Nasceu em 570 a.C. e morreu em avançada idade. Fugindo da invasão persa, deixou Cólofon aos vinte e cinco anos, partiu para a Grécia, depois foi para Eleia e Siracusa. Levou uma vida errante, recitando poemas, e foi talvez um rapsodo. Muito pobre, escreveu epopeias sobre a fundação de Cólofon e Eleia. Ficaram-nos apenas alguns fragmentos das suas Elegias e dos seus Silos (isto é, sátiras). Uma tradição atribui-lhe, igualmente, um poema, Da Natureza. Ridicularizou Pitágoras, conheceu, talvez, Anaximandro de Mileto e foi considerado por Heráclito como um erudito desprovido de inteligência (fgt. 40).
Fez-se dele, muitas vezes, o fundador do eleatismo, mas, desde a Antiguidade, é por alguns considerado um céptico, com base no fragmento 34: «Nunca houve nem nunca haverá um homem que tenha um conhecimento certo dos deuses e de tudo aquilo de que eu falo. Se, mesmo por acaso, lhe acontecesse dizer toda a verdade, nem disso se daria conta. Todos se apoiam na aparência (dokos).»
Na realidade, parece que, talvez pela primeira vez na filosofia grega, Xenófanes opõe o saber à aparência, atribuindo aos deuses o conhecimento verdadeiro e aos homens a conjectura. Não afirma no fragmento 18: «Os deuses não revelam todas as coisas aos homens desde o princípio, mas estes, procurando ao longo do tempo, conseguem melhores descobertas?»
Dois testemunhos, diversamente interpretados, é verdade, fazem de Xenófanes o fundador da escola eleata. Por um lado, o de Platão, que escreve: «A seita eleática, proveniente de Xenófanes e de mais atrás ainda, vê apenas unidade no que denominamos o Todo.»1 Por outro lado, o de Aristóteles, que faz de Xenófanes o mais antigo partidário da unidade e o mestre provável de Parmênides2. Sem cair em querelas de estéril erudição e sem subestimar as dificuldades, parece poder ver-se em Xenófanes senão o verdadeiro fundador da escala de Eleia ao menos um inspirador possível de Parmênides, e cujas ideias podem esquematizar-se assim.
Há um ponto acerca do qual textos e críticos não podem deixar qualquer dúvida: é que Xenófanes foi o fundador da primeira tentativa de desmitologização. Não cessa de denunciar as concepções antropomórficas e caricaturais que os homens fazem de Deus. Primeiro, escandaliza-se com as narrativas de Homero e Hesíodo, que «atribuíram aos deuses todas as coisas que, entre os homens, são objecto de opróbrio e vergonha: roubos, adultérios, intrujices recíprocas» (fgt. 11). Depois, acentua que os homens fazem os deuses à sua própria imagem: «Os mortais figuram-se que os deuses são engendrados como eles, têm vestes, voz e forma semelhantes às suas.» (fgt. 14) As representações dos deuses são todas relativas aos que lhas atribuem e, por isso,
«os Etíopes representam os seus deuses negros e com um nariz achatado, enquanto os Trácios dizem que os seus têm olhos azuis e cabelos ruivos» (fgt 16). Mais ainda, pode-se dizer que «se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e se, com essas mãos, pudessem pintar e criar obras de arte como fazem os homens, os cavalos pintariam as formas dos deuses semelhantes às dos cavalos, os bois pintá-las-iam semelhantes às dos bois e fariam os seus corpos, cada um segundo a sua própria espécie» (fgt. 15).
Esta desmitologização é acompanhada de tal concepção positiva de Deus que alguns pretenderam ver em Xenófanes o primeiro pensador grego verdadeiramente monoteísta. As coisas são, todavia, mais complicadas do que parecem. Xenófanes fala mesmo de «um só Deus» (fgt. 23), mas diz que é «o maior entre os deuses e os homens» (fgt. 23). E nas Elegias escreve que «é preciso que os homens celebrem os deuses com cantos alegres, mitos sagrados e palavras puras». Aquele que ofereceu libações e dirigiu orações «não cantará os combates dos Titãs, nem dos Gigantes ou Centauros – invenções dos homens de outrora – nem os tumultos das guerras civis, nas quais não há nenhum bem, mas será sempre cheio de respeito para com os deuses» (fgt. 1). Tais fórmulas pode riam fazer crer num certo politeísmo. Parece que a afirmação de que se deve falar num Deus único não está em contradição formal com as que falam de deuses. Com efeito, é provável que os deuses de que fala Xenófanes sejam apenas personalizações das forças naturais que haviam já conduzido Tales a afirmar que «tudo está cheio de deuses».
