Num momento em torno de 1580-1581, quando a coroa da Monarquia Portuguesa passa a ornar uma cabeça castelhana; e quando a nova filosofia ocidental se vê programada numa obra precursora do modernismo e do racionalismo — o Quod Nihil Scitur (1581) de Francisco Sanches, e enquanto os homiziados na Holanda dão passos na reconstrução da comunidade, nasce, no Porto, a pessoa que viria a ser, não tanto pelas teses, como pelo dramatismo que imprimiu às suas posições doutrinais, o detonador de um longo processo de perplexidade e de angústia, processo esse espelhativo do modernismo filosófico: Gabriel da Costa, filho do portuense Bento da Costa.
O teor biográfico acerca do «contrariador» é tão extenso, que, para o nosso propósito, basta salientar apenas alguns troços do percurso, de forma a podermos situar a tragédia que assolou a Talmud Torah, mas contribuiu para a maior unidade dos judeus em torno da herança patrimonial.
O perfil psicológico de Gabriel da Costa mostra-se obtuso. É um certo caos, em que uma alma aparece, não diremos perdida, mas hesitante, contraditória, problemática, enredada em si mesma, possessa de introversão e, até, de repulsa por tudo quanto lhe é dado. O acompanhamento da sua presumível autobiografia, bem como o excurso pelos testemunhos de que dispomos, são de molde a evidenciar que Gabriel da Costa era o tipo de homem a quem só as soluções extremas satisfazem: ou uma adesão em profundidade a um ideal ou na falta desta adesão, a saída fatal pela porta do nada. Ou a glória, ou o suicídio. Faltava nele, como faltou em Antero e em Camilo, o vínculo tensional da esperança, a capacidade de aguentar o barco. Nos três, havia profissão de ideal, nos três falhou esse elo frágil que liga o dever à capacidade humanidade de o realizar em plenitude.
Depois de concluir os preparatórios, e de receber uma educação cristã na casa paterna, matriculou-se na Universidade de Coimbra (1600) para seguir Direito Canónico. A primeira estada em Coimbra dura menos de um ano, já que, no inverno de 1601, por causa da epidemia de peste, é compelido a regressar ao Porto, onde permanece durante três anos, no decurso dos quais efetua leituras (que leituras?), começando a sentir perplexidades e dúvidas. Uma dificuldade o assola, antes de mais: a verdade da salvação. Se haverá efectiva salvação para além do mundo, e, pois, se a alma dispõe de um benefício intemporal que lhe permita receber em perfeito capital, os juros pagos na vida terreno. Era importantíssimo identificar quais os livros que Gabriel da Costa leu nesta altura, tanto mais que, segundo as bibliografias, no país predominavam os bons livros de espiritualidade, de mística sacerdotal e laical, embora na sermonística paroquial — e assim seria no Porto — prevalecesse um estilo gongórico, descritivo ao sentido dos horrores e castigos infernais. Falando a gente vulgar, os pregadores não podiam recorrer às subtilezas teológicas para fazer entender aos auditórios o gozo excelso do céu e o sofrimento atroz do inferno. Valiam-se, então, de imagens sensíferas: o fogo, a caldeira, a dor, a carência, tudo isso que à sensibilidade humana podia repugnar. Era este horroroso que levava Gabriel a permanecer insossegado? Que pecados, então, jovem, o podiam situar em tamanha tremura? Não obstante, sossegou e regressou a Coimbra, onde cursou o Canónico desde 1605 a 1608, ano em que, sem ter concluído a formatura, voltou ao Porto, sendo nomeado raçoeiro de uma não identificada Colegiada, na qual lhe foi cometido o cargo de Tesoureiro. Aos vinte e cinco anos — ou, como se diz na sua biografia latina — cum annum egerem vigesimum quintum — voltou a sofrer das dúvidas: vida eterna, dogmas cristãos, justiça divina, natureza e intemporalidade da alma. De onde lhe provinha esta insegurança, a ele, que frequentara uma Faculdade, onde a confiança no juízo próprio era virtude primordial?
O saduceu contemporâneo P. Kaan, saduceu esse que sofria da doença análoga ao anti-semitismo (doença que vê judeus em toda a parte), que é o anti-jesuitismo, relaciona deveras a formação espiritual de Gabriel da Costa com a «Universidade jesuíta de Coimbra», achando que o portuense sentiu a influência dos conciliadores jesuítas de Espanha! Tudo é possível, sobretudo porque, na época em que Uriel frequentou a Universidade, a influência jesuítica era vastíssima, mas importa referir que, então, se lia o notável Curso Conimbricense, cuja edição andava em trânsito, e que, por sua orgânica lógica, funcionava como tira-teimas de toda a erronia filosófica. Acaso leu Uriel alguns dos livros do Curso? Se os leu, não os fixou. A sua prosa é a de quem, ou desconhece, ou despreza, já o aristotelismo, já o tomismo.
