascimento, quer dizer durante a gestação propriamente dita, segundo Abellio, faço parte das “águas indiferenciadas” no seio de minha mãe. Não sou “ser-no-mundo” mas “ser-antes-do-mundo”. Embora apenas indicativa, pode soar confusa esta colocação de Abellio, pois se apropria de uma expressão de Heidegger  , “ser-no-mundo”, que poderia ser aplicada a todos os “rituais de passagem” analisados por Abellio, dependendo do entendimento que se tenha de mundo, mundanidade.

Para Abellio, cabe aí uma questão: que “eu” é este que aqui fala e que tem ele de comum com este outro “eu”, imerso nas “águas indiferenciadas”? De imediato deparo com a contradição ou ilusão de toda explicação genética, que não poderia jamais ser uma explicação radical, na medida que se apoia sempre sobre o saber atual disto mesmo que a gênese deve explicar. De imediato, me vejo tratando do inacabado em termos de acabado, e digo inocentemente: eu fui ou eu sou, enquanto eu resto a ser.

É um fato: o “eu” que aqui fala é o “eu” atual, tal qual se tornou e ainda se torna. Ele apenas lança um olhar objetivante, e, por conseguinte, alienante, sobre este embrião de onde veio e cujo olhar próprio ele, daqui onde se encontra, não pode afirmar conhecer. Embrião cujo “mundo”, “mundanidade própria”, de onde observo, desconhece por completo. E nada, com efeito, não me permite dizer que o embrião também não tenha também seu olhar, embora este seja para este eu aqui e agora, como se jamais tivesse sido, ou, pelo menos esteja encoberto por camadas e camadas de novas vivências.

Assim, toda reserva deve ser feita desde o inicio sobre o caráter imperfeito da visão deste “eu”, que é, pode-se dizer, duplamente inocente, no sentido que é inocentemente objetivo, pois “vê”, de fora, o embrião do qual originou, como um objeto banal semelhante a todos os embriões humanos, e também uma visão inocentemente subjetiva, pois se associa a uma visão “histórica”, provavelmente provisória e em todo caso localizada e limitada ( Abellio, 1965, p. 37 ).

Dessa maneira, segundo Abellio, percebe-se que todo discurso radical sobre a gênese do “eu”, ou seja, sobre sua plena instituição, em sua dimensão espacial e temporal, será, portanto, um convite a nos fazer sair da objetividade e da subjetividade ingênuas, e pode-se mesmo pensar que esta necessidade que temos de reconhecer em tudo que vemos, estruturas invariantes, e mesmo esta confiança intuitiva que temos no termo estrutura, indicam uma certa crença na possibilidade de “ir além” das aparências.

Retomando as etapas ou os sacramentos, definidos por Abellio, temos primeiramente, a “Concepção”, enquanto evento que me constitui como “ser-no-mundo”, porém um mundo ainda pouco diferenciado no seio de minha mãe, guardando uma certa analogia com as “águas indiferenciadas” do Gênesis bíblico.

Ao final da gestação tem lugar a segunda etapa, o “Nascimento”, por meio do qual se dá meu posicionamento diante do mundo, criando a primeira distancia, o primeiro Mit-sein (ser-com) sem que “eu” o saiba, obrigatoriamente. Meu nascimento é uma abertura da transcendência diante de todos os olhos que me cercam, embora ainda não o seja, para os meus próprios olhos.

Durante a infância o poder separador de meus sentidos desenvolve-se, gradativamente ampliando minha distância do mundo, em outros termos, intensificando esta transcendência iniciada com o Nascimento. Nas águas indiferenciadas, nenhuma separação me era perceptível; a vida de minha mãe era minha vida, sua morte geralmente minha morte, e meu “eu”, neste caso se dissolvia no dela.

O Nascimento significa uma separação, fundando o mundo “para-mim”, mas ainda de forma difusa, sob meu olhar ainda despreparado, pois para meus sentidos, que começam a “tatear”, e que nem reconheço ainda como meus, este mundo ainda mal me pertence. Vejo uma série de modos mais e mais complexos do mundo; não há apenas um mundo, mas uma série indefinida de “modos” do mundo.

