Schopenhauer (MVR:268-269) – olho cósmico

A natureza, ao apresentar-se de um só golpe ao nosso olhar, quase sempre consegue nos arrancar, embora apenas por instantes, à subjetividade, à escravidão do querer, colocando-nos no estado de puro conhecimento. Com isso, quem é atormentado por paixões, ou necessidades e preocupações, torna-se, mediante um único e livre olhar na natureza, subitamente aliviado, sereno, reconfortado. I 233 // A tempestade das paixões, o ímpeto dos desejos 1) e todos os tormentos do querer são, de imediato, de uma maneira maravilhosa, acalmados. Pois no instante em que, libertos do querer, entregamo-nos ao puro conhecimento destituído de Vontade, como que entramos num outro mundo, onde tudo o que excita a nossa Vontade e, assim, tão veementemente nos [268] abala; não mais existe. Tal libertação do conhecimento eleva-nos tão completamente sobre tudo isso, quanto o sono e o sonho. Felicidade e infelicidade desaparecem. Não somos mais indivíduo, este foi esquecido, mas puro sujeito do conhecimento. Existimos tão-somente como olho cósmico UNO, que olha a partir de todo ser que conhece, porém só no homem tem a capacidade de tornar-se tão inteiramente livre do serviço da Vontade. Nesse sentido, as diferenças de individualidade desaparecem tão completamente que é indiferente se o olho que vê pertence a um rei poderoso ou a um mendigo miserável. Pois felicidade e penúria não são transportadas além daqueles limites. Note-se o quão próximo de nós pode sempre se encontrar um domínio em que podemos nos furtar por completo à nossa penúria! Mas quem tem a força para nele se manter por longo tempo? Assim que surge novamente na consciência uma relação com a vontade, com a nossa pessoa, precisamente dos objetos intuídos puramente, o encanto chega ao fim. Recaímos no conhecimento regido pelo princípio de razão. Não mais conhecemos a Ideia, mas a coisa isolada, elo de uma cadeia à qual nós mesmos pertencemos. De novo estamos abandonados às nossas penúrias. — A maioria dos homens quase sempre se situa neste ponto de vista, já que lhes falta por completo a objetividade, isto é, a genialidade. Eis por quê de bom grado nunca ficam sozinhos com a natureza; precisam de sociedade, ao menos de um livro. Seu conhecer permanece servil à Vontade. Procuram, por conseguinte, só por aqueles objetos que têm alguma relação com o seu querer e, de tudo que não possua uma tal relação, ecoa em seu interior, semelhante a um baixo fundamental, um repetitivo e inconsolável “de nada serve”. Assim, na solidão, até mesmo a mais bela cercania assume para eles um aspecto desolado, cinza, estranho, hostil. (MVR:268-269)

  1. Sturm der Leidenschaften (tempestade das paixões) e Drang des Wunsches (ímpeto dos desejos), justamente termos que compõem o nome do movimento artístico ultra-romântico alemão, Sturm und Drang. Schopenhauer tem aqui em mente, sem dúvida, a inquietação romântica de seu período, cuja obra exponencial foi Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, que, lida por jovens impetuosos e atormentados, muitas vezes não correspondidos amorosamente (como o personagem principal do romance), desencadeou uma onda de suicídios na Europa. (N. T.[]

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