Filosofia – Pensadores e Obras

ateísmo

(gr. atheotes; lat. atheismus; in. Atbeism; fr. Athéisme; al. Atheismus; it. Ateismó).

É, em geral, a negação da causalidade de Deus. O reconhecimento da existência de Deus pode ser acompanhado pelo ateísmo se não incluir também o reconhecimento da causalidade específica de Deus. A primeira análise do ateísmo que a história da filosofia recorda é a de Platão, no X livro das Leis. Platão considera três formas de ateísmo: 1) negação da divindade; 2) crença de que a divindade existe, mas que não cuida das coisas humanas; 3) crença de que a divindade pode tornar-se propícia com doações e oferendas. A primeira forma é o materialismo, que defende que a natureza precede a alma, isto é, que a matéria “dura e mole, pesada e leve” precede “a opinião, a previsão, o intelecto, a arte e a lei”. Esse é o erro de todos os filósofos da natureza que consideram a água, o ar e o fogo como princípios da coisas e os chamam “natureza” por entenderem que são a origem delas (Leis, X, 891 c, 892 b). Para refutar o materialismo só resta demonstrar que a alma precede a natureza; e Platão demonstra que o próprio movimento dos corpos celestes pressupõe um Primeiro Motor imaterial (v. provas de Deus). A segunda forma de ateísmo, que consiste em julgar que a divindade não se ocupa das coisas humanas, é refutada por Platão com o argumento de que isso equivaleria a admitir que a divindade é preguiçosa e indolente, e a considerá-la inferior ao mortal mais comum, que sempre quer aperfeiçoar a sua obra, por menor que seja. Enfim, a maior aberração é a dos maus que creem poder tornar a divindade propícia com donativos e oferendas. Esses põem a divindade no mesmo nível dos cães que, amansados com presentes, permitem que os rebanhos sejam roubados, e abaixo dos homens comuns, que não traem a justiça aceitando presentes ilicitamente oferecidos. Platão é tão severo com essa última forma de ateísmo que, para evitá-la, desejaria impedir qualquer forma de sacrifício privado e admitir só os realizados em altares públicos e com ritual estabelecido (Leis, X, 909 d).

A análise de Platão equivale a dizer que a única forma de ateísmo filosófico é ó materialismo naturalista, para o qual o corpo precede a alma; as outras formas são mais preconceitos vulgares do que crenças filosóficas (embora a primeira delas, o indiferentismo dos deuses, viesse a ser adotada pelos epicuristas). Um olhar para o curso posterior da filosofia ocidental mostra que, ao lado do materialismo, podem ser considerados como formas de ateísmo filosófico o ceticismo, o pessimismo e o panteísmo.

1) Na Idade Moderna, a coincidência entre materialismo e ateísmo foi afirmada por Berkeley, que, precisamente por força dessa coincidência, foi induzido a sustentar a irrealidade da matéria (v. imaterialismo). Se se admitir que a matéria é real, a existência de Deus será inútil, porque a própria matéria vem a ser a causa de todas as coisas e das ideias que estão em nós. A existência da matéria é o principal fundamento do ateísmo, do fatalismo e da própria idolatria (Princ. of Hum. Knowledge, §§ 92-94). Efetivamente se poderia dizer que um dos fundamentos do ateísmo é a causalidade da matéria e não a sua realidade. O materialismo setecentista de La Mettrie e de Holbach, assim como o oitocentista de L. Buchner, Ernst Heckel e Félix Le Dantec, tem esse fundamento. Deus é eliminado como princípio causal de explicação, porque se admite a matéria como tal.

