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Antonio Carlos Carvalho: A Nova Cavalaria

sexta-feira 29 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Antonio Carlos Carvalho — O Triângulo Místico Português

A HERANÇA DE SÃO BERNARDO
Regressemos agora a Portugal, para vermos como as coisas se passaram por cá.

São Bernardo é filho de nobres da Borgonha.

Da Borgonha vêm também dois outros nobres, primos, Raimundo e Henrique, os quais vão casar-se, respectivamente, com Urraca e Teresa, filhas de Afonso VI, senhor de Leão, Castela e Aragão, e também da Galiza e do então Condado Portucalense. Afonso VI era igualmente genro de Roberto I de Borgonha.

Graças a esses casamentos, abençoados por São Bernardo, a Borgonha ficará ligada às principais famílias nobres da Península Ibérica. E a sombra protetora daquele que foi o último Padre da Igreja no Ocidente, São Bernardo de Claraval  , estender-se-á mais concretamente até este extremo ocidental da Europa, enviando ao futuro reino de Portugal os seus dois mais importantes agentes fomentadores de espiritualidade cristã: a Ordem dos monges de Cister e a Ordem dos cavaleiros-monges do Templo.

Os monges de Cister trazem consigo para Portugal o estilo românico, que aqui se traduzirá em grandes catedrais, verdadeiras fortalezas de poder temporal e de autoridade espiritual que assinalam simultaneamente a presença de um bispo, ícone de Cristo, e os primórdios de um Estado que começa a nascer. Em tempo de paz (sempre relativa, claro, porque os mouros estão à porta), são locais de culto e de oração; em tempo de guerra e de duros combates, transformam-se em cidadelas onde as populações vizinhas encontram abrigo.

Este estilo românico aparecia caracterizado por uma grande austeridade, refletindo, assim, o ambiente da Ordem de Cister, que se opunha ao luxo de Cluny. A austeridade dos monges de hábito branco — simbolizando a sua devoção muito especial à Virgem, a Toda Pura — correspondia à própria severidade das construções a que davam origem: as igrejas e os mosteiros cão têm pinturas nem esculturas, nem vitrais nem pavimentos coloridos — nada ali se encontra que possa distrair a atenção dos monges, totalmente dedicados à sua missão transcendente de obreiros do Reino de Deus.

Os mosteiros da Ordem, além de possuírem igreja, claustros, celas e refeitório dos monges, incluem, igualmente, salas de estudo e meditação, bibliotecas, armazéns e oficinas de ofícios agrícolas e mecânicos, os quais contribuem para que a comunidade monástica se torne auto-suficiente. Por toda a parte circula água em abundância, fecundando e purificando as terras, os lugares e os homens. Situados em lugares especialmente escolhidos do território, estes mosteiros da Ordem de Cister serão verdadeiros centros de povoamento material e espiritual.

Basta ver, a este respeito, a importância excepcional de Alcobaça na construção de Portugal.

O prof. Veríssimo Serrão, na sua «História de Portugal», dirá:

«Quando dá tomada de Santarém, em 1147, D. Afonso I fizera o juramento de mandar erguer, em caso de vitória, um grande mosteiro que englobasse o conjunto de terras entre a serra de Albardos e o oceano. Nasceu assim Alcobaça, por carta de doação e couto de 8 de Abril de 1153 [1], a favor dos monges de São Bernardo. Uma nova realidade surgiu na vida política e econômica do Reino — na expressão de Dom Maur Cocheril, «a capital do império cisterciense de Portugal».

«Até ao fim do séc. XII são muitas as doações que o mosteiro recebeu, bastando citar a isenção em todo o Reino do pagamento de portagem na compra e venda de produtos, a mercê da propriedade regia entre os castelos de Leiria e de Óbidos, o paul da Ota, o Castelo de Benafecim, no Algarve, e o mosteiro de Seiça. No testamento de D. Sancho II doava-se ao mosteiro as vilas de Porto de Mós e de Cornaga, esta no termo de Óbidos, assim como o porto de Salir. Os interesses do mosteiro alargaram-se a outras zonas do Reino, graças a constantes doações dos nossos monarcas. Tal foi o caso da igreja da Golegã e do reguengo de Beringel, no termo de Beja».

