Parmênides – Poema

Gerd Bornheim

O poema de Parmênides nos oferece — ao lado dos fragmentos de Heráclito — a doutrina mais profunda de todo o pensamento pré-socrático. Mas é também a de mais difícil interpretação. O poema divide-se em três partes: o prólogo, o caminho da verdade e o caminho da opinião.

No prólogo (frag. 1), o filósofo é conduzido à presença da deusa, que lhe promete a revelação da verdade. A deusa, portanto, é quem fala. No fim do prólogo, o poema distingue “o coração inabalável da verdade bem redonda”, das “opiniões dos mortais”, o que permite distinguir as duas partes subsequentes da doutrina.

A doutrina do caminho da verdade estende-se do frag. 2 até quase o fim do frag. 8. Já no frag. 2, o filósofo distingue dois caminhos de investigação, o do ser e o do não-ser, sendo que o primeiro é o caminho da certeza, pois conduz à verdade, e o segundo permanece imperscrutável para o homem. Trata-se, pois, de pensar o ser. E o núcleo da doutrina parmenídica está na sua afirmação de que pensar e ser é o mesmo (frag. 3). No frag. 8, Parmênides define o ser e encontra nele a medida do pensar.

A terceira parte do poema começa no penúltimo parágrafo do frag. 8 (“Com isto ponho fim ao discurso digno de que te dirijo”…), e ocupa-se do caminho da opinião. Aqui, Parmênides desenvolve a sua cosmologia. Desde a antiguidade discute-se o modo como estas duas partes do poema possam ser conciliadas. (Excertos de Gerd Bornheim, “Os Filósofos Pré-Socráticos”)

Carneiro Leão

HOMEM aqui está pelo humano. O humano do homem é o mistério de um cruzamento, do cruzamento de todos os caminhos. Em tudo que é e não é, em tudo que parece ser e não ser, em tudo que faz e/ou deixa de fazer, o homem cumpre sempre em silêncio, no silêncio da linguagem, um encontro e desencontro consigo e com os outros. E a travessia da existência, em que se reúnem num só e mesmo percurso todos os caminhos. O caminho de ser, o caminho de não ser, o caminho de parecer pertencem, constitutivamente, a todo percurso humano dos homens, em qualquer caminho. É o que, aqui e agora, vamos tentar deixar aparecer, refletindo não sobre, mas a partir de alguns versos do Poema, Περι φύσεως [Peri physeos], de Parmênides, seguindo a 5a. edição dos Fragmentos dos Pré-socráticos, de Diels-Kranz, Zurique, 1996.

Não nos move nenhuma preocupação com questões de crítica textual [[Georg Christoph Lichtenberg é um sábio da universidade de Goettingen. Nasceu em 1742 e faleceu em 1799. De certa feita, disse que todo texto é um espelho. Macaco quando olha no espelho, não vê apóstolo. Só vê macaco!]]. Estamos que já não é possível, nem importa, saber hoje, o que, realmente, pensou Parmênides, há mais de dois milênios e meio.

