A SALVAÇÃO
Todas as religiões prometem a salvação. Ao tomar consciência de sua fraqueza e das suas ausências, o homem deseja superar-se, alcançar maior soma de poder, em suma, salvar-se do estado em que está.
O esquema religioso da salvação, cujo processo de estratificação é longo e proporcional à esquemática dos diversos ciclos culturais, inclui sempre a posse de um poder, alcançado por nós ou a nós concedido por doação de quem o possui, como a kharis, a graça divina, a graça salvífica dos escolásticos.
Mas a salvação é trazida por seres que a representam aqui, ou melhor, que a simbolizam por participação, como a água (para os egípcios), no sentido do poder líquido capaz de fazer renascer, fecundar, etc., ou a árvore, os animais, etc. Para Van der Leeuw o primeiro salvador foi sem dúvida o phallus, símbolo da fecundidade. Em alguns povos, os primeiros cereais colhidos servem para formar um bolo que toma uma forma feminina, para simbolizar a fecundidade, que é feminina, ou a de um animal, como ainda vemos em nossos dias.
O esquema do salvador, o Soter dos gregos, que é um homem e ao mesmo tempo um deus, é um símbolo universal, pois para salvar o homem é preciso ser homem, para salvá-lo no homem, e também um deus, pois deve possuir o poder maior, símbolo universal, cuja construção é facilmente compreensível como conseqüência do que estudamos até aqui.
Na simbólica das diversas religiões, à relação dos opostos dá surgimento a uma reciprocidade pela inter-atuação, gestando uma nova ordem, uma nova entidade, produto de ambas. Tomado o princípio masculino em face do princípio feminino, o que surge é simbolizado pelo filho. Ora, para o homem, imerso na luta dos contrários, arrastado pelas oposições que nele atuam, sua salvação está no que vença os contrários por uma síntese.
Por isso, em muitas religiões, é o filho que traz a salvação, e como o salienta Van der Leeuw, não só é a esperança dos vivos, como a consolação dos mortos.
É o filho a salvação de um casal, pois não só os liga mais intimamente, como perpetua a família, e ninguém que tenha melhor acuidade de sentimento considerará seu filho como apenas um evento, um intruso, mas sim como algo que o prossegue, que o continua, e que ao mesmo tempo o liga mais diretamente à mãe. Queremos referir-nos aqui ao homem normal, naturalmente, e não aos exemplos de degeneração humana, tão comuns em nossa época.
Houve entre os egípcios um culto, o mais belo de todos, ao filho, simbolizado em Horus, como o que unifica, cuja influência nas doutrinas cristãs é inegável. É Horus quem assegura a vida de seu pai Osiris, que realiza essa atividade vivificadora ná, que é também a vingança sobre Seth, o inimigo do pai.
O filho é o rejuvenescimento, a primavera, a salvação da primavera. É a renovação da terra, como o Dionísio grego. É o Marte dos antigos latinos, o deus da primavera, o que renova, o que batiza os homens, o que lhes assegura uma nova vida.
Há, assim, no conteúdo simbólico do filho, um conjunto de positividades que vemos dispersas nos diversos cultos, como nas diversas teorias que procuram interpretar a simbólica das religiões.
Está também ligado ao Salvador o poder curativo. Todas as encarnações do salvador divino estão ligadas a um homem-deus que cura. E a cura é atribuída aos taumaturgos que o anunciam, que o precedem. Lembremo-nos das palavras de Cristo; “O espírito do Senhor está comigo, e eis por que ele me ungiu; ele me enviou para anunciar aos prisioneiros a liberdade, aos cegos a visão, aos que têm os corações partidos a liberação, e para proclamar o ano favorável do Senhor” (Luc. IV., 18).