Seja como for, Xenófanes acentua que o Deus único não se assemelha aos homens nem pela forma, nem pelo pensamento (fgt. 23) e é «todo olhos, todo pensamento, todo ouvidos» (fgt. 24) e «sem esforço governa todas as coisas pela força do seu espírito» (fgt. 25).
Xenófanes afirmou a unidade de todas as coisas, a Unidade e unicidade do Ser, ideias que estarão no cerne da doutrina eleática formulada por Parmênides. A forma do Deus de modo nenhum se assemelha à do corpo humano e a doxografia posterior a Xenófanes fornece-nos algumas precisões sobre o corpo divino. Diz-nos que o corpo divino é esférico, idêntico em todas as direções, imóvel, eterno, não engendrado, finito e uno3. 0 corpo divino não é mais que o Universo onde os mortais habitam. Mas ainda aqui se encontra uma dificuldade, no fragmento 28: «O limite da terra, em cima, vêmo-la a nossos pés em contacto com o ar; mas, em baixo, estende-se sem limite.» Contradiz, pois, a ideia de que o mundo é finito. Burnet aventa a hipótese seguinte:
«A história de Úrano e Gaia era sempre o escândalo principal da Teogonia, e o ar, aqui, desembaraça-nos de Úrano. Quanto à terra, se se estende em baixo até ao infinito, liberta-nos do Tártaro, que Homero situava no extremo limite desse lado, tão afastado por baixo do Hades como o céu é elevado por cima da terra. Isto não passa naturalmente de uma conjectura.»4
Outra interpretação é a de Félix M. Cleve, que pensa que Empédocles, que nos transmite tais considerações de Xenófanes, criticando-lhe a inconsequência, não compreendeu o que o seu predecessor queria dizer. Cleve pensa que o universo se compõe de um hemisfério de ar superior, de um hemisfério inferior feito de terra e de uma superfície de contacto entre os dois hemisférios, feita de água e de terra. Quanto à esfera propriamente dita, situa-se no «infinito» que a envolve5. 0 Deus único, cujo corpo é esférico, «mora sempre no mesmo lugar, sem fazer o mínimo movimento e não lhe convém mover-se para um lado ou para o outro» (fgt. 26). No entanto, se este Deus não se move e permanece em repouso, tese que será eminentemente parmenidiana, o devir não é dele excluído, mas realiza-se no seu seio. É ele quem governa todas as coisas e a transformação dos elementos opera-se no coração do Ser. Não há, pois, um devir do Ser, mas um certo devir no Ser.
Um fragmento de Hipólito precisa em que sentido deve entender-se que todas as coisas que nascem e crescem são de terra e de água (fgt. 29). Produz-se uma mistura da terra e do mar, de tal maneira que aquela é dissolvida por este. A descoberta de peixes e plantas fósseis nas pedreiras de Siracusa, em Paros e em Malta mostra que «todos os seres humanos foram destruídos quando a terra foi tragada pelo mar e se transformou em lodo».
Finalmente, a ideia central de Xenófanes é que todas as coisas são uma; se o Deus dirige todas as coisas (kradainei, fgt. 25) não deixa de ser menos único, imóvel e em repouso em si próprio. É por isso que Aristóteles chamava a Xenófanes «o primeiro adepto do Uno».
E não descortinamos uma mensagem sempre atual no fragmento 3, onde Xenófanes se lamenta de ver os seus concidadãos aprender com os Lídios maneiras efeminadas e sem utilidade, de os ver, antes de terem sido submetidos à escravidão pelos Persas, dirigir-se à praça pública com vestes de púrpura, cheios de vaidade, pintados de maneira espampanante e encharcados de perfumes? Ou quando deplora que a sua cidade conceda mais honras aos campeões do estádio do que aos filósofos, capazes de ensinarem aos seus concidadãos a governar-se melhor (fgt. 2) ?
ARISTÓTELES, Metafísica, I, 986 b 21. ↩
Cf. 21 A 1; 21 A 28; 21 A 31; 21 A 33; 21 A 35; 21 A 36. ↩
J. BURNET, L’aurore de la phisolophie grecque, trad., p. 139. ↩
Felix M. CLEVE, The Giants of Pre-Sophistic Greek Phylosophy, t. I. p. 11. ↩