Eudoro de Sousa

50. Quem, desprevenido de especulações, percorra a bibliografia de Parménides, dos dois ou três últimos decênios, mas bem atento à [90] diversidade das versões de alguns fragmentos em idiomas modernos, não poderá esquivar-se a uma impressão desconcertante. Com efeito, de tão grande número de páginas impressas em livros e periódicos especializados, ressalta a certeza de que certas passagens do poema não podem ser entendidas, e, por conseguinte, traduzidas, senão à luz de uma ideia acerca do pensamento do filósofo de Eléa, que o intérprete ou o tradutor já havia formado, antes de se abeirar do texto. É claro que o factor da surpresa resultante de averiguar o facto reside na expectativa inversa, decerto a mais razoável; isto é, de que só a leitura e correcta interpretação do texto podem servir de fundamento à compreensão do único e verdadeiro sentido da doutrina nele e através dele expressa. Para estancar a fonte de tão irreprimível espanto, talvez não haja outro recurso, senão o de encararmos o estranho procedimento do exegeta como análogo ao do cientista que tenta verificar, pela experiência, a justeza e a veracidade de uma hipótese mais ou menos audaciosa. É bem certo, todavia, que, exceptuado um caso a que logo nos referiremos, ainda não encontramos nem um leve aceno a que se houvesse considerado as tais ideias preconcebidas como hipóteses sujeitas a verificação experimental. A única excepção que se nos depara, por via da mencionada regra, é importante e notabilíssima. Tão notável, que só a descobrimos por força da sua própria singularidade; tão importante, que o pressuposto directamente formulado por K. Deichgräber (1959) e, indirectamente, por W. R. Chalmers constitui-se talvez como o único agente propulsor de todas as pesquisas que definitivamente ultrapassaram a imagem de um Parménides só interessado na mais dessangrada das abstracções, aquela, precisamente, que Nietzsche denunciou há um século, nas bem conhecidas páginas da sua Filosofia na Época Trágica dos Gregos (Ed. Musarion, IV, pp. 151 e segs.; Parménides, §§ 9 e 10). Entretanto, o tal pressuposto é dos que não afrontam qualquer filólogo clássico ou historiador da filosofia antiga, por muito alto que pretenda manter as suas legítimas exigências de objectividade científica; trata-se, pura e simplesmente, da unidade do poema «físico» de Parménides. Não falamos, é claro, de uma unidade externa de justaposição, mas de uma unidade interna de composição. O saber, como toda a gente sabe, que a obra se divide em três partes, vindo uma após outra; que a primeira («Proémio») é constituída pelos trinta e dois versos do frg. 1, a segunda («Via da Verdade»), pelos frgs. 2-8, e a terceira («Opinião dos Mortais»), pelos demais fragmentos, não impede que haja sucedido o que, na realidade, sucedeu, desde as primeiras décadas do século xix, ou, em termos mais evocativos, desde o «despertar da [97] consciência histórica»: num movimento que, pelo menos ao nível didáctico, não consta que já tenha cessado, a maior e melhor parte da meditação atenta e da atenção reverente de filólogos e filósofos tem incidido, com notada exclusividade, nos fragmentos da segunda parte. Semelhante tratamento não ofende a «unidade externa de justaposição», pois, com o pensamento fixo na exterioridade das partes, nada obsta a que se concebam a primeira e a terceira como literary devices (Tarán) e, por conseguinte, tudo nos dissuade de solicitar dos alegados artifícios a expressão de algum compromisso com a verdadeira intenção do poema. Mas, quanto à «unidade interna de composição»? Neste caso, que é o do pressuposto das mais recentes investigações, começam a tornar-se suspeitos de inveracidade e inverosimilhança todos os ensaios interpretativos que, de modo mais ou menos reservado, relegam para o plano do acessório, do adventicio, do episódico, ou até do supérfluo, o conteúdo filosófico do «Proémio» e da «Doxa». Também é certo que o mesmo pressuposto não ordena o contrário: que o saibamos, ainda ninguém se propôs o mister de rebaixar a «ontologia racional» da segunda parte, para exaltar a visão apocalíptica da primeira, e a cosmologia doxográfica, da terceira. O pressuposto que, sem exagero, apelidaríamos de fundamental (há outros que, naturalmente, decorrem dele), coloca-nos defronte a esta única exigência: procurar, no todo, o sentido de cada uma das partes, e, em cada uma das partes, o sentido do todo, ou, pelo menos, buscar, sem esmorecimento, a inter-relação das partes, de modo que elas se mostrem como o que, na verdade, são — partes de um todo; ou ainda, tentar surpreender o ponto em que emerge ao nível da expressão verbal a originária intenção do filósofo, aquela, precisamente, que une as três partes de maneira que nenhuma delas desmereça da mesma reflexão demorada e atenta. De facto, os trabalhos publicados nas duas ou três últimas décadas e, em particular, dois dos mais recentes (Mansfeld, Tarán) deixam para trás, como questão pacífica, a «unidade interna de composição». Se, a partir daí, as discussões prosseguem em sentidos contraditórios, é porque do pressuposto fundamental surgiram outros dois, no ponto em que mais importava determinar concretamente a já assegurada unidade do poema filosófico de Parménides. O litígio dá-se, todo ele, no divisor de águas em que se veio constituindo a relação entre a «Via da Verdade» e a «Opinião dos Mortais»; e, ao que parece, ninguém dará um passo decisivo ao encontro daquela determinação, sem que opte previamente por um, e só um, de dois membros de uma alternativa: ou, de algum modo, a «Doxa» se encontra no prolongamento da «Verdade», ou a lógica [92] do terceiro excluído se ergue como obstáculo intransponível por toda e qualquer tentativa de conciliar a verdade do ser e a opinião dos mortais.

