gr. eros = uma força na mitologia, eros 1; como motor em Empédocles, ibid., kinoun 2; Sócrates como amante, eros 3; teoria platônica de, 4-8; e paixão, 9; em Plotino, 10-11 [FEPeters]
Movimento do coração que nos dirige a um ser, um objeto, um valor universal. — Assim é que Platão no diálogo O banquete distingue diferentes graus de amor, segundo ele se refira a um indivíduo concreto, a uma ideia geral (por exemplo, o amor aos valores nacionais ou profissionais, o amor à ciência etc.) ou à luz da Verdade (amor que requer toda uma iniciação filosófica e religiosa). No que concerne ao amor relativo aos indivíduos, os filósofos escolásticos distinguiam o “amor de benevolência”, que deseja o bem do outro, e o “amor de concupiscência”, que deseja simplesmente se apropriar do outro; só o primeiro possui valor moral. Do ponto de vista psicológico, o amor se forma por um fenômeno de “cristalização”, que foi descrito por Stendhal (Do amor) e que é analisado como uma fixação progressiva da alegria que nos proporciona o intercâmbio com determinada pessoa; Stendhal opõe esse amor verdadeiro ao “amor súbito”, que está frequentemente destinado a desaparecer tão rápido quanto surgiu. Do ponto de vista moral, o amor é em geral definido como uma tendência oposta ao egoísmo. “O verdadeiro amor, escrevia Tolstoi, tem sempre por base a renúncia ao bem individual.” Os moralistas cristãos nele viam a fonte da virtude suprema, a “caridade”. O problema filosófico é o de saber se o amor pode ser meio de conhecimento (Platão; Spinoza: “O amor intelectual de Deus nasce do terceiro gênero de conhecimento”; Fichte em 1806), ou se é uma cegueira do espírito (Descartes: “O amor é uma paixão que pode ser excitada em nós sem que percebamos, de nenhum modo, se o objeto que o causa é bom ou mau”; Nietzsche; Schopenhauer: “O amor é apenas uma armadilha oferecida ao indivíduo para o perpetuamente da espécie”). [Larousse]
É a força primordial do espírito dotado de atividade volitiva, força animadora e criadora de valores. Considerado do ponto de vista de sua essência, e em seu núcleo vivencial, é uma atitude da vontade; considerado enquanto vivência global, é a atitude ou atividade total afirmativa (reconhecedora, criadora, em busca da união) da alma espiritual em frente de pessoas enquanto (real ou potencialmente) portadoras de valores espirituais, em frente destes mesmos valores. Por esta forma, o amor tira de seu isolamento a personalidade individual, levando-a a participar do convívio nas várias formas primordiais da comunidade humana. Radicando-se no conhecimento valorativo, pode elevar-se, em intensidade, acima da clareza do conhecimento e, repercutindo-se neste, pode até dar-lhe forma. Difundindo normalmente, mas não por forma alguma necessariamente, seus raios sobre a vida afetiva, e sustido por esta, o amor não é mero sentimento de prazer, nem uma espécie de “sentimento superior”, isolado. Assim, por exemplo, pode a vontade apreciar no máximo grau uma pessoa (p. ex., Deus), muito embora o sentimento siga outra escala de valores. Antes de mais nada, não se deve equiparar o amor à tendência meramente instintiva (embora “sublimada”). O amor integralmente humano pode, sem dúvida, fundir-se com o instinto para constituir uma totalidade vivencial e elevá-lo, como meio de expressão, a uma superior unidade de sentido, como acontece no matrimônio; mas, por si só, a tendência como tal visa, de acordo com a experiência vivida, a satisfação do apetite dos instintos, convertendo a comparte em meio para esse fim, ao passo que o amor se dirige à comparte, afirmando e criando valor. O amor, enquanto atitude psíquica total, admite evidentemente distintas variedades individuais e típicas; assim, por exemplo, o amor típico do homem difere de algum modo do da mulher.
Amor e respeito não se excluem mutuamente. São. antes, dois aspectos de uma atitude fundamental do ser espiritual-pessoal em face do ser prenhe de valor e, em particular, em face dos portadores pessoais de valor. Pois, assim como em todo anseio de verdade vibra inconscientemente a ordenação lógica do espírito à Verdade absoluta assim também todo genuíno amor espiritual se sente orientado para o Valor supremo absoluto que exige respeito.
O contrário do amor é o ódio, que nega o valor próprio da pessoa odiada. Do mesmo modo que o amor é criador de valor e plasmador de comunidade, assim o ódio destrói o valor e mata a comunidade.
Atendendo a que todo homem, por sua pessoal ordenação ao Valor supremo infinito (Deus), possui um valor próprio irreiterável, e a que ninguém, enquanto vive, pode ser considerado como definitivamente frustrado na consecução do fim de sua vida, existe um dever de amar o próximo em geral, que não comporta exceção. Todavia, isto não exclui, antes inclui, uma ordem e gradação do amor, de acordo com as diversas relações e comunidades humanas e com as distintas classes de valores que as fundamentam. O infinito e, ao mesmo tempo, supremo Valor pessoal de Deus, que é o próprio Amor subsistente, fundamenta a obrigação de amar a Deus. Por um lado, o dever do amor refere-se não só a obras externas, como também à atitude interior; por outro lado, não se refere a esta na medida em que se subtrai ao influxo imediato ou mediato do livre querer (como, p. ex., a apreciação afetiva: simpatia e antipatia), mas enquanto “sim” da vontade radicado no conhecimento, que, reconhecendo o valor pessoal, se inclina para ele e abarca tudo o mais na medida em que pode brotar dele.
O amor de si não se opõe ao amor de Deus e do próximo, antes estes o pressupõem. Pelo que, o altruísmo, a ampliação do eu que transborda para o “nós” não denota oposição ao amor ordenado de si, mas tão-somente ao egoísmo desordenado que se restringe e aferra ao próprio eu. — O amor pessoal ao próximo, baseado na ordem ontológica e valorativa, equidista tanto da mera filantropia sentimental, frequentemente apenas encobridora de refinado egoísmo, como do altruísmo exagerado, que só admite como moralmente defensável a ação subordinada ao bem de outrem. — A compaixão (o tomar parte no sofrimento alheio) deve fomentar o amor recíproco e a eficaz prestação de auxílio, nunca é porém de modo algum a medida única da ação, uma vez que o sofrimento é, não raro, trâmite necessário para valores mais elevados.
Visto que o amor tem em mira, imediata e globalmente no máximo grau, o valor enquanto tal, e a alma espiritual em suas forças criadoras convida com sua intensidade à união com os valores objetivos e suas leis, daí resulta que o amor é, ao mesmo tempo, a força mais poderosa para comunicar uma nobre estrutura à totalidade da vida humana e realizar em toda a sua plenitude a ordem moral. — Willwoll. [Brugger]
(gr. eros, agape; lat. Amor, caritas; in. Love; fr. Amour; al. Liebe; it. Amoré).