Neste sentido, o sacramento seguinte, o “Batismo”, seria a etapa na qual, justamente, me torno consciente de meus sentidos. Onde adquiro a capacidade de perceber que percebo e onde uma relação é assim conscientemente percebida por mim, entre “eu” e mundo. Ou seja, quando desperta a consciência das sensações, ou dos próprios sentidos, mediadores entre sujeito e objeto, e uma relação passa a ser conscientemente percebida entre homem e mundo de objetos.

No Batismo, intensifica-se a consciência da relação sujeito-objeto, em detrimento da antinomia de seus polos (sujeito e objeto), em outros termos, reconhece-se, mais e mais, que a noção de objeto guarda sempre subjacente a si, a de sujeito, e vice-versa.

A etapa seguinte, a “Comunhão”, intensifica a experiência do “Batismo”. Por meio dela, aprofunda-se mais essa “percepção da percepção”, transfigurando a relação sujeito-objeto de tal maneira, que tem início uma nova percepção: a de sujeito em um mundo de sujeitos, e não apenas de objetos. De fato, manifesta-se um novo modo de presença do “eu” e de atuação da Razão, que permite ao ser humano reconhecer também a importância da intersubjetividade na continuidade da gênese do “eu”; agora assegurada pela postura de sujeito, em um mundo de sujeitos...

Segundo Abellio, as etapas não são todas obrigatoriamente percorridas, até sua conclusão, a plena instituição do “eu”. Da mesma forma, as passagens de uma para outra não são instantes, mas transcursos. Segundo uma visão justa, não existiria qualquer gênese linear, pois tudo estaria se dando ao mesmo tempo, o que tornaria impossível todo discurso e mesmo toda denominação, obrigatoriamente sujeitas a linguagem, em seu percurso linear de natureza espaço-temporal. Com efeito, para Abellio, nomear é estabelecer, ao mesmo tempo, não apenas um espaço de conexões, mas também caminhos e um tempo de percurso, nestas mesmas conexões.

Das águas indiferenciadas até a instituição do “eu”, pode-se notar que tudo que percebemos, ou imaginamos, ou pensamos, não é o que somos radicalmente, enquanto pura subjetividade. Não somos estes objetos que percebemos, não somos as imagens que se oferecem, não somos as noções que pensamos, nem o discurso que sustentamos. Como pura subjetividade, profere-se “eu”, e em seguida, percebe-se, imagina-se e cogita-se, alguma coisa, que é objeto em relação a este “eu”, ou seja, em relação a este princípio radical de cada subjetividade, este ato de ser. (Allard l’Olivier  , 1977 )

Quanto à constituição progressiva, após a etapa de “Concepção”, do chamado “ob-jeto”, entendido como “aquilo-posto-adiante” do “eu” (este último sendo o princípio radical que atribui existência ao objeto), é preciso compreender que este objeto é sempre definido (nomear um objeto, com efeito, é torná-lo uma ferramenta, nem que seja um instrumento de linguagem; mas a utilidade nada mais é que uma banalização da verdade, ela não revela o objeto ou o ente enquanto tal), no seu ser, pelo estabelecimento de um conjunto aberto de relações, lhe conferindo funcionalidade, utilidade, mas sem revelá-lo em todo seu ser, que também guarda em si o mistério de meu próprio ser, enquanto subjetividade pura. Esta relação que une subjetividade pura ou radical a objeto, pode ser denominada intenção, como preconiza Husserl  ; o ser desta intenção, o ser do objeto e o ser do sujeito, a subjetividade, se configuram, portanto, como momentos ou modalidades da intencionalidade (“A intencionalidade sendo a relação sujeito-objeto, não se deixa atribuir a qualquer dos dois termos da relação.” ( Fink  , 1952, p. 75 ]] (Allard L’Olivier, p. 47 ).

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ALLARD l’OLIVIER. L’illumination du coeur. Paris: Ed. Traditionnelles, 1977
FINK, Eugen. L’Analyse intentionnelle et le problème da la pensée spéculative. Paris: Desclée de Brouwer, 1952