2) A segunda forma de ateísmo filosófico é a cé-tica, cuja primeira manifestação se encontra no neo-acadêmico Carnéades de Cirene (214-129 a.C). Este não só demonstra a debilidade das provas aduzidas sobre a existência da divindade, como também mostra as dificuldades inerentes ao conceito de divindade. P. ex., diz Carnéades: “Se os deuses existem, são vivos; se vivos, sentem… Se sentem, recebem prazer ou dor. E se recebem dor, são passíveis de perturbação e de mudanças para pior; logo são mortais” (Sexto Empírico, Adv. math., IX, 139-140). Ponto de vista análogo é o elaborado na Idade Moderna por Hume, em Diálogos sobre a religião natural. Hume julga impossível uma prova apriorida existência de Deus, já que a existência é sempre matéria de fato. Quanto às provas a posteriori, ele rejeita a validade das provas cosmológicas, considerando ilegítimo perguntar-se a causa de um conjunto de indivíduos. “Se se mostra a causa de cada indivíduo em um conjunto que compreende vinte indivíduos, é absurdo perguntar depois a causa de todo o conjunto, que já foi dada com as causas particulares. Isto quer dizer que não tem sentido perguntar a causa do mundo na sua totalidade. Valor maior tem a prova físico-teológica, mas esta pode permitir somente remontar a uma causa proporcional ao efeito; e, como o efeito, isto é, o mundo, é imperfeito e finito, a causa deveria ser igualmente imperfeita e finita. Mas se a divindade for considerada imperfeita e finita, não há motivo para considerá-la única. Se uma cidade pode ser construída por muitos homens, por que o universo não poderia ter sido criado por muitas divindades ou demônios”? ( Works, II, 1827, p. 413). Por fim, a disputa entre teísmo e ateísmo torna-se uma questão de palavras: “O teísta admite que a inteligência original é muito diferente da razão humana. O ateu admite que o princípio original da ordem tem alguma analogia remota com a própria razão. Quereis então, senhores, ficar discutindo o grau de analogia e entrar numa controvérsia que não admite significado preciso nem, portanto, qualquer conclusão?” (Ibid., 535.) Esse tipo de ceticismo, porém, não é uma forma de ateísmo professado como muitas vezes ocorre com o materialismo: tende, como se vê, a eliminar a dramaticidade da polêmica sobre o ateísmo e a demonstrar que, afinal, ela é insignificante.

3) A terceira forma de ateísmo é o panteísmo. Também aqui não se trata de um ateísmo professado, mas da acusação frequentemente feita aos que identificam Deus com o mundo. Durante muito tempo, Spinoza foi acusado de ateísmo por ter dito Deus sive natura, na verdade, como notava Hegel, dever-se-ia falar, com mais exatidão, de acosmismo. Fichte também foi acusado de ateísmo em consequência de um artigo publicado em 1798 no Jornal Filosófico delena, “Do fundamento da nossa crença no governo divino do mundo”, no qual se identificava Deus com a ordem moral do mundo. Por causa da polêmica que se seguiu a esse artigo, Fichte foi obrigado a demitir-se da Universidade de Iena. Fichte, como Spinoza, rejeitava a acusação de ateísmo; e como quer que se julgue a questão, é certo que panteísmo não é ateísmo professado.

4) ateísmo professado, em algumas de suas formas, é o pessimismo. A desordem, o mal, a infelicidade do mundo são, segundo Schopenhauer, obstáculos insuperáveis tanto para a afirmação do Deus pessoal, como quer o teísmo, quanto para a identificação do mundo com Deus, feita pelo panteísmo (Selected Essays, trad. in. Belfort-Bax, p. 71). O teísmo e o panteísmo pressupõem o otimismo que não só é desmentido pelo fatos, pois vivemos no pior dos mundos possíveis, mas é também pernicioso, porque não faz mais do que atar os homens à impiedosa e cruel vontade de viver (Die Welt, II, cap. 46). Na filosofia contemporânea, a doutrina de Sartre representa um ateísmo pessimista atualizado pelas novas diretrizes da especulação. O fundamento desse pessimismo não são o mal ou a dor como tais, mas a ambiguidade radical, a incerteza da existência humana lançada no mundo e dependente só da sua liberdade absoluta, que a condena ao fracasso. Segundo Sartre, não há Deus, mas há o ser que projeta ser Deus, isto é, o homem: projeto que é, ao mesmo tempo, ato de liberdade humana e destino que a condena à falência. (L’être et le néant, pp. 653 ss.) [Abbagnano]