Os significados que este termo apresenta na linguagem comum são múltiplos, díspares e contrastantes; igualmente múltiplos, díspares e contrastantes são os que se apresentam na tradição filosófica. Começaremos apontando os usos mais correntes da linguagem comum, para selecioná-los, ordená-los e utilizá-los como critério de seleção e organização dos usos filosóficos desse termo: d) em primeiro lugar, com a palavra amor designa-se a relação intersexual, quando essa relação é seletiva e eletiva, sendo, por isso, acompanhada por amizade e por afetos positivos (solicitude, ternura, etc). Do amor, nesse sentido, distinguem-se frequentemente as relações sexuais de base puramente sensual, que não se baseiam na escolha pessoal, mas na necessidade anônima e impessoal de relações sexuais. Muitas vezes, porém, a mesma linguagem comum estende também para esse tipo de relações a palavra amor, como quando se diz “fazer amor”; b) em segundo lugar, a palavra amor designa uma vasta gama de relações interpessoais, como quando se fala do amor entre amigos, entre pais e filhos, entre cidadãos, entre cônjuges; c) em terceiro lugar, fala-se do amor por coisas ou objetos inanimados: p. ex., amor ao dinheiro, a obras de arte, aos livros, etc.; d) em quarto lugar, fala-se de amor a objetos ideais: p. ex., amor à justiça, ao bem, à glória, etc; e) em quinto lugar, fala-se de amor às atividades ou formas de vida: amor ao trabalho, à profissão, ao jogo, ao luxo, ao divertimento, etc.; f) em sexto lugar, fala-se de amor à comunidade ou a entes coletivos: amor à pátria, ao partido, etc; g) em sétimo lugar, fala-se de amor ao próximo e de amor a Deus.
Sem dúvida, alguns desses significados podem ser eliminados por impróprios, já que podem ser expressos e designados mais exatamente por outras palavras. Assim: d) a relação intersexual só pode ser chamada de amor quando é de base eletiva e implica o compromisso recíproco. Evitar-se-á, assim, chamar de “amor” a relação sexual ocasional ou anônima. No que diz respeito aos usos indicados em c) (isto é, amor a objetos inanimados), está claro que, aí, a palavra amor está por desejo de posse, quando tal desejo atinge a forma dominante da paixão. E, no que tange aos usos indicados em d) (amor a objetos ideais), está também claro que a palavra “amor” está aí a indicar certo compromisso moral, capaz de fixar limites e condições à atividade do indivíduo. Enfim, no que diz respeito a (e) (amor a atividades, etc.) a palavra “amor” está a indicar certo interesse mais ou menos dominante, isto é, mais ou menos incorporado na personalidade do indivíduo, ou até mesmo uma “paixão”. Portanto, pode-se tomar em consideração, como significados próprios e irredutíveis da palavra “amor”, as acepções indicadas em (a), (b), (f), (g). Esses usos revelam de imediato certas afinidades de significado: 1) o amor designa, em todos os casos, um tipo específico de relação humana, caracterizado pela solidariedade e pela concórdia dos indivíduos que dele participam; 2) o desejo, em particular o desejo de posse, não se inclui necessariamente na constituição do amor, pois, se é discutível que se inclua no amor sexual, deve ser totalmente excluído do amor de que se fala em (b), (f), (g); 3) o caráter específico da solidariedade e da concórdia, que constituem o amor, não pode ser determinado de uma vez por todas, já que é diferente, segundo as formas ou as espécies diversas do amor e implica também graus diversos de intimidade, de familiaridade e de emotividade. P. ex., o amor entre homem e mulher, entre pai e filho, entre cidadãos ou entre homens que se considerem como “próximos” tem diferentes bases biológicas, culturais e sociais e não permite a reunião sob o mesmo tipo ou a mesma forma de solidariedade, de concórdia e de co-participação emotiva. Será necessário, portanto, ter em mente essa diversidade ao se considerar o uso que os filósofos fizeram desse termo, já que não raro esse uso é modelado por um ou mais tipos particulares de experiência amorosa.
Os gregos viram no amor sobretudo uma força unificadora e harmonizadora, que entenderam baseada no amor sexual, na concórdia política e na amizade. Segundo Aristóteles (Mel, I, 4,984 b 25 ss.), Hesíodo e Parmênides foram os primeiros a sugerir que o amor é a força que move as coisas, que as une e as mantém juntas. Em-pédocles reconheceu no amor a força que mantém unidos os quatro elementos e, na discórdia, a força que os separa: o reino do amor é o esfero, a fase culminante do ciclo cósmico, na qual todos os elementos estão ligados na mais completa harmonia. Nesse fase, não há nem sol nem terra nem mar, porque não há nada além de um todo uniforme, uma divindade que frui a sua solidão (Fr. 27, Diels). Platão nos deu o primeiro tratado filosófico do amor: nele foram apresentados e conservados os caracteres do amor sexual; ao mesmo tempo, tais caracteres são generalizados e sublimados. Em primeiro lugar, o amor é falta, insuficiência, necessidade e, ao mesmo tempo, desejo de conquistar e de conservar o que não se possui (O Banq., 200 a, ss.). Em segundo lugar, o amor dirige-se para a beleza, que outra coisa não é senão o anúncio e a aparência do bem, logo, desejo do bem (ibid., 205 e). Em terceiro lugar, o amor é desejo de vencer a morte (como demonstra o instinto de gerar, próprio de todos os animais) e é, portanto, a via pela qual o ser mortal procura salvar-se da mortalidade, não permanecendo sempre o mesmo, como o ser divino, mas deixando após si, em troca do que envelhece e morre, algo de novo que se lhe assemelha (Ibid., 208 a, b). Em quarto lugar, Platão distingue tantas formas do amor quantas são as formas do belo, desde a beleza sensível até a beleza da sabedoria, que é a mais elevada de todas e cujo amor, isto é, a filosofia, é, por isso mesmo, o mais nobre (Ibid., 210 a, ss.). Em Fedro, a finalidade é mostrar o caminho pelo qual o amor sensível pode tornar-se amor pela sabedoria, isto é, filosofia, e o delírio erótico pode tornar-se uma virtude divina, que afasta dos modos de vida usuais e empenha o homem na difícil procura dialética (Fed., 265 b. ss.). Essa doutrina platônica do amor, ao mesmo tempo em que contém os elementos de uma análise positiva do fenômeno, oferece também o modelo de uma metafísica do amor, que seria retomada várias vezes na história da filosofia. Aristóteles, ao contrário, detém-se na consideração positiva do amor. Para ele o amor é amor sexual, afeto entre consanguíneos ou entre pessoas de algum modo unidas por uma relação solidária, ou amizade. Em geral, o amor e o ódio, como todas as outras afeições da alma, não pertencem à alma como tal, mas ao homem enquanto composto de alma e corpo (Dean., 1,1, 403 a 3) e, portanto, enfraquecem-se com o enfraquecimento da união de alma e corpo (Ibid., I, 4, 408 b 25). Aristóteles também reconhece no amor o fundamento de necessidade, imperfeição ou deficiência, em que Platão insistira. A divindade, diz ele, não tem necessidade de amizade, pois é o seu próprio bem para si mesma, enquanto para nós o bem vem do outro (Et. eud., VII, 12, 1.245 b 14). O amor é, portanto, um fenômeno humano e não é de estranhar que Aristóteles não tenha feito nenhum uso dele em sua teologia. Ele é uma afeição, isto é, uma modificação passiva, enquanto a amizade é um hábito, uma disposição ativa (Et. Nic., VIII, 5,1.157 b 28). Ao amor unem-se a tensão emotiva e o desejo: ninguém é atingido pelo amor se não foi antes ferido pelo prazer da beleza; mas esse prazer de per si não é ainda amor, que só se tem quando se deseja o objeto amado que está ausente e se anseia por ele quando presente (ibid., IX, 5, 1.167 a 5). O amor que está ligado ao prazer pode começar e acabar rapidamente, mas pode também dar lugar à vontade de conviver; neste caso, assume a forma da amizade (ibid., VIII, 3, 1.156 b 4). Se a análise aristotélica do amor é desprovida de referências metafísicas e teológicas, convém recordar que a ordenação finalista do mundo e a teoria do primeiro motor imóvel levam Aristóteles a dizer que Deus, como primeiro motor, move as outras coisas “como objeto de amor”, isto é, como termo do desejo que as coisas têm de alcançar a perfeição dele (Met., XII, 7, 1.072 b 3). Essas palavras serão muito empregadas pela filosofia medieval. Ao findar da filosofia grega, o neoplatonismo utilizou a noção de amor não para definir a natureza de Deus, mas para indicar uma das fases do caminho que conduz a Deus. O Uno de Plotino não é amor, porque é unidade inefável, superior à dualidade do desejo (Enn., VI, 7, 40). Mas o amor é o caminho preparatório que conduz à visão dele, porque o objeto do amor, segundo a doutrina de Platão, é o bem, e o Uno é o bem mais alto (ibid., VI, 7, 22). O Uno, portanto, é o verdadeiro termo e o objeto último e ideal de todo amor, conquanto não seja através do amor que o homem se une a Ele, mas através da intuição, de uma visão em que o vidente e o visto se fundem e se unificam (ibid., VI, 9, 11).
