Needleman Filosofia

Excerto da tradução publicada pela Editora Palas Athena

A magia da autêntica filosofia é a magia do ato especificamente humano de autoquestionamento, o estar diante da questão de si mesmo. Ao empregar a analogia do amor, não fui meramente literário. É como o amor; é o amor. Como é possível? Por que chamar de “amor”, exceto como recurso poético, a esse perturbador interesse em idéias como verdade, realidade e ser?

Para responder a esta pergunta podemos voltar-nos para Platão, que definiu o amor como um empenho, uma busca pelo que é superior e maior do que nós mesmos; uma busca que se encontra no próprio âmago da psique humana. O homem, porém, faz mais do que simplesmente buscar; ele não é apenas uma busca por imergir no ser absoluto; ele também busca a consciência do ser, a sua compreensão.

Platão deu a este anseio um nome: Eros, o deus do amor. Ele concede à figura de Sócrates ser o porta-voz dessa idéia de amor. Sócrates, por sua vez, evoca sua própria “mestra na arte do amor”, a misteriosa Diotima. O amor, diz ela, é uma força espiritual (daimoniondaimon), e, como tal, pertence ao reino intermediário entre o céu e a terra, os deuses e os mortais. Tanto no homem como no universo, no microcosmo e no macrocosmo, existe o mundo do Intermediário, transmitindo e recebendo entre os níveis de existência. Não se trata simplesmente de Platão ver o universo em “três níveis” – terra, céu e um reino intermediário, o reino do daimoniondaimon, o elo (syndesmos). As coisas normalmente são apresentadas desta forma mítica com o propósito de serem sentidas – com o propósito de que a idéia oriente a conduta humana, e não para tão-somente ocupar as atividades de suas faculdades intelectuais. A conduta humana não pode ser orientada por idéias; estas não poderão indicar um sentido, a menos que sejam vividas de maneira equivalente ao que ocorre com os verdadeiros sentimentos.

Vemos, desta forma, a idéia da natureza tríplice do homem e do universo expressa diversamente por cada cultura e nação: terra, céu e o movimento intermediário – os “mensageiros dos deuses”, os demônios da Antigüidade ocidental, as daquinis do budismo tibetano, as valquírias dos teutões e os anjos do judaísmo e do cristianismo. A natureza tríplice do mundo real é uma idéia básica e fundamental, que necessita de uma expressão mítica a fim de ser sentida e poder orientar a vida humana. A realidade tríplice existe em todos os níveis de existência, e os níveis são muitos. Mas a idéia de muitos níveis envolve várias tríades, diversos graus de “céu-terra-daimonion – daimon”.

Contudo, a doutrina dos diversos níveis, das muitas trindades, é outra idéia, uma idéia separada. A filosofia antiga, sob a forma do pensamento mítico, empregou uma idéia por vez. Céu-terra-daimonion – daimon, superior-inferior-intermediário é um princípio que necessita ser absorvido em sua simplicidade, ou seja, no que tange à mente humana é básico e simples; e, desse modo, os ensinamentos antigos tornam possível a apreensão de uma idéia por vez. É muito diferente do tipo de pensamento que busca complexidade, ou melhor, complicação. A complicação de idéias é resultante de uma busca prematura e impaciente da totalidade. Quando a filosofia se rende a essa impaciência, começa a perder seu verdadeiro poder sobre a vida humana.

Referimo-nos aqui à idéia da força intermediária no homem e no universo, que tem por uma de suas denominações amor, a busca do superior empreendida pelo inferior. O amor dirigido do alto para o inferior recebe outros nomes: Hermes é o representante dessa espécie de amor, assim como o deus egípcio Thot, trazendo ao homem os sábios ensinamentos provindos de Deus. O próprio eros é uma força que opera em ambas as direções. Porém, o aspecto de eros aqui enfocado aponta para cima, sempre para cima, tanto no cosmos interior como exterior.

“- O que então, é o Amor? – perguntei. – É ele mortal? -Não.

– …(Ele) não é mortal nem imortal, mas algo entre ambos.

– Mas o que é ele, Diotima?

– Um grande gênio (daimoniondaimon), e, qual todo gênio, intermediário entre o divino e o mortal.