Doutrina ou atitude que consiste na negação de toda representação de um Deus pessoal e vivo. — Neste sentido restrito, o deísmo, que recusa qualquer representação de Deus, é um ateísmo, como também o panteísmo, que identifica Deus com a natureza (Spinoza); tal é o sentido do ateísmo na linguagem clássica. Hoje, a noção de ateísmo tem muito maior extensão: designa a doutrina ou a atitude que consiste em negar a existência de Deus, qualquer que ele seja. Esta negação nem sempre é explícita; há pessoas, diz Nietzsche, que jamais se preocuparam com a existência ou a não-existência de Deus, seu primeiro e único cuidado sendo relativo aos assuntos humanos, à situação e à destinação do homem. Feuerbach e Marx é que fizeram a moderna teoria do ateísmo: toda crença em Deus constitui uma “alienação”, uma evasão diante da realidade, diante do problema fundamental, que não é o da existência de Deus, mas o do futuro do homem. Quando Marx dizia que ” a religião é o ópio dos povos”, queria dizer que o operário, estando alienado em seu trabalho e vivendo sem esperança de algum dia atingir uma condição melhor neste mundo, deixa-se acalentar pela ideia de um “outro mundo” melhor, no qual teria seu justo lugar, enquanto que, para Marx, sua salvação encontra-se aqui embaixo: a consciência revolucionária deve substituir a consciência religiosa, e a ideia de uma transformação do mundo e dos homens deve dominá-lo: ele deve compreender que o céu não se encontre “além”, mas que, ao contrário, compete aos homens realizá-lo sobre a terra, fazendo reinar a justiça social e uma sociedade de acordo com a moral. Em suma, o ateísmo não exclui a virtudes morais próprias ao humanismo; recusa somente a intervenção de uma Providência divina nos assuntos do mundo e conta apenas com a coragem, o trabalho e a vontade dos homens. (V. Deus.) [Larousse]


(Do grego, a, privativo — theos, Deus).

Convém distinguir entre 1) um estado de ateísmo (psicológico e sociológico), 2) a doutrina do ateísmo e 3) a conduta prática, que mais ou menos se apoia nessa doutrina.

a) O primeiro tópico versa sobre a questão já expressamente tratada por Heródoto: se há povos ou tribos que não praticam um culto ou veneração aos deuses ou a um deus. Essa questão é geralmente respondida de maneira negativa. Mas seja, como for, este ateísmo hipotético só pode ter o sentido de um estado ingênuo, e não reflexivo quanto à existência da divindade.

b) A doutrina do ateísmo pode definir-se só verbalmente como a negação da existência de Deus. A significação filosófica, porém, das teorias, que se colocam sob este título, varia conforme os diversos modos como os termos de Deus e de existência são concebidos. O que para um é uma afirmação de divindade, é ateísmo para outro.

c) Mas o ateísmo declarado aplica-se, quase sempre, ao materialismo; e o panteísta, por seu lado, protesta quando lhe chamam de ateísta. O ateísmo, em relação ao pensamento filosófico como tal, é caracterizado por Francis Bacon da seguinte forma: «é certo e comprovado pela experiência, que pequenos goles na filosofia talvez conduzam ao ateísmo, porém sorvos mais profundos mostram o caminho da religião». — O ateísmo foi caracterizado, não em seu conteúdo doutrinai (aliás muito diversificado), mas em seus preâmbulos psicológicos, como a doutrina dos que não sentem o impulso de remontar à senda da causalidade. e que são pouco familiares com as explicações regressivas. A mesma circunstância parece visar Pascal, quando diz que «o ateísmo é sinal de força de espírito, mas somente até certo grau».