Com o Cristianismo, a noção de amor sofre uma transformação; de um lado, é entendido como relação ou um tipo de relação que deve estender-se a todo “próximo”; de outro, transforma-se em um mandamento, que não tem conexões com as situações de fato e que se propõe transformar essas situações e criar uma comunidade que ainda não existe, mas que deverá irmanar todos os homens: o reino de Deus. O amor ao próximo transforma-se no mandamento da não-resistência ao mal’ (Mateus, 5, 44), e a parábola do bom Samaritano (Lucas, 10, 29 ss.) tende a definir a humanidade à qual o amor deve dirigir-se, não no seu sentido composto, mas no seu sentido dividido, como cada pessoa com quem cada um entre em contato; a qual, exatamente como tal, faz apelo à solicitude e ao amor do cristão. Além disso, na concepção cristã, o próprio Deus responde com amor ao amor dos homens; por isso, seu atributo fundamental é o de “Pai”. As Epístolas de S. Paulo, identificando o reino de Deus com a Igreja e considerando a Igreja o “corpo de Cristo”, cujos membros são os cristãos (Rom., 12,5 ss.), fazem do amor (agape), que é o vínculo da comunidade religiosa, a condição da vida cristã. Todos os outros dons do Espírito, a profecia, a ciência, a fé, nada são sem ele. “O amor tudo suporta, em tudo crê, tudo espera, tudo sustenta… Agora há fé, esperança, amor, três coisas; mas o amor é a maior de todas” (Cor., I, 13, 7-13). A elaboração teológica sofrida pelo Cristianismo no período da Patrística não utilizou, no princípio, a noção de amor Nos grandes sistemas da Patrística oriental (Orígenes, Gregório de Nissa), a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, é entendida como uma potência subordinada e de caráter incerto: daí, também, as frequentes discussões trinitárias que o concilio de Niceia (325) não logrou eliminar de todo. Somente por obra de S. Agostinho, com a identificação do Espírito Santo ao amor (enquanto Deus Pai é o Ser e Deus Filho é a Verdade), o amor é introduzido explicitamente na própria essência divina e torna-se um conceito teológico, além de moral e religioso. O amor a Deus e o amor ao próximo unem-se em S. Agostinho, quase formando um conceito único. Amar a Deus significa amar o amor; mas, diz Agostinho, “não se pode amar o amor se não se ama quem ama”. Não é amor o que não ama ninguém. Por isso, o homem não pode amar a Deus, que é o amor, se não amar o outro homem. O amor fraterno entre os homens “não só deriva de Deus, mas é Deus mesmo” (De Trin., VIII, 12): é a revelação de Deus, em um de seus aspectos essenciais, à consciência dos homens. Contudo, em S. Agostinho, a noção de amor ainda é a mesma dos gregos: uma espécie de relação, união ou vínculo que liga um ser ao outro: quase “uma vida que une ou tende a unir dois seres, o amante e o que se ama” (ibid., VIII, 6). Essas ideias de Agostinho são retomadas frequentemente durante todo o desenvolvimento de uma das principais correntes da Escolástica medieval, o agostinismo: por João Scotus Erigena e João Duns Scot. Scotus Erigena diz: “O amor é a conexão e o vínculo pelo qual todas as coisas são ligadas em amizade inefável e em indissolúvel unidade… Com justiça, diz-se que Deus é amor, porque eje é causa de amor e o amor difunde-se através de todas as coisas, reúne-as todas na unidade e as reconduz ao seu inefável ponto de partida: o movimento de amor de toda criatura tem o seu termo em Deus” (De divis. nat., I, 76). E Duns Scot afirma que Deus gera o Verbo conhecendo a Sua própria essência e exala o Espírito Santo amando esta essência. Desse modo, o amor eterno é a origem e a causa de toda comunicação da essência divina e, embora esse ato não seja “natural”, porque é um ato de vontade, é todavia necessário (Op. Ox., I, dist. 10, q. 1, ns 2). Comentários análogos reaparecem frequentemente na corrente mística (v. Misticismo), enquanto na corrente aristotélica o uso teológico da noção de amor é muito mais restrito, preferindo-se ilustrar a natureza divina com base nos conceitos de ser, substância e causalidade. Contudo, em toda a Escolástica, são repetidas as ideias de Aristóteles sobre a amizade, oportunamente modificadas e adaptadas para caracterizar a natureza do amor cristão (caritas). Assim, Tomás de Aquino afirma que é comum a toda natureza ter certa inclinação, que é o apetite natural ou o amor Essa inclinação é diferente nas diferentes naturezas e há, portanto, um amor natural e um amor intelectual; o amor natural é também um amor reto, por ser uma inclinação posta por Deus nos seres criados; mas o amor intelectual, que é caridade e virtude, é mais perfeito do que o primeiro; portanto, ao se acrescentar a ele, aperfeiçoa-o, do mesmo modo como a verdade sobrenatural se acrescenta à verdade natural, sem se lhe opor, e a aperfeiçoa (S. Th., I, q. 60, a. 1). Quanto ao amor intelectual, isto é, à caridade, esta é definida por Tomás de Aquino como “a amizade do homem por Deus”, entendendo-se por “amizade”, segundo o significado aristotélico, o amor que está unido à benevolência (amor benevolentiae), isto é, que quer o bem de quem se ama, e não quer simplesmente apropriar-se do bem que está na coisa amada (amor concupiscientiae), como acontece com quem ama o vinho ou um cavalo. Mas a amizade supõe não só a benevolência como também o amor mútuo e, assim, funda-se em certa comunicação, que, no caso da caridade, é a do homem com Deus, que nos comunica a Sua bem-aventurança (ibid., II, 2, q. 23, a. 1). Essa comunhão é, segundo Tomás de Aquino, o que há de próprio no amor: este é uma espécie de união ou vínculo (unio vel nexus) de natureza afetiva, semelhante à união substancial porquanto quem ama comporta-se em relação ao amado como em relação a si mesmo. Uma união real é também efeito do amor, mas trata-se de uma união que não altera nem corrompe aqueles que se unem, mas se mantém nos limites oportunos e convenientes, fazendo, p. ex. que conversem e dialoguem ou que se unam de outros modos semelhantes (ibid., II, 1, q. 28, a. 1, ad 2). Porquanto “amar” significa querer o bem de alguém, o amor pertence à vontade de Deus e a constitui. Mas o amor de Deus é diferente do amor humano porque, enquanto este último não cria a bondade das coisas, mas a encontra no objeto pelo qual é suscitado, o amor de Deus infunde e cria a bondade nas próprias coisas (ibid., I, q. 20, a. 2).
