Ortega y Gasset: A VIDA INVENTADA

III O ESFORÇO PARA POUPAR ESFORÇO É ESFORÇO — O PROBLEMA DO ESFORÇO POUPADO — A VIDA INVENTADA

Meu livro A rebelião das massas (Traduzido em português por LIAL, Rio de Janeiro, 1959, 2.a ed., 1962) está inspirado, entre outras coisas, pela espantosa suspeita que sinceramente sentia então — ali por 1927 e 1928; notem-no os senhores, as datas da prosperity — de que a magnífica, a fabulosa técnica atual corria perigo e perfeitamente podia ocorrer que se nos escorresse por entre os dedos e desaparecesse em muito menos tempo de quanto se pode imaginar. Hoje, cinco anos depois, minha suspeita não fêz senão aumentar pavorosamente. Vejam, pois, os engenheiros como para ser engenheiro não basta com ser engenheiro. Enquanto se estão ocupando em sua faina particular, a história lhes retira o solo debaixo dos pés.

É preciso estar alerta e sair do próprio ofício: explorar bem a paisagem da vida, que é sempre total. A faculdade suprema para viver não a dá nenhum ofício, nem nenhuma ciência: é a sinopse de todos os ofícios e todas as ciências e, de resto, muitas outras coisas. É a integral cautela. A vida humana e tudo nela é um constante e absoluto risco. Todo o quociente se vai pelo ponto menos previsível: uma cultura se esvazia inteira pelo mais imperceptível ralo. Mas deixando de lado estas, que são, ainda que iminentes, meras possibilidades, recapacite o técnico simplesmente comparando sua situação de ontem com a que faz presumir o amanhã.

Uma coisa é, pelo menos, claríssima: que as condições de toda ordem, sociais, econômicas, políticas, em que trabalhará amanhã são sumamente distintas daquelas em que trabalhou até hoje.

Não se fale, pois, da técnica como da única coisa positiva, da única realidade incomovível do homem. Isso é uma estupidez, e quanto mais cegos estejam por ela os técnicos, mais provável é que a técnica atual acabe, por ruir e periclitar.

Basta com que mude um pouco substancialmente o perfil do bem-estar que se esboça diante do homem, que sofra uma mutação de algum vulto a ideia da vida, da qual, a partir da qual e para a qual faz o homem tudo o que faz, para que a técnica tradicional se abale, se desconjunte e tome outros rumos.

quem acredite que a técnica atual está mais firme na história que outras porque ela mesma, como tal técnica, possui ingredientes que a diferenciam de todas as outras, por exemplo, seu embasamento nas ciências. Esta presumida segurança é ilusória. A indiscutível superioridade da técnica presente, como tal técnica, é, por outro lado, seu fator de maior fraqueza. Se se baseia na exatidão da ciência, quer dizer-se que se apoia em mais supostos e condições que as outras, ao fim e ao cabo mais independentes e espontâneas.

Todas estas seguranças são as que precisamente estão fazendo perigar a cultura europeia. O progressismo, ao acreditar que já se havia chegado a um nível histórico em que não cabia substantivo retrocesso, senão que mecanicamente se avançaria até ao infinito, afrouxou as ca-vilhas da cautela humana e deu lugar a que irrompa de novo a barbárie no mundo.

Mas deixemos isto, já que não é matéria em que possamos entrar agora seriamente. Resumamos, ao contrário, quanto eu disse até agora:

1.°) Nãohomem sem técnica.

2.°) Essa técnica varia em máximo grau e é sobremaneira inestável, dependendo qual e quanta seja em cada momento da ideia de bem-estar que o homem tenha então. Ao tempo de Platão, a técnica dos chineses, em não poucos setores, era incomparavelmente superior à dos gregos . Existem certas obras da técnica egípcia que são superiores a quanto hoje faz o europeu; por exemplo, o lago Meris, de que fala Heródoto, que um tempo se acreditou fabuloso e cujo resíduo foi depois descoberto. Nesta gigantesca obra hidráulica se armazenavam 3 430 000 000 de metros cúbicos, e graças a isso a região do Delta, que hoje é um deserto, era superlativamente fértil . O mesmo acontece com os foggara do deserto saárico.

3.°) Outra questão é se não há em todas as técnicas passadas um torso comum em que foi acumulando seus descobrimentos, mesmo através de não poucos desaparecimentos, retrocessos e perdas. Em tal caso, poder-se-ia falar de um absoluto progresso da técnica. Mas sempre se correrá o risco de definir este absoluto progresso do ponto de vista técnico peculiar àquele que fala, e esse ponto de vista não é o absoluto, evidentemente . Enquanto ele o está afirmando com louca, a humanidade começa a abandoná-lo.