– E qual é – indaguei – o seu poder?

– O de servir de intérprete – respondeu ela – entre os deuses e os homens, transmitindo aos deuses as súplicas e sacrifícios do homem, e, ao homem, as determinações dos deuses e as recompensas; é o mediador que transpõe as barreiras que os separam, e desse modo, através dele, o universo fica ligado… Porque a divindade não tem comércio com os homens, mas através do Amor todo o relacionamento e diálogo entre deuses e homens… acontece. A sabedoria que compreende este convívio é espiritual; toda a sabedoria restante, como a das artes e ofícios, é medíocre e vulgar. Esses gênios ou forças intermediárias são muitos e diversos, e um deles é o Amor.

– E quem – perguntei – foram seu pai e sua mãe?

– A história – disse ela – é um tanto longa…
Platão, Symposium 203, The Dialogues of Plato, 4’ ed., trad. Benjamin Jowett, Oxford University Press, Oxford, 1953. (Existem várias traduções em língua portuguesa, publicados sob o nome de Banquete. N. do E.)

Contar essa “história” é o principal objetivo deste livro. A história, a identificação e o fortalecimento do impulso filosófico, ainda não foi relatada no tempo atual. É uma história sobre mim mesmo e que ainda não me foi contada. Mas como contá-la agora? O que será o pensamento mítico para você e para mim? Como reconhecer o amor ao saber, a necessidade de saber, sem colocá-lo em luzes de neon ou servi-lo pré-digerido? Como evitar a romantização do desejo da verdade? Como encarar o fato de que as grandes idéias, em si, não bastam e que, ainda assim, sem elas nada nos é possível? O coração da filosofia está sempre pulsando. A verdade, as idéias provindas de um nível superior estão constantemente me julgando – e a você também, leitor. Você acha que poderá escapar?

– A história – disse ela – é um tanto longa, todavia vou contá-la. No dia em que nasceu Afrodite, houve um banquete de todos os deuses, dentre os quais o deus Poros ou Abundância, filho de Métis, ou Prudência. Acabada a ceia, Pênia, a Pobreza, como de costume em tais ocasiões, aproximou-se da porta para esmolar. Abundância, embriagado pelo néctar… penetrou nos jardins de Zeus, caindo em sono profundo. Pobreza, então, considerando sua falta de abundância, engendrou ter um filho dele e, assim, deitou-se a seu lado, concebendo o Amor (Eros), que, em parte por ser amante natural da beleza, sendo bela a própria Afrodite, e também por ter sido gerado em seu natalício, é o seguidor e servo de Afrodite. E sua sorte é idêntica à de seus pais. Primeiramente, ele é sempre pobre e está longe de ser terno e belo como muitos o imaginam; é rude e esquálido, não possui calçado nem teto; exposto à terra nua, deita-se a céu aberto, nas ruas, ou junto às portas das casas para repousar; tal como sua mãe, está em eterna penúria. Como o pai, todavia, com o qual parcialmente se assemelha, está sempre tramando contra os justos e os bons; é arrojado, empreendedor, um caçador pujante, sempre a tecer uma intriga ou outra, hábil na busca de sabedoria e fértil em recursos: filósofo em todas as ocasiões, terrível como um sofista, sedutor e feiticeiro. Por sua natureza, não é mortal nem imortal, mas vivo e florescente num instante de fartura e morto em outro instante, no mesmo dia, ganhando vida novamente graças à natureza do pai. No entanto, tudo nele que sempre aflui, sempre, também, se esvai, de modo «si I que ele nunca empobrece nem enriquece, bem como está a meio caminho “-* a; entre a ignorância e o conhecimento. Eis a verdade da questão: deus algum é filósofo ou almeja a sabedoria, porque já é sábio; homem algum, tampou- -co, sendo sábio, almeja a sabedoria. Tampouco o ignorante persegue a sabedoria. Aí reside o mal da ignorância: em não ser nobre, nem bom, nem sábio e ter a ilusão de sê-lo em grau suficiente. Ninguém deseja senão o de que se julga privado. (Symposium 203-204, trad. Jowett)