A especulação teológica sobre o amor retorna no platonismo renascentista, mas este acentua a reciprocidade do amor entre Deus e o homem, consoante a tendência, própria do Renascimento, de insistir no valor e na dignidade do homem como tal. Marsílio Ficino afirma que o amor é o liame do mundo e elimina a indignidade da natureza corpórea, que é resgatada pela solicitude de Deus (Theol. plat., XVI, 7). O homem não poderia amar a Deus, se o próprio Deus não o amasse; Deus volve-se para o mundo como um livre ato de amor, cuida dele e torna-o vivo e ativo. O amor explica a liberdade da ação divina assim como a da ação humana, já que ele é livre e nasce espontaneamente da livre vontade (In Conv. Plat. de Am. Comm., V, 8). As mesmas palavras repetem-se em Diálogos de amor, de Leão Hebreu, que tiveram vastíssima difusão na segunda metade do séc. XVI. Mas também no naturalismo do Renascimento o amor retorna, às vezes, como força metafísica e teológica. Campanella julga que as três primalidades do ser (isto é, os três princípios constitutivos do mundo) são o Poder, o Saber e o amor (Met, VI, proêmio). O amor pertence a todos os entes porque todos amam o seu ser e desejam conservá-lo (ibid., VI, 10, a. 1). Nas três primalidades, a relação de um ser consigo mesmo precede a sua relação com o outro: só se pode exercer força sobre outro ser na medida em que se a exerce sobre si mesmo; assim, pode-se amar e conhecer o outro ser só na medida em que se conhece e se ama a si mesmo (ibid., II, 5, 1, a. 13). Em todas as coisas finitas as três primalidades misturam-se com os seus contrários: a potência com a impotência, a sapiência com a insipiência, o amor com o ódio. Somente em Deus, que é infinito, elas excluem tais contrários e existem em pureza e em absoluto (ibid., VI, proêmio). Trata-se, como se vê, de comentários que lembram os de Agostinho. E, na realidade, o uso metafísico e teológico da noção de amor pode ser considerado, na tradição filosófica, como uma contribuição do agostinismo, pelo menos até ao Romantismo, quando essa noção assume sentido panteísta, cujo precedente mais importante é Spinoza. É preciso ter em mente que o uso teológico da noção de amor implica não só que Deus é objeto de amor (o que não é negado por nenhuma concepção cristã da divindade), mas que Ele próprio ama: o que é algo completamente diferente e que se encontra só no agostinismo, no Romantismo e em algumas concepções que, como a de Feuerbach e do positivismo moderno, tendem a identificar Deus com a humanidade. Na realidade, o amor, no seu conceito clássico, que tem como modelo a experiência humana, tem como condição a falta — e portanto o desejo e a necessidade — daquilo que se ama; dificilmente pode ser atribuído a Deus, que, na sua plenitude e infinitude, está isento de qualquer deficiência. A concepção panteísta do amor, p. ex., como a de Spinoza, de Schelling e de Hegel, resolve essa dificuldade só quando interpreta o amor como unidade ou consciência da unidade, isto é, de um modo que não encontra correspondência em qualquer tipo de experiência amorosa. A unidade, seja ela ou não consciente de si, nada tem a ver com o amor e é, aliás, a negação do amor, porque exclui a relação e a comunidade que o constituem em todas as suas manifestações. E bastante óbvio que onde há uma só coisa não há nem quem ame nem quem seja amado.
À tradição agostiniana podem-se referir as famosas palavras de Pascal: “O Deus de Abrão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus dos Cristãos, é um Deus de amor e de consolação, é um Deus que enche a alma e o coração daqueles que Ele possui e lhes faz sentir interiormente a sua própria miséria e a misericórdia infinita d’Ele” (Pensées, 556, Brunschvicg). Mas é duvidoso que neste texto ou em outros semelhantes de Pascal se possa ver muito mais do que a noção de que Deus é — em primeiro lugar e sobretudo — objeto de amor. Quanto a Malebranche, afirma que Deus criou o mundo “para proporcionar-Se uma honra digna de Si” (Recherche de la vérité, IX) e que o Verbo disse: “É o meu poder que faz tudo, tanto o bem quanto o mal… por isso, deves amar somente a mim, porque ninguém fora de mim produz em ti os prazeres que experimentas por ocasião do que acontece no teu corpo” (Méditations chrétiennes, XII, 5); palavras que parecem excluir a doutrina de Deus como amor
As apreciações de Descartes sobre o fenômeno amor, em escala humana, são importantes. “O amor”, diz ele, “é uma emoção da alma, produzida pelo movimento dos espíritos vitais que a incita a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes.” Porquanto é produzido pelos espíritos, o amor, que é uma afeição e depende do corpo, difere do juízo que também induz a alma, de sua livre vontade, a unir-se às coisas que julga boas (Pass. de l’âme, II, 79). O amor distingue-se, outrossim, do desejo, que é dirigido para o futuro; permite, porém, que nos consideremos imediatamente unidos com o que amamos “de tal modo que imaginamos um todo de que somos só uma parte e do qual a coisa amada é a outra parte” (ibid., 80). Descartes rejeita a distinção medieval entre amor de concupiscência e amor de benevolência porque, diz ele, essa distinção concerne aos efeitos do amor, mas não à sua essência: na medida em que estamos unidos voluntariamente a algum objeto, qualquer que seja a natureza deste, temos por ele um sentimento de benevolência e este é um dos principais efeitos do amor (ibid., 81). Há, todavia, várias espécies de amor, relativas aos diferentes objetos que possamos amar: o amor que um homem ambicioso sente pela glória, o pobre pelo dinheiro, o beberrão pelo vinho, um homem brutal por uma mulher que deseje violar, o homem honrado pelo amigo ou pela mulher e um bom pai pelos filhos são espécies diversas e todavia semelhantes de amor As quatro primeiras, porém, são amor só à posse dos objetos para os quais a emoção se dirige e não são amor aos objetos em si mesmos; as outras, no entanto, dirigem-se aos próprios objetos e desejam o bem deles (ibid., 82). Desta natureza é também a amizade, que, além do mais, está ligada à estima da pessoa amada; de tal modo que não se pode ter amizade por uma flor, um pássaro, cavalo, mas só pelos homens (ibid., 83)- Em geral, quando julgamos o objeto do amor inferior a nós mesmos, sentimos por ele simples afeto; quando o julgamos igual a nós mesmos, sentimos amizade, e quando o julgamos superior a nós mesmos, sentimos devoção. Desta última, o principal objeto é, naturalmente, Deus, mas pode dirigir-se também à pátria, à cidade e a qualquer homem que julgamos muito superior a nós mesmos (ibid., 83). Na mesma linha, acha-se a análise de Hume, segundo a qual o amor é uma emoção indefinível, mas cujo mecanismo pode ser compreendido. A sua causa é sempre um ser pensante (não se podem amar objetos inanimados) e o mecanismo com que essa causa age é constituído por uma dupla conexão: conexão de ideias — entre a ideia de si e a ideia do outro ser pensante — e conexão emotiva entre a emoção do amor e a do orgulho (que é a emoção que nos põe em relação com o nosso eu); ou entre a emoção do ódio e a da humildade (Diss. on the Passions, II, 2). Em geral, os escritores do séc. XVIII insistem na conexão do amor com a benevolência, que é a característica na qual Aristóteles insistira a propósito da amizade. Leibniz exprimiu essa noção do amor da forma mais clara, que deveria ser repetida numerosas vezes na literatura do século: “Quando se ama sinceramente uma pessoa”, diz ele (Op. Phil., ed. Erdmann, pp. 789-790), não se procura o próprio proveito nem um prazer desligado do da pessoa amada, mas procura-se o próprio prazer na satisfação e na felicidade dessa pessoa; e se essa felicidade não agradasse por si mesma, mas só pela vantagem que dela resultasse para nós, já não se trataria de amor sincero e puro. É preciso, pois, que se sinta imediatamente prazer nessa felicidade e que se sinta dor na infelicidade da pessoa amada, pois o que dá prazer imediato, por sisi mesmo, é também desejado por sisi mesmo como constitutivo (ao menos em parte) do objetivo das nossas intenções e como algo que faz parte da nossa própria felicidade e nos dá satisfação”. Segundo Leibniz, essa noção de amor elimina a oposição entre duas verdades, isto é, entre a que diz ser-nos impossível desejar outra coisa que não o nosso próprio bem, e a que diz não haver amor a não ser quando procuramos o bem do objeto amado por sisi mesmo e não para nossa própria vantagem. Tem também a vantagem, segundo Leibniz, de ser comum ao amor divino e ao amor humano porque exprime todos os tipos de amor “não mercenário”, como, por ex., a caritas ou “benevolência universal” (Op. phil, p. 218). Subentende-se que, neste sentido, o amor pode voltar-se só para “o que é capaz de prazer ou de felicidade”; assim, não se pode dizer, a não ser por metáfora, que amamos as coisas inanimadas que nos dão prazer (Nouv. ess., II, 20,4). Apreciações desse gênero são bastante frequentes nos escritores do séc. XVIII. Wolff diz que o amor é “a disposição da alma de sentir prazer pela felicidade alheia” (Psichol. empírica, § 633). E Vauvenargues afirma: “O amor é comprazer-se no objeto amado. Amar uma coisa significa comprazer-se em sua posse, em sua graça, em seu crescimento e temer a sua privação, o seu decaimento, etc.” (De l’esprit humain, § 24).