Logo mais falaremos um pouco dos diversos tipos de técnica, de suas vicissitudes, de suas vantagens e suas limitações; mas agora nos convém não perder de vista a ideia fundamental do que é a técnica, porque ela encerra os maiores segredos.

Atos técnicos — dizíamos — não são aqueles em que fazemos esforços para satisfazer diretamente nossas necessidades, sejam estas elementares ou francamente supérfluas, mas aqueles em que dedicamos o esforço, primeiro, para inventar e, depois, para executar um plano de atividade que nos permita:

1.° Assegurar a satisfação das necessidades, evidentemente, elementares.

2.° Conseguir essa satisfação com o mínimo esforço.

3.° Criar-nos possibilidades completamente novas produzindo objetos que não existem na natureza do homem. Assim, o navegar, o voar, o falar com o antípoda mediante o telégrafo ou a radiocomunicação.

Deixando por ora o terceiro ponto, notemos os dois traços salientes de toda técnica: que diminui, às vezes quase elimina, o esforço imposto pela circunstância e que o consegue reformando esta, reagindo contra ela e obrigando-a a adotar formas novas que favorecem ao homem.

Na poupança de esforço que a técnica proporciona podemos incluir, como um de seus componentes, a segurança. A precaução, a angústia, o terror que a insegurança provoca são formas do esforço, da imposição por parte da natureza sobre o homem.

Temos, pois, que a técnica é, assim, o esforço para poupar esforço ou, em outras palavras, é o que fazemos para evitar por completo, ou em parte, as canseiras que a circunstância primariamente nos impõe. Nisto se acha toda gente de acordo; mas é curioso que somente se entende por uma de suas faces, a menos interessante, o anverso, e não se percebe o enigma que seu reverso representa.

Não se cai na conta do surpreendente que é que o homem se esforce precisamente em poupar-se esforço? Dir-se-á que a técnica é um esforço menor com que evitamos um esforço muito maior e, portanto, uma coisa perfeitamente clara e razoável . Certo; mas isso não é o enigmático, senão este outro: Onde parará esse esforço poupado e que fica disponível? A coisa ressalta mais se empregamos outros vocábulos e dizemos: se com o fazer técnico o homem fica isento das canseiras impostas pela natureza, que é o que fará, que canseiras ocuparão sua vida? Porque não fazer nada é esvaziar a vida, é não viver; é incompatível com o homem. A questão, longe de ser fantástica, tem hoje já um começo de realidade. Até uma pessoa aguda, certamente, mas que é somente economista — Keynes — se formulava esta questão: dentro de pouco — se não houver retrocesso, entende-se — a técnica permitirá que o homem não tenha que trabalhar mais que uma ou duas horas por dia. Pois bem: que fará o resto das vinte e quatro? De fato, em não escassa medida, essa situação é já a de hoje: o operário trabalha hoje oito horas, e, em alguns países, somente cinco dias — e, ao que parece, este será o porvir imediato geral: trabalhar somente quatro dias semanais; que faz esse operário do resto enorme de seu tempo, do âmbito ôco que fica em sua vida?

Mas o fato de a técnica atual apresentar tão às claras esta questão não quer dizer que não preexista desde sempre em toda técnica, pôs-to que toda ela leva a uma poupança de cancei-ra e não acidentalmente ou como resultado qué sobrevém ao ato técnico, senão que esse afã de poupar esforço é o que inspira a técnica. A questão, pois, não é adjacente, senão que pertence à própria essência da técnica, e esta não se entende se nos contentamos com confirmar que poupa esforço e não nos perguntamos em que se emprega o esforço disponível.

E eis aqui como a meditação sobre a técnica nos faz topar dentro dela, como com o caroço num fruto, com o raro mistério do ser do homem. Porque é este um ente forçado, se quer existir, a existir na natureza, submerso nela; é um animal. Zoologicamente, vida significa tudo o que é preciso fazer para sustentar-se na natureza. Mas o homem ordena-as para reduzir ao mínimo essa vida, para não ter que fazer o que tem que fazer o animal. No vão que a superação de sua vida animal deixa, dedica-se o homem a uma série de tarefas não biológicas, que não lhe são impostas pela natureza, que ele se inventa para sisi mesmo. E precisamente a essa vida inventada, inventada como se inventa um romance ou uma peça de teatro, é ao que o homem chama vida humana, bem-estar. A vida humana, pois, transcende da realidade natural, não lhe é dada como lhe é dado à pedra cair e ao animal o repertório rígido de seus atos orgânicos — comer, fugir, nidificar, etc. — Senão que o homem a faz, e este fazer a própria vida começa por ser a invenção dela. Como? A vida humana seria então em sua dimensão específica. . . uma obra de imaginação? Seria o homem uma espécie de romancista de si mesmo que forja a figura fantástica de um personagem com seu tipo irreal de ocupações e que para conseguir realizá-lo faz tudo o que faz, ou seja, é técnico?

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