Se se oferece o ateísmo, assim, psicologicamente condicionado, já damos meio passo para compreendê-lo, como uma conduta prática, a atitude dos que vivem, como se Deus não existisse, evidentemente visada por Bossuet: «Há um ateísmo recôndito em todos os corações, que se estende sobre todas as ações: nada se espera de Deus». Os dois aspectos do ateísmo, o teorético e o prático, na vida, tendem a penetrar-se mutuamente. Na teoria, há tendências mais assinaláveis a separá-los. Assim, pela «crítica da razão pura», Kant chega, não à negação formal da existência de Deus, mas à declaração da invalidez de todas as provas que jamais foram alegadas como demonstração da existência de Deus, e à proclamação da incompetência peremptória da razão teorética a estabelecer tais provas. Por outro lado, a razão prática, que regula a conduta humana, exige, com todo o rigor, a ideia de Deus, e não só como ideia, mas como um postulado indispensável daquela. Aqui, em Kant, Deus aparece como o que não se pode provar, mas em todo caso deve existir. Desde que Nikolai Hartmann desenvolveu a sua «Ética», também se manifesta o ponto de vista oposto: um «ateísmo postulativo», que admite que talvez haja um modo de provar teoreticamente algo a favor de Deus, seja essa magnitude racional ou irracional, teísta ou panteísta, porém essa demonstração não tem nenhum valor. Para ele, a razão prática exige a não existência de Deus, pois, para a vida humana, a sua existência é extremamente indesejável, e isto não por motivos libertinistas, mas em nome da moral. Não deve existir um Deus que sirva ao homem de estudo para justificar a sua falta de responsabilidade, que sirva de sanção para uma «missão» que o homem atribui a si próprio ou que, em suma, dê um «sentido» à existência humana. Só em um mundo de necessidades mecânicas há lugar para um ser moral livre; em um mundo criado por uma divindade, segundo um plano, o homem fica anulado como pessoa moral. Termina por afirmar que o comodismo de atribuir a um Deus a «providência» é amoral. As suas afirmativas revelam um modo muito incompleto de conceber a Deus, estranho, sob vários aspectos, se considerarmos o que sobre tal tema especularam as maiores cerebrações da Filosofia. Vide Deus. [MFSDIC]


Do grego, atheos, sem Deus, negação de Deus.

O ateísmo já foi classificado em dogmático, que consiste na negação categórica da existência de Deus, em cético, quando põe em questão a capacidade humana de descobrir e demonstrar essa existência, e critico, quando contesta a validade das provas da existência de Deus.

Em certo sentido, enquanto negam o Deus pessoal e criador, é possível falar em religiões ateias ou ateístas. No budismo originário, por exemplo, conservam-se os deuses védico-bramânicos, concebidos, no entanto, não como seres eternos e criadores, mas sujeitos ao vir-a-ser, superando-se o politeísmo em uma concepção do divino entendido como mistério, que transcende qualquer possibilidade de determinação conceituai.

No sentido corrente da expressão, encontram-se sistemas filosóficos ateus na índia. O samkhya, designado como anisvara, ou nirisvara, quer dizer sem levara, que significa o ser supremo e pessoal, “ateu”, portanto. Poderiam mencionar-se, ainda, o mimansa, e o sistema de Lokayata ou Carvaka. Na China, o filósofo Yang Chu professou um materialismo ateu que se assemelha ao Carvaka. No judaísmo antigo é possível encontrar traços de incredulidade e de ateísmo, Salmos, X, 4; XIV, I, Jeremias, V, 2-12.

As religiões positivas sempre condenaram, por ateísmo, as representações de Deus que não coincidiam com as suas. Do ponto de vista pagão, ateus eram os judeus e os cristãos que se recusavam à prestação do culto. Para os judeus e cristãos, em contrapartida, ateus eram os pagãos adeptos de religiões politeístas.

O politeísmo grego, sem dogmas e sem teologia, era mais prático do que especulativo. Alguns filósofos gregos negaram a existência dos deuses, outros apenas a sua divindade, deixando-os subsistir como homens, ou como demônios, ou nos elementos, os astros, o que correspondia, de certo modo, a uma superação do ateísmo, pois, mesmo como demônios, os deuses podiam ainda ser objeto de culto.

Entre os principais representantes do ateísmo na antiguidade clássica devem ser mencionados Heráclito, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Segundo Heráclito de Éfeso (540 a. C.) o fogo, um fogo eternamente vivo, é a substância primordial e única, da qual todas as coisas procedem e à qual todas retornam, e o mundo, o mesmo para todos os seres, não foi criado por nenhum deus nem por nenhum homem. Redutível a um só princípio, de natureza material, embora sutil e de todas a mais incorpórea, o mundo, eterno e incriado, exclui, tanto em sua origem quanto em sua composição, a interferência de qualquer ente superior ou Deus.