«O domínio alcobacense abrangia toda a região que vai de São Pedro de Muel à Lourinhã e, para o interior, até à serra de Candeeiros e a Rio Maior. Área superior a 60 mil hectares, os coutos englobavam 14 vilas, quatro portos de mar e dois pauis onde os monges exerciam a autoridade, cobravam impostos e detinham o monopólio da vida econômica. Constituía, pois, um extenso latifúndio e era, sem dúvida, a terra agrícola mais produtiva no conjunto do reino».

«Eram famosas as granjas de Alcobaça, no dizer de Joaquim Vieira Natividade, que as definiu no aspecto agronômico e social como «escola geral de todas as atividades agrícolas e de todas as indústrias anexas». Nelas se procedia ao cultivo de cereais, frutos, Unho, azeite. Não eram só os monges que se dedicavam à exploração dos produtos da terra, como agricultores, oleiros, pastores, ferreiros e pescadores, porque o mosteiro concedia forais ou cartas de povoação aos colonos que queriam fixar-se nos coutos. Também havia os monges encarregados do comércio, para a compra e venda dos produtos. Frei Fortunato de São Boaventura   sintetiza em cinco pontos a colossal perícia dos monges de Alcobaça em tirar ferro das minas, secar pântanos, dirigir moinhos, explorar a terra e animar a indústria.»

São Bernardo envia também os cavaleiros-monges da Ordem do Templo, que ajudara a fundar e que continuavam a seguir a sua direção espiritual. Estes incansáveis lutadores vão-se tornar essenciais na reconquista e no povoamento do território, guardando com os seus corpos e as suas armas as árvores espirituais que a Ordem de Cister vai plantando em Portugal.

Efetivamente, a 19 de Março de n 28, ou seja, cerca de dois meses depois do concilio de Troyes, já referido, D. Teresa, a mãe do primeiro rei de Portugal, confia o castelo de Soure, guarda avançada da defesa cristã, aos cavaleiros Templários, cujo primeiro Mestre português será Pedro Arnaldo.

E em 1147 estes cavaleiros ajudam a conquistar Santarém, bastião estratégico sobre o rio Tejo; em recompensa da sua ajuda, D. Afonso Henriques faz-lhes doação dos rendimentos eclesiásticos da cidade.

Depois, em 1157, Gualdim Pais é eleito Grão-Mestre da Ordem em Portugal.

Quem é este Gualdim Pais ?

Natural de Marecos, Amares, perto de Braga, filho de nobres, é um dos companheiros de armas de D. Afonso Henriques, e por este é armado cavaleiro aos vinte e um anos, na batalha de Ourique (assinalada por um milagre, segundo a tradição popular: Cristo teria aparecido ao rei, assegurando-lhe a vitória), travada no dia de São Tiago, 25 de Julho de 1139.

Parte, depois, a caminho da Teria Santa, ao lado dos cruzados, e ali se torna cavaleiro da Ordem dos Templários. Participa na tomada de Ascalona, no cerco de Gaza e na rendição de Sidon.

Terminada a sua missão na Palestina, regressa a Portugal trazendo consigo a honra e a glória dos cavaleiros do Templo e também algumas relíquias — entre elas, segundo reza a tradição, um braço de São Gregório de Nazianzo, um dos maiores padres da Igreja una e indivisa, considerado um dos três pilares da Ortodoxia, e (o que nos parece particularmente significativo pelo seu simbolismo) precisamente aquele que transmitiu à Tradição da Igreja de Cristo a designação da Virgem como «Mãe de Deus» («Theotokos»): «Se alguém não crê que Santa Maria é a Mãe de Deus, está fora da Divindade.»

Essa preciosa relíquia ficará guardada em Tomar, influindo na própria toponímia local.


[1Os cronistas datam a sua fundação de 2 de Fevereiro de 1148, portanto ainda em vida de São Bernardo, mas a crítica histórica prefere situá-la em 1153.