Nenhum dos escritores do séc. XVIII põe em dúvida que o amor se baseia nos sentidos, pelo que se diferencia da amizade. Vauvenargues, por ex., diz: “Na amizade, o espírito é o órgão do sentimento; no amor, são os sentidos” (ibid., § 36). E Kant parece admitir esse pressuposto quando distingue o amor baseado nos sentidos, ou “patológico”, do amor “prático”, isto é, moral, que é imposto pela máxima cristã “Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”. O amor a Deus, como inclinação, diz Kant, é impossível, pois Deus não é um objeto dos sentidos. Outrossim, amor semelhante aos homens é possível, mas não pode ser imposto, porque ninguém tem o poder de amar o outro por preceito. “Amar a Deus”, portanto, pode significar tão-somente “cumprir de bom grado os seus mandamentos”; e “amar ao próximo”, tão-somente “pôr em prática de bom grado todos os deveres para com ele”. Mas, aqui, a expressão “de bom grado” diz que a máxima cristã só obriga a aspirar a esse amor prático, mas que ele não é atingível pelos seres finitos. Com efeito, seria inútil e absurdo “impor” o que se faz “de bom grado”; por isso, o preceito evangélico apresenta a intenção moral na sua perfeição total “como um ideal de santidade não atingível por nenhuma criatura e que, todavia, é o exemplo de que devemos procurar aproximar-nos pelo progresso ininterrupto, mas infinito” (Crít. R. Prática, I, I, cap. 3) (v. fanatismo).
A doutrina de Spinoza apresenta dois conceitos de amor, dos quais o segundo seria utilizado pelos Românticos. Em primeiro lugar, o amor, como qualquer outra emoção (affectus), é uma afecção da alma (passió) e consiste na alegria acompanhada pela ideia de uma causa externa (Et., III, 13 escól.). Nesse sentido, deve-se dizer com mais propriedade que Deus não ama ninguém, pois não está sujeito a nenhuma afecção (ibid., V, 17 corol.). Mas existe um “amor intelectual de Deus”, que é a visão de todas as coisas na sua ordem necessária, isto é, na medida em que derivam, com eterna necessidade, da própria essência de Deus (Ibid., V, 29 escól.; 32 corol.). Este amor intelectual é o único eterno e é aquele com que Deus ama-se a si mesmo; de tal modo que o amor intelectual da mente para com Deus é parte do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo. “Resulta”, diz Spinoza, “que Deus, porquanto se ama a si mesmo, ama os homens e, por consequência, o amor de Deus aos homens e o amor intelectual da mente a Deus são a mesma coisa” (ibid., V, 36 corol.). Esse amor é aquilo em que consiste a nossa salvação ou bem-aventurança, ou liberdade; e é o que, nos livros sagrados, se chama “glória” (ibid., escól.). Está claro que já não é uma afecção, nem uma emoção no sentido que Spinoza deu a tais termos, mas é a pura contemplação de Deus, ou melhor, como a mente que contempla Deus não é senão um atributo de Deus, esse amor outra coisa não é senão a contemplação que Deus tem de si, como unidade de si mesmo e do mundo. Aqui, o conceito de amor deixa de referir-se à experiência humana: torna-se o conceito metafísico da unidade de Deus consigo mesmo e com o mundo, logo com todas as manifestações do mundo, inclusive os homens.
