OS ESCRITOS DE URIEL
Não nos é fácil aceitar a tabuada, geralmente aceite, de Uriel ter escrito quatro livros . Ele o diz, com efeito, de modo a levar a crer que escreveu, nanja que publicou, três livros. Ao chegar a Amesterdão, e ao cabo de alguns meses, portanto ainda no decurso de 1616, Uriel da Costa já se encontra de candeias às avessas; senão com o judaísmo, pelo menos com o Rabinato. É curioso que um homem, recentemente chegado à escola onde deveria aprofundar a sua primária conversão, e onde dispunha de condições para levar esse aprofundamento por diante (aprendizagem do hebraico, sujeição da formação latina aos paradigmas judaicos, iniciação talmúdica, arte cabalística, etc.) é curioso que logo haja entrado em querela ou em discórdia. De facto, tal como já no Evangelho Uriel podia ter visto, os Fariseus de Amesterdão não deviam ser mais perfeitos do que os dos tempos de Jesus de Nazaré. Mas a imperfeição rabínica seria motivo lógico para disputar os princípios do judaísmo? O defeito ético de alguns pode levar à dúvida sobre o princípio ôntico de todos? Extrair prova universal do acidental é característico da filosofia pré-aristotélica, e o tempo de Uriel voltava a pôr esse método em pé: a filosofia deixa de ser o pensamento das primeiras causas para se afirmar a análise dos acidentes, com exclusão dos princípios. A filosofia, em vez de coligir uma ordem lógica substante, instala-se numa ordem adjectivante. Não há princípios, apenas meios, e os acidentes são os próprios princípios. A ideia de uma lei global — escrita e oral — com todas as consequências que o Farisaísmo propõe surgia inacessível ao portuense duvidante por isso, segundo consta, mas apenas através de expressão oral, começou a emitir críticas contra a Lei Oral. Um judeu de nova data, numa comunidade séria e estudiosa, lançava a confusão. Por isso, é chamado à ordem, cuja abjurgatória repele e, como reação, decide escrever um livro (o primeiro), contra os costumes dos Fariseus. Aceita-se que este primeiro livro se intitula Propostas contra a Tradição, do qual conhecemos apenas extractos ou referências. Ora, a pergunta põe-se: este é o primeiro livro de Uriel, e tem realmente esse título?
Que seja o primeiro, podemos admiti-lo. Que esse seja o título é de pôr em dúvida. Na sua autobiografia, Uriel omite o título do livro, mas teria ele coragem de pôr, à cabeça de um escrito, título tão incisivo e decisivo? Duvidamos que o livro assim se chamasse. Com efeito, o texto Propostas contra a Tradição não parece mais do que um memorando, escrito por outra pessoa, a relatar, com intenção de denúncia, o que Gabriel pensava. O texto começa pelo verbo propor na terceira pessoa do singular do presente do indicativo: «Propom, que o preceito, etc», isto é, ele propõe e não eu proponho. Mais adiante afirma-se: «diz elle», e não digo eu. Finalmente, no capítulo 7 dessa obra, trataria da recusa da «Ley de bocca».
Já antes de chegar a Amesterdão, ele tinha estado em Hamburgo, de onde (1616) enviou à comunidade de Veneza um livro combatendo as teses tradicionalistas, mas sem se saber se o memorial do autor teria assim um título. Sabemos que nesse escrito combatia a tradição, os Tephilim, a mezuza, a cadeira de Elias e a Peria, bem como a lei oral. Nessa altura, Leão de Modena foi encarregado de combater as teses urielinas, escrevendo o Maguen Vacina, bem como uma carta ao Parnassim da Kahal-Kadosh de Hamburgo, contra o herege. Parece que, em 1618, Uriel sai de Hamburgo para Amesterdão, embora no seu retrato omita este pormenor. Verdade é que, antes de 1618, não incomodou, por escrito, a comunidade de Amesterdão, mas apenas as de Hamburgo e as de Veneza. Antes de o livro que dirigiu a Veneza ter sido publicado saiu a refutação da autoria de Samuel da Silva, segundo o que o próprio Uriel noticia, dizendo que essa refutação se intitulava De Imortalitate Animorum. Ora, de um modo geral, aceita-se que o texto constante, em citações, da obra de Samuel da Silva, seria o do livro, nesse caso segundo, — Exame das Tradições Farisaicas — de Uriel. Tanto quanto é lícito inferir pelo decurso cronológico, pela equivalência de temas, e pelo relato de Uriel, —e mormente pelo famoso capítulo 7°, que seria então igual, tanto no primeiro como no segundo livro — o livro chamado Propostas contra a Tradição e o livro Exame das Tradições Farisaicas são um só livro. No texto intitulado Propostas, alguém elabora um memorando, por ele próprio intitulado, para relatar as ideias de Uriel a uma autoridade. Isto é: o Propostas não é um livro, é um memorando de um autor que não Uriel, sobre as teses contra a tradição defendidas por Uriel. O texto intitulado Exame é o verdadeiro primeiro livro de Uriel, o qual Samuel da Silva refutou, depois de apanhar um caderno na tipografia. Este Exame não foi escrito em 1623, mas ficou concluído nesse ano, depois de elaborado pelo menos desde 1616. Aliás, o texto já devia estar avançado no ano de 1618 porque, nesse ano, o enviou ao rabinato de Veneza e, o que é mais, nesse mesmo ano um autor anónimo publicou (Hamburgo, lugar de impressão fingido, Amesdertão, 1618) o Tratado do Herem, em que se descrevem as cerimónias rituais, contra os hereges e sobretudo contra Uriel da Costass. O aparecimento deste opúsculo corresponde ao tempo em que o rabinato o admoestou e o convidou a arrepender-se das opiniões em que ousava persistir. Contudo, o saduceu fez ouvidos moucos e, por isso, foi enermado, isto é, recebeu o pequeno herem — isolamento e proibição de falar com judeus — em 30 dei Homer 5383.
