Schopenhauer (MVR2:288-289) – identidade da pessoa

10) Em que se baseia a IDENTIDADE DA PESSOA? — Não na matéria do corpo: esta é outra após alguns poucos anos. Não na forma dele: esta muda no todo e em cada uma das suas partes; exceto na expressão dos olhos, pela qual, por conseguinte, mesmo depois de muitos anos, ainda reconhecemos uma pessoa; o que demonstra que, apesar de todas as mudanças nela produzidas pelo tempo, ainda assim algo permanece completamente intocado: precisamente aquilo que, por mais longa que seja a ausência, faz com que a reconheçamos e nela reencontremos quem era outrora; o mesmo se passa conosco: pois por mais velhos que nos tornemos, ainda assim sentimo-nos no íntimo como aquele que por inteiro éramos na juventude, sim, até mesmo quem éramos quando criança. Isto, o inalterado e que sempre permanece absolutamente o mesmo sem envelhecer é justamente o núcleo do nosso ser, que não está no tempo. — Acredita-se que a identidade da pessoa baseia-se na da consciência. Se, entretanto, entende-se por esta meramente a recordação coerente do decurso de vida; então não basta. Em todo caso, sabemos algo mais do nosso decurso de vida do que de um romance outrora lido; no entanto, esse algo mais é bem pouca coisa. Os principais eventos, as cenas interessantes ficaram marcados: porém, para uma única ocorrência que foi conservada milhares de outras foram esquecidas. Quanto mais avançamos na idade tanto mais as coisas escapam-nos sem deixar vestígios. Envelhecimento, doença, lesão cerebral, loucura podem roubar completamente a memória. Mas a identidade da pessoa não se perdeu com isso. Esta baseia-se na VONTADE idêntica e no seu caráter imutável. É precisamente ela que torna inalterável a expressão dos olhos. É no CORAÇÃO que encontramos o ser humano, não na cabeça. É certo que, em consequência da nossa relação com o mundo exterior, estamos acostumados a considerar o sujeito do conhecer, o eu que conhece, como o nosso si mesmo propriamente dito, que à noite se cansa, no sono desaparece, pela manhã resplandece com renovadas forças. Contudo, isso é a mera função cerebral, não o nosso próprio si mesmo. Nosso verdadeiro si mesmo, o núcleo do nosso ser é o que se encontra atrás disso e nada conhece propriamente dizendo senão querer e não querer, estar satisfeito ou insatisfeito, com todas as modificações dos movimentos que denominamos sentimentos, afetos e paixões. Eis aí o si mesmo que produz aquele outro; não dorme, quando o outro dorme, e também permanece intocado, enquanto aquele outro desaparece com a morte. — Por outro lado, tudo o que pertence ao conhecimento está sujeito ao esquecimento: às vezes, após anos, não podemos recordar completamente , nem mesmo das ações de significado moral e não sabemos de modo preciso e detalhado como nos comportamos num caso crítico. Contudo, do CARÁTER MESMO, do qual os atos dão simples testemunho, não podemos esquecê-lo: ele é agora exatamente igual ao que era antes. A vontade mesma, só e por si, permanece: pois apenas ela é imutável, indestrutível, não envelhece, não é física mas metafísica, não pertence à aparência mas é o que aparece mesmo.

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