Esse conceito tornar-se-ia central e dominante no Romantismo da primeira metade do séc. XLX, que se baseia inteiramente na tentativa de demonstrar a unidade (isto é, a total identidade e intimidade) de finito e Infinito. Schleiermacher faz dessa unidade, enquanto se revela na forma do sentimento, o fundamento da religião; Fichte, Schelling e Hegel fazem da mesma unidade — que colocam como princípio da razão — o fundamento da filosofia. Mas foi justamente essa unidade que permitiu aos Românticos elaborar uma teoria do amor pela qual o próprio amor, mesmo voltando-se para coisas ou criaturas finitas, vê ou colhe, nelas, as expressões ou os símbolos do Infinito (isto é, do Absoluto ou de Deus). Pela unidade de finito e Infinito, a aspiração ao Infinito pode ser satisfeita ainda no mundo finito, p. ex., no amor à mulher. amor, poesia, unidade de finito e Infinito e sentimento dessa unidade vêm a ser sinônimos para os românticos. Friedrich Schlegel talvez seja quem melhor expressou esses conceitos. “A fonte e a alma de todas as emoções é o amor; e, na poesia romântica, o espírito do amor deve sempre estar presente; invisível e visível… As paixões galantes de que não se pode fugir na poesia moderna, do epigrama à tragédia, são o grau mínimo desse Espírito, ou melhor, conforme o caso, a sua letra extrínseca, ou absolutamente nada, ou algo de não amável e desprovido de amor Não, o que nos comove nos sons da música é o Sopro divino. Ele não se deixa tomar à força nem agarrar mecanicamente, mas deixa-se atrair amoravelmente pela beleza mortal para nela velar-se: também as palavras mágicas da poesia podem ser penetradas e animadas por sua força. Mas, na poesia onde o Sopro não está ou não pode estar em toda parte, ele não está em absoluto. Ele é uma Substância infinita que não anui com pessoas, ocasiões, situações e tendências individuais nem por elas se interessa: para o verdadeiro poeta, todas essas coisas, mesmo que a sua alma lhes esteja intimamente afeta, são apenas o indício do Altíssimo, do Infinito, são o hieróglifo do único e eterno amor e da sagrada plenitude de Vida da natureza plasmadora” (Prosaischen Jugendschriften, ed. Minor, II, p. 371). A poesia torna-se, assim, um análogo do amor e o amor, como anseio do Infinito, isto é, de Deus, do Universo, do Eterno, pode satisfazer-se e encontrar a paz no finito, nas criaturas do mundo. Em Discípulos de Sais, de Novalis, Jacinto, que partira à procura da deusa velada Isis, acaba encontrando, sob o véu da deusa, Florinha de rosa, isto é, a menina amada que ele abandonara para sair em busca de Sais. O sentimento, em particular o amor, revela o último mistério do Universo. Hegel exprimiu com as fórmulas mais rigorosas e pregnantes esse conceito de amor Já num texto juvenil de inspiração romântica, cujos pressupostos são justamente Schleiermacher e Schlegel (Nohl, Hegels theologische Jugendschr,, pp. 379 ss., trad. in De Negri, Princ. di Hegel, pp. 18 ss.), o “verdadeiro amor” é identificado com a “verdadeira unificação”, que só ocorre “entre seres vivos que são iguais em poder” e que, em tudo e por tudo, estão vivos um para o outro, isto é, de nenhum lado estão mortos um para o outro. O amor é um sentimento infinito pelo qual “o vivo sente o vivo”. Os amantes “são um todo vivo”. São reciprocamente indepedentes só na medida em que “podem morrer”. O amor é superior a todas as oposições e a todas as multiplicidades. Essas notas românticas voltam nas obras maduras de Hegel. “O amor”, diz ele, “exprime em geral a consciência da minha unidade com um outro, de tal modo que eu, para mim, não estou isolado, mas a minha autoconsciência só se afirma como renúncia ao meu ser por si e através do saber-se como unidade de mim com o outro e do outro comigo” (Fil. do dir., § 158, adendo). “A verdadeira essência do amor”, diz ainda Hegel em Lições de estética, “consiste em abandonar a consciência de si, em esquecer-se em outro si mesmo e, todavia, em reencontrar-se e possuir-se verdadeiramente nesse esquecimento” ( Vorles. über die Ästhetik, ed. Glockner, II, p. 149). O amor é “identificação do sujeito com outra pessoa”; é “o sentimento pelo qual dois seres não existem senão em unidade perfeita e põem nessa identidade toda a sua alma e o mundo inteiro” (ibid., p. 178). “Esta renúncia a si mesmo para identificar-se com outro, esse abandono no qual o sujeito reencontra, porém, a plenitude do seu ser, constitui o caráter infinito do amor” (ibid., p. 179). Desse ponto de vista, Hegel diz também que a morte de Cristo é “o amor mais alto”, no sentido de que ela exprime “a identidade do divino e do humano”; e assim é “a intuição da unidade no seu grau absoluto, a mais alta intuição do amor” (Phil. der Religion, ed. Glockner, II, p. 304). Essa noção romântica, que vê no amor a totalidade da vida e do universo na forma de um “sentimento infinito” que é fim para sisi mesmo, encontra-se em toda a tradição literária do Romantismo, especialmente na narrativa, a começar por Lucinda, de Schlegel. Essa noção também impregnou os costumes e a vida dos povos ocidentais até, pode-se dizer, os dias atuais, em que o adjetivo “romântico” ainda parece o mais adequado para definir a natureza dos sentimentos exaltados e tendentes a infinitizar-se, em que o aspecto espiritual e o aspecto sensual se complicam e se limitam reciprocamente, dando lugar a vicissitudes interiores, cujas mínimas nuanças se tem prazer de acompanhar, exagerando-lhes a importância e o valor. Também faz parte do amor romântico, na medida em que o seu objeto é o infinito, ou melhor, a infinita unidade e identidade, a insistência no amor como aspiração, desejo ou anseio, que, em vez de achar satisfação no ato sexual, teme ser, diminuído ou enfraquecido por esse ato e tende a evitá-lo. A “distância” é considerada pelos Românticos como um meio que favorece os sonhos voluptuosos; por isso, via de regra o amor romântico arrefece em presença do objeto amado.
Mas a concepção romântica do amor encontra-se também em filosofias e tendências diferentes do Romantismo ou que, pelo menos, não compartilham de todos os seus caracteres. Schopenhauer distingue nitidamente o amor sexual (eros) e o amor puro (agape). O amor sexual é simplesmente a emoção de que se serve o “gênio da espécie” para favorecer a obra obscura e problemática da propagação da espécie (Metafísica do amor sexual). Mas o “gênio da espécie” não é senão a cega, maligna e desesperada “vontade de viver”, que constitui a substância do universo, o seu “númeno”. O amor sexual não é, portanto, nada mais do que a manifestação, em forma fenomênica, isto é, sob a aparência da diversidade e da multiplicidade dos seres vivos, da única força que rege o mundo. Quanto ao amor puro, não é senão compaixão, e a compaixão é o conhecimento da dor alheia. Mas a dor alheia é também a dor do mundo, a dor da própria vontade de vida dividida em si mesma e lutando contra si mesma nas suas manifestações fenomênicas: além das quais, o amor como compaixão é a percepção da unidade fundamental (Die Welt, I, § 67). Desse modo, conserva-se na teoria de Schopenhauer a noção romântica do amor como sentimento da unidade cósmica. E permanece também na análise de um discípulo seu, Eduard von Hartmann, que a torna mais explícita, afirmando que o amor é a identificação entre amante e amado, uma espécie de ampliação do egoísmo por meio da absorção de um eu por outro eu, donde o sentido mais profundo do amor consiste em tratar o objeto amado como se fosse, na sua essência, idêntico ao eu que ama. Se essa unidade e identidade não existissem, afirma Hartmann, o próprio amor seria uma ilusão; mas Hartmann crê que não se trata de uma ilusão, porque a identidade que o amor tem em vista, ou realiza ao menos em parte, é a identidade do Princípio Inconsciente, da Força Infinita que rege o mundo (Phänomenologie des sittliche Bewusstseins, 1879, p. 793). Pode-se dizer, em geral, que todas as teorias que reduzem o amor a uma força única e total, ou segundo as quais, de algum modo, ele deriva de força semelhante, participam, de alguma forma, da noção romântica do amor como unidade e identidade. Sob esse aspecto, deve-se reconhecer um fundo romântico até na doutrina de Freud, segundo a qual o amor é a especificação e a sublimação de uma força instintiva originária, que é a libido. A libido não é o impulso sexual específico (isto é, dirigido para o indivíduo do outro sexo), mas simplesmente a tendência à produção e à reprodução de sensações voluptuosas relativas às chamadas “zonas erógenas”, que se manifesta desde os primeiros instantes da vida humana. O impulso sexual específico é uma formação tardia e complexa, que, por outro lado, nunca se completa, como demonstram as perversões sexuais, tão variadas e numerosas. Essas perversões, portanto, segundo Freud, não são desvios de um impulso primitivo normal, mas modos de comportamento que remontam aos primeiros instantes da vida, que escaparam ao desenvolvimento normal e fixaram-se na forma de uma fase primitiva (v. Psicanálise). Da libido desenvolvem-se, segundo Freud, as formas superiores do amor, mediante a inibição e a sublimação. A inibição tem a função de manter a libido nos limites compatíveis com a conservação da espécie; dela derivam as emoções morais, em primeiro lugar as da vergonha, do pudor, etc, que tendem a imobilizar e a conter as manifestações da libido. Na inibição da libido e de seus conteúdos