Como da luz imediata do sol à luz emprestada e refletida da lua, passaremos agora da representação intuitiva, imediata, auto-suficiente e que se garante a si mesma, à reflexão, isto é, aos conceitos abstratos e discursivos da razão, que têm seu conteúdo apenas a partir e em referência ao conhecimento intuitivo. Durante o tempo em que nos mantemos intuindo de modo puro, tudo é claro, firme, certo. Inexistem perguntas, dúvidas, erros. Não se quer ir além, não se pode ir além; sentimos calma no intuir, satisfação no presente. A intuição se basta a si mesma. [I 142] Por conseguinte, tudo o que se origina puramente dela e a ela permanece fiel, como a autêntica obra de arte, nunca pode ser falso ou contradito pelo tempo, pois lá não há opinião alguma, mas a coisa mesma. No entanto, junto com o conhecimento abstrato, com a razão, dúvida e erro entram em cena no domínio teórico, cuidado e remorso no prático. Se na representação intuitiva a ILUSÃO distorce por momentos a realidade, na representação abstrata o ERRO pode imperar por séculos, impondo seu jugo férreo a povos inteiros, sufocando as mais nobres disposições, e, mesmo quem não é por ele enganado, é acorrentado por seus escravos ludibriados. O erro é o inimigo contra o qual os mais sábios espíritos de todos os tempos travaram uma batalha desigual e apenas o que nela conquistaram se tornou patrimônio da humanidade. Por consequência, é aconselhável agora dedicar-lhe atenção, já que vamos adentrar o solo no qual se encontra o seu domínio. Embora tenha sido dito diversas vezes que se deve perseguir a verdade [81] mesmo quando não se vê nenhuma utilidade nela, visto que pode ser mediata e aparecer quando menos se a espera, penso ter de acrescentar aqui que se deve estar do mesmo modo empenhado em descobrir e erradicar qualquer erro, ainda que não se anteveja nele prejuízo algum, porque também pode ser mediato e aparecer quando menos se o espera. Todo erro traz veneno em seu interior. Se é o espírito, o conhecimento que faz do homem o senhor da terra, então não há erros inocentes, muito menos respeitáveis e sagrados. E, para consolo daqueles que, de algum modo e em alguma ocasião, despendem força e vida no nobre e difícil combate contra o erro, não posso eximir-me de acrescentar: quando a verdade ainda não existe, o erro pode jogar o seu jogo, como as corujas e morcegos o fazem à noite; porém, pode-se até esperar que as corujas e os morcegos empurrem de volta o sol para o leste, mas não que a verdade conhecida e expressa de maneira clara, plena, seja de novo reprimida,[[No original alemão verdrängt, cuja substantivação leva a Verdrängung, “repressão”. Reprimir e repressão são termos registrados na língua portuguesa já na segunda metade do séc. XVIII, portanto, coetâneos da obra principal de Schopenhauer. São termos caros à psicanálise freudiana e cuja antecipação se verifica, inclusive com notável paralelo teórico, em Schopenhauer. Para isso, veja-se mais adiante a teoria da loucura, livro terceiro, § 36. (N. T.)]] e o antigo erro de novo ocupe, imperturbável, o seu amplo espaço. Eis aí a força da verdade, cuja vitória é [I 143] dura e trabalhosa mas, uma vez alcançada, é definitiva.