No exame do mito do salvador, Van der Leeuw enumera os aspectos invariantes tais como:
a) o nascimento, a epifania, filho de mãe humana .e pai divino. A mãe é virgem, porque desconhece o contato humano e conserva esta parthenia – virgindade até o parto. O salvador, pelo poder que tem, não poderia proceder de conjunção carnal humana. Assim Apoio é gerado de Perictione, Isis concebe Horus, etc.
b) Ato de salvação – É a vitória sobre as oposições. Apoio mata o Python, os trabalhos de Héracles (Hércules dos romanos), a luta de Cristo contra os fariseus, etc.
c) A morte – Na luta, o herói sucumbe, como Osiris, Dioniso, Tamos, Adonis, Atis, Baldur dos germânicos, Hosain, dos Chitas. Mas a morte vence a morte.
d) A ressurreição: – A ressurreição pode surgir pela vingança do filho, (como Horus), mas, em geral, é o próprio deus que renasce, que aniquila a morte pela nova vida. É a colheita, porque a época da semeadura é a época das lágrimas, do sofrimento. Ressurreição e nascimento aí se confundem em algumas religiões. O salvador que renasce, já preexistia, como Cristo, que preexistia no Pai.
O mito do salvador é universal e o seu mitologema pode ser simbòlicamente interpretado segundo os planos da referência, de que temos tratado.
(NA: O poder carismático (o kharisma, que é o conteúdo da kharis, da graça, do poder, do mana, etc.) é atribuído também aos reis, imperadores, chefes, os quais, na variância das diversas estruturas culturais, surgem como salvadores. Também é o rei portador do poder, é salvador, como se observa nas culturas mais primitivas, cujos resquícios encontramos nas altas culturas, em que o rei tem determinados poderes, inclusive curativos, como os faraós do Egito e os reis no ocidente. Certas insígnias, como a serpente dos faraós, o manto de Henrique II, ornado com o sol, a lua e as estrelas, são indícios do poder carismático do rei. Este não é apenas o indivíduo mas a realeza. Ele continua o poder real, o que se nos revela claramente no verdadeiro significado da frase célebre: “Le Roi est mort, vive le Roi!”
A conexão entre o salvador, e o rei, encontramo-la viva na figura de Cristo, que ao mesmo tempo é rei. Sobre este tema, os trabalhos de Frazer são importantíssimos e cheios de sugestões sobre a simbólica.
Segundo a dialética simbólica, o rei participa, num grau mais elevado que os outros seres humanos, das perfeições divinas. Por essa razão é ele um mediador, condição imprescindível para a figura do Salvador.)
Assim, individualmente, há em nós algo que padece, morre e desejamos ressuscitar, porque “ressurgimos cada manhã”, e o mundo “ressurge em cada alvorada”.
Esse nosso desejo da ressurreição, que em nós deve tomar forma, é simbolizado por todas as coisas que ressurgem.
A poesia está cheia das imagens que expressam essa simbólica, que encontramos nas flores que abrem seus cálices, no amanhecer, no sol que aquece mais, etc.
O ciclo do devir aponta a uma ressurreição constante, que encontramos em todos os símbolos astrológicos. Mas tudo isso aponta ainda mais longinquamente ao ser finito que surge, nasce, vive, perdura, e morre, mas que ressurge depois, como símbolo da invariância das variâncias cíclicas do devir.
E não está longe encontrar nesse símbolo o drama divino do ser que se encarna na finitude, da infinitude do Ser Supremo que gera seu Filho, o cosmos, o drama, a ação, que nasce, perdura e perece, para renascer sempre, em formas diversas, e seguir o curso da variância das formas até ao desejado retorno final ao seio da Divindade, que é o princípio e fim de todas as coisas.
Cristo pode ser interpretado cosmicamente, e o é, na verdade, por algumas crenças. O drama teogônico do nascimento, vida e morte dos deuses, pode ser interpretado como a simbólica do existir cósmico, que é o filho, o gerado do Ser Supremo, que é outro, diferente, mas dele não pode separar-se em absoluto, porque, do contrário, haveria rupturas no Ser e teríamos caído no pluralismo, onde as aporias seriam maiores.
A criatura não é um outro, absolutamente outro de Deus. .Há em nós algo que a ele nos une, e esse algo é todo o nosso ser.
Tangemos aqui um problema de Ontologia e Teologia, que é o da univocidade e o da analogia do Ser, o que escaparia ao campo deste livro. Mas o que a simbólica universal deseja dizer, deseja apontar, é a uma univocidade, por longínqua que seja, mas que é também um ponto de segurança, a garantia, a certeza de que o Ser Supremo está conosco e nós nele, muito mais profundamente ligado do que é possível acreditar.
Neste ponto, a problemática é imensa e as aporias que surgem exigem outros trabalhos, dos quais não poderíamos, nos ocupar por ora.