objetivos enraízam-se as neuroses. A sublimação, ao contrário, dá-se quando a libido se separa do seu conteúdo primitivo, isto é, da sensação voluptuosa e dos objetos que a esta se vinculam, para concentrar-se em outros objetos que serão, desse modo, amados por si mesmos, independentemente da sua capacidade de produzir sensações voluptuosas. Na sublimação da libido inibida assentam, segundo Freud, todos os progressos da vida social, a arte, a ciência e a civilização em geral, ao menos na medida em que tais progressos dependem de fatores psíquicos. Para Freud, todas as formas superiores do amor são apenas sublimações da libido inibida. Desse modo, a teoria freudiana do amor parece apresentar ao homem uma única alternativa, entre o primitivismo sexual e o ascetismo total, já que as formas superiores do amor, e, em geral, da atividade humana, só poderiam produzir-se à custa da inibição e da sublimação da libido. Esta alternativa parece falsa na linha dos fatos e muito inquietante do ponto de vista moral. Mas talvez ainda mais grave seja o fato de que a doutrina de Freud não contém nenhum elemento apto a explicar a escolha que está presente em todas as formas do amor e que está totalmente ausente nos comportamentos instintivos, que são cegos e anônimos. Entretanto, o próprio Freud insiste no valor da escolha em sua crítica do amor universal. “Algumas pessoas”, diz Freud, “tornam-se independentes da aquiescência dos seus objetos transferindo o valor principal do fato de serem amadas para seu próprio ato de amar; protegem-se da perda do objeto amado dirigindo seu amor não a objetos individuais, mas a todos os homens igualmente, e evitam as incertezas e as desilusões do amor genital desistindo do objetivo sexual deste e transformando o instinto em um impulso de intenção inibida. O estado que elas induzem em si mesmas com esse processo — uma atitude de ternura imutável e nãçydesviável — tem pouca semelhança superficial com as tempestuosas vicissitudes do amor genital, mas deriva deste” (Civilization and its Discontents, p. 69). As objeções que Freud faz a esse tipo de amor são duas: ele não discrimina seus objetos, o que se resolve em injustiça para com os próprios objetos; em segundo lugar, nem todos os homens são dignos de amor “Se amo alguém”, diz Freud, “ele deve ser digno desse amor de um modo ou de outro: ou por ser tão semelhante a mim em algum aspecto importante que posso amar-me a mim mesmo nele, ou por ser muito mais perfeito do que eu, de sorte que posso amar nele o meu ideal de mim mesmo, ou por ser filho de meu amigo, com o qual quero compartilhar afetos e dores. Mas, se não há nenhum motivo específico para amá-lo, amá-lo será bastante difícil para mim e será uma injustiça para aqueles que são dignos do meu amor, já que estarei pondo estes últimos no mesmo nível dele. Além disso, o amor que poderei dar-lhe, como cumprimento do preceito de amor universal, será somente uma pequeníssima parte do amor que, por todas as leis da razão, estou autorizado a dar a mim mesmo. Em conclusão, o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos é a mais forte defesa contra a agressividade humana e exemplo superlativo da atitude antipsicológica do super-ego cultural. Mas é um mandamento impossível de respeitar: uma inflação tão grande de amor só poderia diminuir-lhe o valor e não seria um remédio para o mal” (Md., pp. 139-141). Essas considerações pressupõem, obviamente, que o amor implica uma escolha motivada pelo valor reconhecido no objeto amado ou a ele atribuído; mas justamente esse elemento de escolha não tem lugar na doutrina de Freud, que se funda totalmente no princípio do caráter instintivo da libido, de que deriva todo amor
A crítica de Freud ao “amor universal” é importante, e em alguns aspectos decisiva para a orientação contemporânea em torno do problema do amor Todavia, Freud dirigiu essa crítica contra um alvo errado, o preceito evangélico do amor ao próximo: o verdadeiro alvo dessa crítica é a noção moderna, de origem positivista, do amor universal. A origem dessa noção pode ser encontrada em Feuerbach, no qual tem estreita conexão com a noção romântica de amor, em particular com a de Hegel. Feuerbach parte do pressuposto de que o objeto ao qual um sujeito se refere essencial e necessariamente outro não é senão a natureza objetiva do próprio sujeito e que, portanto, no objeto o homem contempla-se a si mesmo e torna-se consciente de si: a consciência do objeto não é senão a auto-consciência do homem ( Wesen des Christentum, 1841; trad. fr., p. 26). Esta é a mesma noção da unidade entre subjetivo e objetivo, entre o eu e o outro, transferida do Infinito (para onde os Românticos a levaram) para o homem, na sua finitude. Não obstante essa transferência, a noção continua a mesma; na verdade, o amor é entendido por Feuerbach, romanticamente, como unidade e identidade: “a unidade de Deus e homem, de espírito e natureza”. O amor “não tem plural”. A própria encarnação, para Feuerbach como para Hegel, é somente “o puro, absoluto amor, sem acréscimo, sem distinção entre amor divino e humano” (ibid., p. 82). Com base nessa noção, Feuerbach delineou a extensão progressiva do amor ao objeto sexual ao amor à criança, ao filho, do filho ao pai, e finalmente à família, ao clã, à tribo, etc, extensão esta que seria devida à multiplicação das ações recíprocas e, por isso, da dependência recíproca das instituições e dos interesses vitais. O último termo dessa extensão progressiva seria “a humanidade em seu conjunto”, que, como tal, é o objeto mais alto do amor e o ideal moral por excelência. A ética positivista, especialmente com Comte e Spencer, baseou-se no amor estendido a toda a humanidade; nele também se baseou a ética do neo-criticismo alemão, da forma como se encontra, p. ex., expressa em Cohen.
Nessas concepções, os termos “humanidade” e “amor” passam a ser sinônimos, porque significam a unidade dos seres humanos e, às vezes, até mesmo a unidade cósmica segundo o conceito romântico. Desse ponto de vista, as formas do amor são classificadas conforme a maior ou menor extensão do círculo de objetos a que o amor se estende. Assim o amor à pátria seria inferior ao amor à humanidade; o amor à família, inferior ao amor à pátria; o amor a si mesmo, inferior ao que se sente por um amigo. Scheler mostrou (Natureza e forma da simpatia, 1923) o caráter fictício dessa hierarquia que pretende reduzir as variedades autônomas do amor a uma única forma, que teria graus diversos segundo a extensão do círculo humano que constitui seu objeto. Suas observações a esse respeito coincidem substancialmente com as já acenadas por Freud: o valor do amor diminui, não cresce, à medida que o amor se estende a um número maior de objetos: já que, em geral, o amor ao que está próximo tem mais valor do que o amor ao que está distante, pelo menos quando dirigido a um ser vivo; e Nietzsche errou quando contrapôs (em Assim falou Zaratustrd) o amor ao distante ao amor ao próximo. Scheler negou o próprio pressuposto da doutrina do amor universal: a noção romântica do amor como unidade ou identificação. O amor e, em geral, a simpatia em todas as suas formas (v. Simpatia) implicam e, ao mesmo tempo, fundamentam a diversidade das pessoas. O sentido do amor consiste justamente em não considerar e em não tratar o outro como se fosse idêntico a si. “O amor verdadeiro”, diz Scheler (Sympathie, I, cap. IV, 3), “consiste em compreender suficientemente uma outra individualidade modalmente diferente da minha, em poder colocar-me em seu lugar, mesmo considerando-a diferente de mim e mesmo afirmando, com calor emocional e sem reserva, a sua própria realidade e o seu próprio modo de ser.” O amor dirige-se necessariamente ao núcleo válido das coisas, ao valor, tende a realizar o valor mais elevado possível (e isto já é um valor positivo) ou a suprimir um valor inferior. Pode voltar-se para a natureza, para a pessoa humana e para Deus, naquilo que têm de próprio, isto é, de diferente daquele que ama. Scheler reconhece, com Freud, que “o amor sexual representa um fator primordial e fundamental, no sentido de que a força e a vivacidade de todas as outras variedades de amor vital e de vida instintiva derivam desse amor” (ibid., II, cap. VI, § 5). No entanto, não se reduz ao instinto sexual porque implica escolhas, que, por princípio, se orientam para as qualidades vitais, que chamamos de mais “nobres”. Mas se o amor sexual domina a esfera vital, existem outras formas de amor correspondentes à esfera espiritual e à esfera religiosa; essas formas são variedades qualitativamente diferentes, qualidades primordiais e irredutíveis umas às outras, que fazem pensar numa pré-formação, na estrutura psíquica do homem, das relações elementares que existem entre os homens (ibid.). Entre essas formas não está, porém, o amor à humanidade. A humanidade pode ser amada como indivíduo único e absoluto somente por Deus; por isso, o chamado amor à humanidade é somente o amor ao homem médio de certa época, isto é, aos valores correntes nessa época, que interessam aos defensores dessa forma de amor. Esta,, segundo Scheler, outra coisa não é senão ressentimento, ou seja, ódio pelos valores positivos implícitos em “terra natal”, “povo”, “pátria”, “Deus”, ódio que, substituindo esses portadores de valores especificamente superiores por humanidade, procura iludir-se e iludir os outros sobre o amor (ibid.).
