- Mario Laranjeira
- Original
Mario Laranjeira
(Em verdade ele se livraria da vaidade das leis, portanto é útil enganá-lo.)
Sobre que fundamentará ele a economia do mundo que quer governar? Será sobre o capricho de cada indivíduo? Que confusão! Será sobre a justiça? ele a ignora. Certamente se ele a conhecesse não teria estabelecido essa máxima, a mais geral de todas as que existem entre os homens, que cada um siga os costumes do seu país. O esplendor da verdadeira equidade teria subjugado todos os povos. E os legisladores não teriam tomado como modelo, em vez dessa justiça constante, as fantasias e os caprichos dos persas e dos alemães. Vê-la-íamos implantada em todos os estados do mundo e em todos os tempos, em lugar de não se ver nada de justo ou de injusto que não mude de qualidade ao mudar de clima, três graus de aproximação do pólo invertem toda a jurisprudência; um meridiano decide da verdade. Em poucos anos de vigência, as leis fundamentais mudam, o direito tem as suas épocas, a entrada de Saturno em Leão indica-nos a origem de tal crime. Justiça engraçada essa que um rio limita. Verdade aquém dos Pireneus, erro além.
Confessam que a justiça não está nesses costumes, mas que reside nas leis naturais comuns a todos os países. Por certo sustentariam pertinazmente isso, se a temeridade do acaso que semeou as leis humanas tivesse (22) encontrado pelo menos uma delas que fosse universal. Mas a irrisão é tamanha que o capricho dos homens se diversificou a ponto de não haver nenhuma.
O furto, o incesto, o assassínio das crianças e dos pais, tudo teve seu lugar entre as ações virtuosas. Pode haver algo mais engraçado do que o fato de um homem ter o direito de me matar porque mora do outro lado da água e porque o seu príncipe tem alguma desavença com o meu, embora eu não tenha nenhuma desavença com ele próprio?
Existem sem dúvida leis naturais, mas essa bela razão corrompida tudo corrompeu. Nihil amplius nostrum est, quod nostrum dicimus artis est 1. Ex senatusconsultis et plebiscitis crimina exercentur 2. Ut olim vitiis sic nunc legibus laboramus 3.
Dessa confusão advém que um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador; outro, a comodidade do soberano; outro, o costume presente, e é o mais seguro. Nada, segundo a razão apenas, é justo por si, tudo balança com o tempo. O costume (é) toda a eqüidade, pela simples e só razão de que é recebido. É esse o fundamento místico de sua autoridade. Quem a reduzir ao seu princípio a aniquilará. Nada é mais eivado de erros do que essas leis que consertam os erros. Quem obedece a elas porque elas são justas, obedece à justiça que imagina, mas não à essência da lei. Ela é toda concentrada em si mesma. É lei e nada mais. Quem quiser examinar-lhe o motivo, vai achá-lo tão fraco e tão leviano que, se não estiver acostumado a contemplar os prodígios da imaginação (23) humana, ficará admirado de que um século lhe tenha atribuído tanta pompa e reverência. A arte de intrigar, subverter os estados está em abalar os costumes estabelecidos, sondando até a sua fonte para apontar-lhes a falta de autoridade e de justiça. É necessário, dizem, recorrer às leis fundamentais e primitivas do estado, que foram abolidas por um costume injusto. É um jogo certo para perder tudo; nada será justo para essa balança. Entretanto, o povo facilmente presta ouvidos a esses discursos, sacodem o jugo logo que o reconhecem, e os grandes tiram proveito disso para a ruína dele e daqueles curiosos examinadores dos costumes recebidos. Eis por que o mais sábio dos legisladores dizia que, para o bem dos homens, é muitas vezes preciso enganá-los; e outro bom político: Cum veritatem qua liberetur ignoret, expedit quod fallatur 4. Não é preciso que ele sinta a verdade da usurpação, ela foi introduzida outrora sem razão, ela se tornou razoável. E preciso fazer com que a olhem como autêntica, eterna, e ocultar a sua origem, se não se quer que logo venha a terminar.
Original
- Cícero, De finibus, V, 21: “Os inícios da virtude são obra da natureza e só; nossa parte (aquilo a que chamo nossa é o que é pura convenção) está em tirar as conseqüências dos principios que recebemos.”[↩]
- Sêneca, Ep. 95: “É em razão dos senatusconsultos e dos plebiscitos que se cometem crimes.” (Montaigne, Ensaios, III, 1.)[↩]
- Tácito, Anais, III, 25: “ Outrora sofríamos com nossos vícios, hoje sofremos com nossas leis.” (Montaigne, Ensaios, III, 13.)[↩]
- Santo Agostinho, Cidade de Deus, IV, 27: “Bela religião, em que me refugiei como um doente que busca sua libertação, e quando indaga sobre essa verdade que deve libertá-lo, estima-se que é bom para ele que seja enganado.” (Montaigne, Ensaios, II, 12.)[↩]
- Pascal suit ici les thèses de Montaigne, essentiellement celles de l’ Apologie de Raymond Sebond ( Essais , II, 12).[↩]
- « Il n’y a plus rien qui soit nôtre ; ce que nous appelons nôtre relève de la convention », Cicéron, De Finibus , V, 21.[↩]
- « C’est en vertu des sénatus-consultes et des plébiscites que l’on commet des crimes », Sénèque, Lettres , 95 (cité par Montaigne, Essais , III, 1).[↩]
- « Comme autrefois nous étions écrasés par les vices, maintenant nous le sommes par les lois », Tacite, Annales , III, 25 (cité par Montaigne, Essais , III, 13).[↩]
- Repris de Montaigne, Essais , III, 13.[↩]
- Le cardinal de Retz évoque en ces termes le rôle décisif que joua le Parlement de Paris dans le déclenchement de la Fronde en 1648 : « (Le Parlement) gronda sur l’édit du tarif ; et aussitôt qu’il eut seulement murmuré, tout le monde s’éveilla. L’on chercha en s’éveillant, comme à tâtons, les lois : l’on ne les trouva plus ; l’on s’effara, l’on cria, l’on se les demanda ; et dans cette agitation les questions que leurs explications firent naître, d’obscures qu’elles étaient et vénérables par leur obscurité, devinrent problématiques, et dès là, à l’égard de la moitié du monde, odieuses. Le peuple entra dans le sanctuaire : il leva le voile qui doit toujours couvrir tout ce que l’on peut dire, tout ce que l’on peut croire du droit des peuples et de celui des rois qui ne s’accordent jamais si bien ensemble que dans le silence. La salle du Palais profana ces mystères » (cardinal de Retz, Mémoires , éd. M. Pernot, Gallimard, « Folio classique », 2003, p. 129).[↩]
- Voir Montaigne, Essais , II, 12 ; « le plus sage des législateurs » désigne ici Platon ( La République , V, 459c).[↩]
- « Comme il ignore la vérité qui peut le libérer, il est bon qu’on le trompe » (saint Augustin, La Cité de Dieu , IV, 31) ; citation inexacte d’une citation elle-même inexacte de Montaigne ( Essais , II, 12), qui mentionne Varron et le grand-prêtre romain Scevola, tous deux admirateurs des impostures théologico-politiques dénoncées par saint Augustin.[↩]