De acordo com Demócrito de Abdera (460 a. C), a realidade se compõe de átomos e do vazio. Indivisíveis, insecáveis, em número infinito, os átomos distinguem-se pela forma, pela ordem e pela posição. Tais diferenças são quantitativas e geométricas, e os movimentos que unem os átomos ou os separam são puramente mecânicos. Os átomos e o vazio, bem como o movimento, são eternos; sempre existiram, e suas combinações, em número infinito, dão origem à formação dos diversos mundos. A lógica, que nos proporciona o conhecimento da verdade, e a física, que nos revela a composição material da realidade, fundam a moral, que nos deve proporcionar a felicidade, libertando-nos do temor dos deuses.

Discípulo de Demócrito, Epicuro de Samos (341-270), dividia a filosofia em canônica, ou lógica, em física e em ética. A lógica nos permite distinguir a “opinião” ou “suposição”, que pode ser verdadeira ou falsa, do que Epicuro chama de “antecipação”, ou ideia geral, sempre verdadeira. Utilizando a lógica, a física nos revela a constituição íntima do real, o princípio de que se compõe a natureza. Segundo Epicuro, nada vem do nada, e o universo se constitui de corpos e do espaço vazio, únicas substâncias reais. Os átomos, indivisíveis, estão em permanente movimento, e de seu encontro resultam as diversas combinações que dão origem às coisas. Só há uma substância incorpórea, o vazio, e a alma humana não passa de um corpo sutil, composto também de átomos, e semelhante a um sopro, dotado de certo calor.

Procurando proporcionar aos homens a tranquilidade, Epicuro se propõe libertá-los do temor dos deuses e do temor da morte. Os deuses não criaram o mundo e dele não se ocupam, não havendo por que temê-los. Quanto à morte, se a dissolução do corpo acarreta a dissolução da alma, não há também por que temê-la, pois enquanto estamos vivos a morte não existe e, quando a morte ocorre, não somos mais. Senhores de nossa conduta, não temos por que temer a Fatalidade, e, afastado o temor dos deuses, da morte e da Fatalidade, a alma conquista a ataraxia, em que consiste a felicidade. Para Epicuro, o ateísmo, além de explicar a constituição do mundo, é a condição da felicidade humana.

Lucrécio (98-55 a. C), inspirando-se na física de Epicuro, escreveu um poema famoso, em seis cantos, De rerum natura (Sobre a natureza), no qual, indo além do mestre, ataca, com veemência, o culto dos deuses e a própria religião, em seus princípios e em seu espírito, mostrando que os deuses eram inúteis, em relação ao sistema materialista, tal como o concebeu Epicuro e, antes dele, Demócrito. Poeta dotado de espírito científico, Lucrécio pressentiu algumas ideias modernas, tais como o movimento universal, a indestrutibilidade da matéria, a pluralidade dos mundos, o evolucionismo, a seleção natural, a hereditariedade e o progresso humano.

Os apologistas cristãos adotaram as teses da filosofia helenístico-romana que negava os deuses como deuses e os admitia como demônios, com a diferença de que, para os pagãos politeístas, havia demônios bons e maus, e, para os judeus e cristãos, os demônios só poderiam ser maus. Elaborada pelos hebreus e pela filosofia helenística, e adotada pela apologética cristã, a interpretação demonística dos pagãos atravessou a Idade Média e o Renascimento, aplicando-se aos deuses das religiões antigas.

Já na idade moderna, procurando superar o dualismo cartesiano, que dividia a substância em res cogitans (coisa pensante) e res extensa (coisa extensa) Spinoza (1632-1677), definindo a substância como o que é em si e por si, reduz todas as substâncias a uma só, Deus ou a Natureza (Deus sive natura), que inclui infinitos atributos, dos quais só conhecemos dois, o pensamento e a extensão. A Natureza, ou Deus, pode ser a natura naturans, criadora, e natura naturata, criada. Os demais seres que não são substâncias, Spinoza os chama de modos, pois não existem por si mesmos. O homem, que é um modo da substância, é determinado por sua essência ou natureza, e a liberdade não passa da consciência da necessidade. Identificando Deus com a natureza, o panteísmo spinozista é, na realidade, um ateísmo, e assim foi entendido, ainda em vida do filósofo, cuja doutrina foi objeto de várias condenações das autoridades eclesiásticas.