Não obstante, nesse ano de 1623, entregou o original do Exame das Tradições Farisaicas ao impressor Paulo de Ravesteyn, mas sem vantagem, porquanto, sucedesse o que sucedesse, o livro desapareceu numa inusitada voragem, a pontos de Samuel da Silva ter de responder mediante um caderno (exemplar?) que obteve, retirado, da tipografia.
Publicado o contundente livro de resposta do médico portuense, Uriel escreve o seu segundo livro, um opúsculo em defesa pessoal e de réplica ao opositor, livro esse que deveria sair a público, cujo título Uriel omite na sua autobiografia, mas que aceitamos seja a versão renovada do primeiro, com as respostas a Samuel, intitulado: Examen das Tradições Phariseias conferidas com a Ley escrita por Uriel, Jurista Hebreo, com resposta a hum Semuel da Silva seu falso Calumniador. (Amesterdão apud Paul Ravesteyn, 1624). O livro não chegou a ser distribuído porque a Sinagoga acusou o idólatra, e conseguiu das autoridades holandesas que fosse apreendido e queimado com os livros de Uriel (Prima-vera-Verão de 1624). Foram nessa altura queimados também os exemplares da primeira obra, a primeira versão do Exame, ainda sem as respostas a Samuel? A hipótese é francamente aceitável, e explica a inexistência de exemplares dessas duas obras que Uriel teve, efectivamente, na tipografia para impressão.
Enfim, no ano de 1633, decide reconciliar-se com a santa congrega. Reconciliação ostensiva, mas insincera. Um sobrinho logo o delatou por o tio não haver abandonado os hábitos pessoais, violando o sábado e as leis de boca, isto é, a lei oral, cumprindo apenas a lei escrita. Uma acha ateou a fogueira : dois cristãos, um espanhol, outro italiano, apresentaram-se em Amesterdão, com intentos de se converterem ao judaísmo. Em vez de obterem conselho junto de pessoas acima de suspeita, acharam por bem contactar Uriel, a quem solicitaram esclarecimento sobre o desejo conversório. Bem castigado e cheio de experiência, Uriel, talvez ciente do erro que cometera, tentou afastar os dois visitantes do seu projecto. Em vez de calarem o conselho recebido, os convertíveis tornaram público o conselho recebido, de que Uriel os tentara induzir contra o judaísmo. Eram gente sã? Eram enviados das autoridades sinagogais, com o propósito de apanharem o pobre em falta testemunhada, fazendo prova bastante das coisas que acerca dele constavam? Se não eram, procederam como se fossem, e Uriel sofreu nova e grave excomunhão, (1633), tinha Bento de Espinosa um ano de idade, pois nascera em 1632.
Sete longos anos decorrem. O ambiente continua ostensivamente adverso a Gabriel da Costa. Em 1640, Uriel cede novamente às instâncias dos amigos e procura reconciliar-se com a santa congrega, o que de facto obtém, mas depois de se sujeitar ao castigo purificatorio de aguentar as 39 vergastadas da lei à entrada da Sinagoga, a cuja porta teve de aceitar o espezinhamento dos irmãos antes de, cabeça erguida, poder entrar no santo átrio.
A reentrada, longe de lhe encher a alma de júbilo, antes lhe disseca o ânimo. Logo depois inicia o terceiro escrito : Exemplar Humanae Vitae, dolorosa autobiografia, onde perpassam o temor e o tremor de uma introdução à tragédia inócua, para que a purificação do malcut se revelou insuficiente.
Que autobiografia é essa, cujo texto conhecemos em versão latina? Escreveu-a em português, tal como a restante obra? Escreveu-a mesmo em latim para evitar que, tombando em mãos alheias, fosse imediatamente decifrada? O original do autor é de facto um relato tão resumido e tão falho de informação global e pormenorizada como o que conhecemos? Não teria Gabriel interesse em descer ao pormenor de citar os títulos das suas obras, de referenciar a estada em Hamburgo, de identificar os textos contra ele alusivos (Aguillar, Menassé…), de ser menos frugal na análise das sucessivas conjunturas que o iam levar a uma aporia existencial?
Perguntas que ficam de pé, enquanto não houver resposta, uma vez que, de exacto, só sabemos que o texto original, em latim, com duas caligrafias diferentes, nos foi transmitido (original resumido e traduzido do português para latim?) por Phillipe van Limborch na obra de controvérsia teológica, intitulada De Veritate religionis christianae: Arnica collatio cum erudito Judaeo (Condae, apud Justo de Hoeve, 1687).
Sem esta trasladação, devida a Limborch, não disporíamos de um texto que, não obstante a frugalidade autobiográfica, marca o desfecho de uma controvérsia psicológica, que acabaria com um tiro.
O exposto induz-nos, portanto, nesta ideia de que a obra literária, segundo testemunho do autor, e segundo análise do conteúdo e da cronologia, é constituída por três títulos: dois impressos (o primeiro Exame, sem resposta a Samuel, e o segundo Exame, com as respostas a Samuel) e um manuscrito, possivelmente alterado a posteriori (Exemplar Humanae Vitae, conhecido como Espelho de Vida Humana). Do primeiro, só sabemos o que consta do livro de Samuel da Silva e, certamente, o que consta do memorando intitulado Propostas contra a Tradição. Do segundo, nada conhecemos e, do terceiro, temos o que Limborch no transmitiu.