Julián Mariás

Parmênides de Eléia, na Magna Grécia, é o filósofo pré-socrático mais importante, o fundador da metafísica, em virtude de sua dupla descoberta: do ente (on) e da mente ou visão intelectual e imediata (noûs). Viveu desde fins do século VI até a primeira metade do V. Sua tradição imediata é a pitagórica e talvez a de Xenófanes, se bem que provavelmente indireta. Só se conservam fragmentos de seu grande poema em hexâmetros, que trazia o título tradicional Sobre a natureza (Peri physeos).

Parmênides determina todo o destino da filosofia do Ocidente, e muito especialmente da helênica. A antropologia posterior estará condicionada por seu pensamento, mas restam apenas fragmentos no que se refere diretamente ao homem; só há alusões vagas, que se podem interpretar unicamente a partir dos pressupostos gerais de sua filosofia. Para Parmênides, à parte de uma via impraticável, que é a que diz; que as coisas não são, há duas vias, às quais denomina via da verdade e via da opinião dos mortais: a primeira é a mente, o nus,, divino e comum a todos os homens, e conduz ao ente, uno, imóvel e eterno; a segunda é a da sensação, múltipla e passível de contrariedade, e conduz às coisas, muitas e mutantes, perecedeiras e corruptíveis como o corpo. O homem, pois, segundo participe do nus ou da sensação, reporta-se ao ente e é eterno como ele, ou às coisas, e é mortal como as mesmas. Em um ou outro caso, alcança a verdade do que as coisas são ou só a opinião, que afirma que as coisas são e não são, isto é, mostram uma aparência mutante que não corresponde à sua imobilidade real do ponto de vista do ser.

“É mister que aprendas todas as coisas, tanto o coração intrépido da Verdade bem redonda, quanto as opiniões dos mortais, nas quais não reside verdadeira certeza.” (Fr. 1 de Diels.)

“A (via) de que é e que é impossível que não seja, é a via da Persuasão (pois a Verdade a acompanha); a de que não ê e não é necessário que seja, esta, afirmo-te, é uma via completamente impraticável; pois nem podes conhecer o que não é (pois é impossível), nem dizê-lo; pois é o mesmo a visão noética (noein) e o ser.” (Fr. 4 e 5 de Diels!)

“Assim, segundo a opinião (dos mortais), as coisas chegaram a ser e são agora; e perecerão após se terem desenvolvido. A cada uma destas coisas, os homens puseram um nome determinado.” (Fr. 19 de Diels.)

Com os pressupostos antes Indicados, é claro o sentido destes fragmentos densos e herméticos. O coração intrépido (atremés) da verdade é uma primeira alusão à imobilidade e permanência do ente; a redondeza é a do ente maciço como uma esfera, e este ente só aparece ante a visão do nus, e por isso pode dizer que são o mesmo, sem que isto signifique nenhuma absurda identificação idealista do ser e do pensar, que Parmênides não pôde conjeturar. Os nomes que os homens põem às coisas significam a convenção (nomus), que se defrontará com a natureza (physis) em toda a filosofia posterior, como o ser verdadeiro com a opinião aparencial.

O melhor estudo publicado acerca de Parmênides é o de Karl Reinhardt: Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie (1916).

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