O ateísmo da Enciclopédia, ou do Iluminismo, que é a ideologia da Revolução Francesa, é representado, de modo especial, por Diderot, Helvetius, d’Holbach, Voltaire e La Mettrie. Helvetius (1715-1771), por exemplo, ataca os fanáticos religiosos, que “compreendem que devem cegar os povos a fim de subjugá-los”, e d’Holbach (1723-1789) empreende a denúncia sistemática da religião e do Estado. Ambos procuram mostrar que a religião consiste em criar um reino de seres imaginários, um mundo irreal que substitui o mundo verdadeiro.

A religião, além disso, diz d’Holbach, é um excelente instrumentum regni, a serviço daqueles que se acham no poder uma ideologia que consagra os privilégios e os interesses das classes dominantes e os apresenta como se fossem expressão da vontade e da razão divinas. A religião é a arte de embriagar os homens com o entusiasmo, a fim de impedi-los de ocupar-se com os males que lhes são impostos por aqueles que os governam. Com o auxílio dos poderes invisíveis com que os ameaçam, os obrigam a sofrer em silêncio as misérias que lhes são impostas pelos poderes visíveis, fazendo-os acreditar que, se consentirem em ser infelizes neste mundo, serão mais felizes em outro.

Immanuel Kant (1724-1804) é um representante do que se poderia chamar de “ateísmo crítico”, isto é, da posição que contesta a validade das provas da existência de Deus. Na Crítica da Razão Pura, Kant demonstra que os juízos sintéticos a priori, característicos do conhecimento científico, são impossíveis na metafísica, pois a “coisa em si”, Deus, alma, mundo, liberdade, etc, não nos é dada em experiência alguma. A razão forma esses conceitos sintetizando além da experiência, fazendo a síntese das sínteses, porque aspira ao incondicionado, ao absoluto. Nas famosas “antinomias”, Kant mostra que a razão pura prova indiferentemente a finitude e a infinitude do mundo, a liberdade e o determinismo, a existência e a inexistência de Deus. Embora pretendesse destruir a razão para substituí-la pela , Kant, na realidade, fornece armas poderosas ao ateísmo, tornando Deus objeto de uma puramente irracional, de uma crença que não pode justificar-se.

A filosofia de Hegel (1770-1831) comporta, de certo modo, uma interpretação semelhante, pois, invalidando as provas da existência de Deus e tornando-o interior, ou imanente, à natureza, que seria sua exteriorização no espaço, e à história, sua objetivação no tempo, nega a transcendência divina, identificando Deus com o homem, ou o homem com Deus. O Deus hegeliano, que se produz e toma consciência de si mesmo ao longo da história, a rigor, é o próprio homem, no qual o espírito absoluto, na forma da filosofia, e não da religião, alcança a perfeita igualdade ou coincidência consigo mesmo. Imanentismo radical, que faz da história a instância última de toda revelação, o hegelianismo, apesar do idealismo do sistema, pode ser considerado uma forma de panteísmo e de ateísmo crítico.

Após a morte de Hegel, o debate filosófico se concentra no problema de Deus, a propósito do qual se produz a cisão entre a direita hegeliana, espiritualista e conservadora, e a esquerda, materialista e revolucionária. Ludwig Feuerbach (1804-1872), principal representante da esquerda hegeliana, denuncia na antropologia o segredo da teologia. Ao falar de Deus, na realidade o homem fala de si mesmo, alienando sua essência tomada como objeto. A metafísica, por sua vez, não passa de uma teologia laicizada. A crítica da religião, ou da alienação religiosa, implica, assim, a critica da filosofia, que, colocando a essência do homem, o pensamento, fora do próprio homem, o aliena e despoja de sua essência ou atividade, em proveito de uma realidade ilusória.