Teremos diversas razões para retomar Platão e seu ensinamento sobre o amor e a recordação. Antes de concluir este capítulo introdutório, voltemos ao mundo em que vivemos, o século XX, o mundo da tecnologia avançada, da energia nuclear, da televisão, dos computadores, da crise ecológica e energética, da guerra mundial iminente; o mundo no qual todos os padrões de vida que orientaram a humanidade por milênios estão desmoronando-se, em termos de estrutura familiar, natureza do trabalho e vocação, indicadores de identidade pessoal, valor social e serviço aos demais; no significado da riqueza e da pobreza; nas complexas ambigüidades da pesquisa científica -o mundo do agora. Este é o mundo em que vivemos: o mundo das dificuldades e problemas, das ameaças de destruição, das promessas de progresso sem precedentes. Para nós, estas crises, problemas e promessas constituem o mundo das aparências. É entre estas aparências que “experienciamos” nossa questão; a questão do significado e do propósito de nossas vidas.

Na história da filosofia, a idéia do mundo das aparências refere-se a algo um tanto diferente, de grande interesse mas não relevante, de imediato, para o que estamos abordando agora. O mundo das aparências consiste, tradicionalmente, no mundo das coisas, das realidades externas – mesas, cadeiras, montanhas, planetas, plantas, animais e as outras pessoas -, tudo aquilo que aos sentidos se apresenta como uma entidade; o mundo em que aparentemente vivemos e nos movemos. Diversos filósofos, antigos e modernos, argumentaram que esse mundo das coisas não é, em absoluto, aquilo que aparenta ser; por detrás dessas aparências existe um outro mundo, o mundo real que existe em si e por si, sendo um engano acreditar que aquilo que enxergamos e tocamos no transcurso de nossa vida seja a realidade última.

O tradicional problema da filosofia consiste em saber se as coisas do mundo são reais ou ilusórias. Esta formulação, contudo, não é, aqui, diretamente relevante para nós. Não são as coisas mas as situações que configuram o mundo em que vivemos, o mundo que se nos apresenta e reivindica ser real. As situações e os problemas de nossa vida cotidiana, as crises e ambigüidades são, em si, o nosso “mundo das aparências”.

Por detrás destas aparências existe um mundo de auto-questionamento em que precisamos penetrar. Este mundo real é exatamente tão difícil de ser alcançado como o misterioso númeno de Kant ou as remotas Formas platônicas. Tal como estes mundos elevados, ele se encontra fechado à nossa mente e aos nossos sentidos comuns. É um mundo que exige, também, uma faculdade diferente de conhecimento – um poder da mente que Sócrates pretendeu desenvolver no homem. É nosso objetivo, neste livro, esclarecer qual seja esse poder, que reside não na habilidade de conhecer, mas na habilidade de perguntar. Atrás do problema encontra-se a Questão.

Abellio, Raymond (29) Antiguidade (26) Aristotelismo (28) Barbuy, Heraldo (45) Berdyaev, N A (29) Bioética (65) Bréhier – Plotin (395) Coomaraswamy, Ananda (473) Enéada III, 2 (47) (22) Enéada IV, 3 (27) (33) Enéada IV, 4 (28) (47) Enéada VI, 1 (42) (32) Enéada VI, 2 (43) (24) Enéada VI, 3 (44) (29) Enéada VI, 7 (38) (43) Enéada VI, 8 (39) (25) Espinosa, Baruch (37) Evola, Julius (108) Faivre, Antoine (24) Fernandes, Sergio L de C (77) Ferreira da Silva, Vicente (21) Ferreira dos Santos, Mario (46) Festugière, André-Jean (41) Gordon, Pierre (23) Guthrie – Plotinus (349) Guénon, René (699) Jaspers, Karl (27) Jowett – Plato (501) Kierkegaard, Søren Aabye (29) Lavelle, Louis (24) MacKenna – Plotinus (423) Mito – Mistérios – Logos (137) Modernidade (140) Mundo como Vontade e como Representação I (49) Mundo como Vontade e como Representação II (21) Míguez – Plotino (63) Nietzsche, Friedrich (21) Noções Filosóficas (22) Ortega y Gasset, José (52) Plotino (séc. III) (22) Pré-socráticos (210) Saint-Martin, Louis-Claude de (27) Schuon, Frithjof (358) Schérer, René (23) Sophia Perennis (125)