Nem todos os teólogos universitários eram jesuítas. Durante os anos em que Gabriel andou em Coimbra, foram professores na Faculdade mestres quais André de Almada, António Galvão, Constantino Barradas, Egídio da Apresentação, Francisco Carreiro, Gabriel da Costa (+ 1616) — que Teófilo confundiu com Uriel — e Frei Manuel Tavares, para além de um esclarecido e seguro, jesuíta, Cristóvão Gil, cujas lições não foram ouvidas por Gabriel, mas que, a terem ido ao seu conhecimento, longe de o lançarem na dúvida, poderiam contribuir para lhe garantir a fé, dada a sua inteireza de princípios em Teologia formal.
Por outro lado, no movimento docente da Faculdade de Cânones verifica-se uma constante substituição de lentes. Saem uns e entram outros, muitos deles sem terem assinalado seu nome na história do saber. Esses professores constam dos catálogos dos lentes de Coimbra, e seria inoportuna a sua geral referência. No entanto, há um que seria grave omitir: Francisco Caldeira, o célebre Dr. Caldeirão.
As biografias de Uriel da Costa nenhum caso fazem do Dr. Caldeirão e mesmo nós, ao reparar nele, nada visamos afirmar de concreto, mas tão somente excitar uma suspeita. Professor ãe Instituía, foi preso por culpa do judaísmo, e saiu em auto de fé em Lisboa (21.4.1632), tendo abjurado. Houve relações pessoais, para além das escolares, entre Caldeirão e Uriel? Que leva Uriel a voltar-se para o mosaísmo, caso não tivesse havido alguma rudimentar iniciação em Coimbra? Nesta cidade havia, como se sabe, casa de oração, a qual veio a ser descoberta e encerrada, aquando do processo movido a outro judaizante conimbricense, o infeliz Dr. António Homem u, que foi, antes de morrer (1624) coetâneo de Uriel em Coimbra. Ficam estes avisos a uma síntese biográfica de claridade, para separar o trigo do joio e obter a distinção correta de dois homens, isto é, o Uriel real do Uriel romântico, que toda uma literatura europeia, alguma dela prenhe de anti-judaísmo, propalou.
Samuel da Silva acusa repetidamente Uriel de não saber hebraico. Diz mais que, já em Amesterdão, tentou fazer com que Uriel aprendesse a língua santa. Que andou ele a fazer em Coimbra, onde, no tempo, operavam hebraistas de coturno como Francisco Sanches, Luís de Sottomayor e Estevão do Couto, por exemplo “? Porque não beneficiou, ou não quis beneficiar, em Amesterdão, das aulas de hebraico que lhe poderiam ser ministradas por hebraistas tão competentes com Moseh Rephael de Aguillar, o próprio Samuel da Silva, ou o inigulável hebraísta David ben Isaac Cohen de Lara? Sendo assim, com estas perguntas sem resposta, e com os textos que de Uriel dispomos, onde o modo de efectuar as transcrições e citações bíblicas não é o modo de um escolar, nem de um legista, muito menos de um canonista, temos margem para indagar: que andou, por Coimbra, a fazer Uriel?
Como exacto temos, segundo a sua narrativa que, aos vinte e cinco anos, duvidando da confissão e da salvação, depois de ter lido muitas summas confessariorum (leia-se: sumas de casos de consciência, colectâneas casuísticas elaboradas pelos lentes para as respectivas cadeiras) 1 acabou por entrar a fundo na leitura do Velho Testamento, achando que a lei de Moisés era mais objectiva do que a lei de Cristo. Tinha, então, certos problemas, da sua vida a resolver, ao que parece relacionados com uma burla documentada. Estes problemas não foram causadores da sua conversão ao judaísmo, mas foram decerto causadores da necessidade de sair do Porto. E assim fez. Muda de religião, adere ao judaísmo, vende os bens que possui na cidade, arranja os fundos para viver, trespassa a sua posição na Colegiada, e emigra para a Holanda.
Corria o ano de 1616, tinha Uriel 25 anos e, ao que parece, uma vida ainda vazia, embora fosse já patente a sua elevada devoção à família, — mãe, quatro irmãos e uma irmã — que levou consigo, «não sem grande perigo», como anotou na autobiografia.
Entra na Sinagoga Beth Jacob, onde pontificava o sábio Saul Levi Morteira. Recebe a circuncisão, mudando ligeiramente o nome de Gabriel para Uriel, e casa com uma judia, Sara. No meio de tudo isto, apenas uma contradição: se já não aceitava a canonicidade do livro do profeta Daniel, que tanto atacou, por ser neste livro que pela primeira vez os anjos recebem nomes, a pontos de o nome Uriel constar desse mesmo livro, como é que Gabriel se mudou em Uriel?
SEGUE: Uriel da Costa I – I; Uriel da Costa II – II; Uriel da Costa III – III; Uriel da Costa IV – IV;
- O termo encontrou pelo menos duas leituras, entre elas a de tratados de teologia, com nome inspirado nas sumas medievais de Teologia. Ora, «sumas ãe confessores» significa «sumas, ou compêndios, de casos de consciência». Nos escritos de Uriel encontramos, apoiando teses, alguns casos de consciência, v. g. sobre o dono do boi protestado.[↩]