Deus não passa de um sujeito fantástico, puro produto da imaginação humana. O homem despoja o mundo de seu conteúdo, diz Feuerbach, e transfere esse conteúdo para Deus. O homem pobre possui um Deus rico, e afirma de Deus o que nega de si mesmo. A religião se converte em um “vampiro da humanidade, que se alimenta de sua substância, de sua carne e de seu sangue”. Na Essência do Cristianismo, diz Feuerbach que o momento decisivo da história será aquele em que o homem tomar consciência de que seu único Deus é o próprio homem. O ateísmo de Feuerbach é particularmente importante como momento de transição entre o hegelianismo e o marxismo.

Na Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Karl Marx (1818-1883) afirma que a crítica da religião é a condição primeira de toda critica e que seu fundamento é a verificação de que é o homem que faz a religião e não a religião que faz o homem. Para Marx, a religião é a consciência e o sentimento do homem que, ou ainda não se encontrou, ou já tornou a perder-se. Consciência errada do mundo que, por sua vez, é um mundo falso, a religião, nas palavras de Marx, é a teoria geral desse mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, seu ponto de honra espiritual, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolação e justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não tem realidade verdadeira.

A luta contra a religião, diz Marx, é a luta contra este mundo, do qual a religião é o aroma espiritual. A miséria religiosa é a expressão da miséria real, o protesto contra essa miséria. É o suspiro da criatura oprimida pela infelicidade, a alma de um mundo sem coração, o espírito de uma época sem espírito. A religião é o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo exige que a religião seja suprimida enquanto felicidade ilusória do povo, e a missão da história, após desvanecer-se a vida futura da verdade, é estabelecer a verdade da vida presente. A crítica do céu, diz Marx, transforma-se, assim, em crítica da terra, a crítica da religião em critica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.

Comentando a Essência do Cristianismo, de Ludwig Feuerbach, Friedrich Engels (1820-1895) diz que a natureza existe independentemente de qualquer filosofia, e é a base sobre a qual crescem os homens, produtos da natureza. Fora da natureza e dos homens não há coisa alguma, e os seres superiores, criados por nossa imaginação religiosa, não passam do reflexo fantástico do nosso próprio ser.

Por intermédio de Wagner e de Schopenhauer, Friedrich Nietzsche (1844-1900) também sofreu a influência de Feuerbach. Nas últimas notas que redigiu antes de morrer, encontra-se uma explicação da crença em Deus que muito se assemelha à de Feuerbach. Nietzsche, porém, não formula o problema de Deus em termos especulativos, mas em termos existenciais. O homem, diz o autor do Zaratustra, procura um princípio em nome do qual possa desprezar o homem. Inventa outro mundo para poder caluniar e macular este mundo; na realidade, apreende apenas o nada, e desse nada faz um “Deus” ou uma “Verdade”, chamados a julgar e a condenar esta existência.

Na Vontade de Poder, Nietzsche diz que o ateísmo não era nele um resultado, ou um acontecimento de sua vida, mas uma “coisa instintiva”, tendo imaginado, em certo momento, uma organização das forças ateias. Em uma perspectiva existencial, Nietzsche não afirma propriamente a inexistência, mas a morte de Deus, assassinado pelos próprios homens. Esse acontecimento prodigioso ainda está em caminho, em marcha, não chegou ainda aos ouvidos dos homens e, no entanto, é como se, no horizonte terrestre, o sol se houvesse apagado para sempre. O que o mundo possuía de mais sagrado e de mais poderoso sangrou nas mãos dos homens, e a grandeza desse ato os ultrapassa. Não deverão os homens tornar-se deuses, pergunta Nietzsche, para serem dignos de tal façanha? A morte de Deus prenuncia o niilismo, impondo à filosofia a transmutação de todos os valores, que deverá preparar o advento do super-homem.

Para Augusto Comte (1798-1857) a humanidade, ao longo da história, passa por três estados: o teológico, ou religioso, em que tudo se explica por intermédio dos deuses e forças sobrenaturais; o metafísico ou abstrato, crítico ou de transição, em que as coisas se explicam por meio de entidades abstratas, inerentes às próprias coisas, tais como causa, substância, etc, e no qual Deus é substituído pela Natureza (spinozismo), e finalmente o estado positivo, ou definitivo, em que os homens renunciam ao conhecimento das causas e se atêm ao dado, à observação dos fatos e à determinação das leis que regem seu comportamento. Compreendendo que só se destrói aquilo que se substitui, Comte fundou uma nova religião cujo deus é o “Grande Ser”, a Humanidade. Religião terrena, confinada nos limites da história, a religião positivista, apesar das analogias que apresenta com o catolicismo, é uma forma de ateísmo em que a teologia é substituída pela ciência e Deus pelo próprio homem.

No âmbito da psicologia, Sigmund Freud (1856-1939) é um dos mais ilustres representantes do ateísmo moderno. De seu ponto de vista, todas as instituições e normas culturais têm uma origem puramente humana. A religião nos diria a verdade histórica, deformada e mascarada, no entanto, ao passo que a ciência, ou a explicação racional a desmente. Segundo Freud, a religião é a neurose obsessional e universal da humanidade. Como a da criança, deriva do complexo de Édipo, das relações do pai com o filho. Desse ponto de vista, o criador da psicanálise prevê que o abandono da religião ocorrerá com a fatal inexorabilidade de um processo de crescimento, e que a humanidade se encontra, hoje em dia, precisamente nessa fase da evolução. Retirando do além suas esperanças, diz Freud, e concentrando na vida terrena todas as suas energias liberadas, o homem chegará a tornar a vida suportável a todos, e a civilização ninguém mais esmagará. Poderá dizer então, com o poeta Heine, “abandonamos o céu aos anjos e aos pássaros”.

Representam o ateísmo filosófico em nosso tempo Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. Sob o signo dos gregos e de Nietzsche, Heidegger compreendeu que uma filosofia elaborada na base da negação de Deus continua presa ao problema teológico. A violência da negação se converte em Nietzsche, por exemplo, em afirmação, e um pensamento ateu deve ser elaborado sem referência alguma à ideia de Deus. A filosofia só poderá emancipar-se da teologia quando conseguir formular os problemas filosóficos excluindo totalmente o recurso à hipótese teísta, isto é, fazendo compreender que não há um problema filosófico da existência de Deus.

Definindo o homem pela temporalidade, como ser-para-a-morte, cuja existência autêntica consiste precisamente em tomar consciência da própria finitude, pois o homem é posto ou jogado no mundo para

morrer, Heidegger elimina, implicitamente, a ideia de Deus da filosofia, negando-a pela indiferença, na medida em que, para compreender o homem e o mundo, não a leva em consideração.

Jean-Paul Sartre, no ensaio intitulado O existencialismo é um humanismo, declara que há duas espécies de existencialismo: os cristãos, como Gabriel Marcel e Jaspers, e os ateus, como Heidegger e ele próprio. Criticando o ateísmo dos filósofos que suprimiram a ideia de Deus mas conservaram a ideia de que a essência precede a existência, Sartre observa que o existencialismo ateu é mais coerente, ao afirmar que, se Deus não existe, não existe (em Deus) a ideia prévia ou a essência do homem, havendo ao menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, isto é, a realidade humana.

O homem existe inicialmente, e se define em seguida. Se não pode ser desde logo definido, diz Sartre, é porque, ao existir, não é coisa alguma, e será o que fizer de si mesmo. Assim, não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la. O existencialismo, diz Sartre, não passa de um esforço para tirar todas as consequências de uma posição ateísta coerente. Não é um ateísmo porque se extenue em provar que Deus não existe, pois mesmo que Deus existisse, sua existência não modificaria coisa alguma. O problema, diz Sartre, não é o da existência de Deus; é preciso que o homem se reencontre a si mesmo, e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, mesmo uma demonstração válida da existência de Deus.

Segundo alguns filósofos e homens de ciência, o problema do ateísmo não se apresentaria, na atualidade, em termos teóricos, mas em termos práticos. Deixando de ser tema de controvérsia, teológica ou filosófica, seria o postulado da ciência e da tecnologia, e a lógica, ou o sentido implícito, de um mundo prometeico, que, excluindo qualquer transcendência divina, procura edificar-se em benefício do homem, utilizando apenas as forças e os recursos humanos. [Corbisier]