Na filosofia contemporânea, as análises de Scheler são a primeira tentativa de desvincular a noção de amor do ideal romântico da absoluta unidade. Pode-se vislumbrar, todavia, a sugestão e a ação desse ideal em duas doutrinas contemporâneas, aparentemente heterogêneas: a doutrina do amor místico de Bergson e a doutrina do amor sexual de Sartre. Segundo Bergson, a fórmula do misticismo é esta: “Deus é amor e objeto de amor” (Deux sources, III; trad. it. p. 275). Embora se possa duvidar da exatidão da primeira parte dessa fórmula, porque dificilmente se pode encontrar nos místicos a tese de que Deus ame o homem (o que Deus oferece ao homem que o ama é a salvação, a bem-aventurança e a participação na sua “glória”), o que Bergson pretende dizer é que o arrebatamento místico se realiza como uma unidade entre o homem e Deus. “Não há mais separação completa entre quem ama e quem é amado: Deus está presente e a alegria é sem limites” (Ibid., p. 252). Por essa unidade, o amor do homem por Deus é o amor de Deus por todos os homens. “Através de Deus, com Deus, ele ama toda a humanidade com amor divino.” Mas esse amor não é a fraternidade do ideal racional nem a intensificação de uma simpatia inata do homem pelo homem: é “o prosseguimento de um instinto” que está na raiz da sensibilidade e da razão, assim como de todas as outras coisas; e identifica-se com o amor de Deus por sua obra, amor que criou todas as coisas e é capaz de revelar, a quem saiba interrogá-lo, o mistério da criação. A esse amor cabe aperfeiçoar a criação da espécie humana (ibid., IV, pp. 356-57) e devolver ao universo a sua função essencial, que é a de ser “uma máquina destinada a criar deuses”. O caráter spinoziano, romântico e panteísta dessas observações é muito evidente e patenteia a noção que pressupõem: a do amor como unidade que é identidade.
Se o “amor sagrado” de Bergson é de cunho romântico, não menos romântico é o “amor profano” de Sartre. O pressuposto da análise de Sartre é que o amor é a tentativa ou, mais exatamente, o projeto de realizar a unidade ou a assimilação entre o eu e o outro. Essa exigência de unidade ou de assimilação é, por parte do eu, a exigência de que ele seja para o outro uma totalidade, um mundo, um fim absoluto. O amor é, fundamentalmente, um querer ser amado; e querer ser amado significa “querer situar-se além de todo o sistema de valores posto pelos outros, como condição de toda valorização e como fundamento objetivo de todos os valores” (L’être et le néant, p. 436). A vontade de ser amado é, assim, a vontade de valer para o outro como o próprio infinito. “O olhar do outro não me permeia mais de finitude, não imobiliza mais o meu ser naquilo que sou simplesmente; não poderei ser olhado como feio, como pequeno, como vil, porque estes caracteres representam necessariamente uma limitação de fato do meu ser e uma apreensão da minha finitude enquanto finitude” (Ibid., p. 437). Mas, para que o outro possa considerar-me assim, é preciso que ele possa querer, isto é, que seja livre: por isso, a posse física, a posse do outro como coisa, é, no amor, insuficiente e frustrante. É preciso que o outro seja livre para querer amar-me e para ver em mim o infinito. O que quer dizer: é preciso que se mantenha “como pura subjetividade, como o absoluto pelo qual o mundo vem ao ser” (Ibid., p. 455). Mas aí estão, precisamente, o conflito e o fracasso inevitáveis do amor, pois, por um lado, o outro exige de mim a mesma coisa que eu exijo dele — ser amado e valer para mim como a totalidade infinita do mundo — e, por outro, justamente por querer isso, por amar-me, “frustra-me radicalmente com o seu próprio amor: eu exigia que ele assumisse o meu ser como objeto privilegiado, mantendo-se como pura subjetividade em relação a mim, mas, desde que me ama, em vez disso reconhece-me como sujeito e mergulha na sua objetividade diante da minha subjetividade” (Ibid., p. 444). Em outros termos, cada um, no amor, quer ser para o outro o objeto absoluto, o mundo, a totalidade infinita, mas para isso é necessário que o outro permaneça subjetividade livre e igualmente absoluta. Mas, como ambos querem exatamente a mesma coisa, o único resultado do amor é um conflito necessário e um fracasso inevitável. Há, todavia, outro caminho para realizar a assimilação de um ser com o outro, que é exatamente o contrário do que foi descrito: em vez de projetar absorver o outro conservando-lhe a alteridade, posso projetar fazer-me absorver pelo outro e perder-me na sua subjetividade para desembaraçar-me da minha. Nesse caso, em vez de procurar existir para o outro como objeto-limite, como mundo ou totalidade infinita, procurarei fazer-me tratar como um objeto entre os outros, como um instrumento a ser utilizado, em uma palavra, como uma coisa. Ter-se-á, então, a atitude masoquista. Mas o próprio masoquismo é e deve ser um fracasso, pois, por mais que se queira, nunca se virá a ser um simples instrumento inanimado, uma coisa humilde, ridícula ou obscena; será necessário, precisamente, querer isso, isto é, valer, para essa finalidade, como subjetividade livre (Ibid., pp. 346-347). Não há, portanto, salvação no amor: o conflito e o fracasso são-lhe intrinsecamente necessários. Por outro lado, Sartre vê conflito análogo também no simples desejo sexual, cujo “ideal impossível” assim define: “Possuir a transcendência do outro como pura transcendência e no entanto como corpo-, reduzir o outro à sua simples facticidade, pois ele ainda está no meio do meu mundo, mas fazer que essa facticidade seja uma representação perpétua da sua transcendência nadificante” (Ibid., pp. 463-464). E, como o amor pode tender para o masoquismo como solução ilusória do seu conflito, assim também o desejo sexual tende para o sadismo, isto é, para a não-reciprocidade das relações sexuais, para o gozo de ser “potência possessiva e livre em face de uma liberdade aprisionada pela carne” (Ibid., p. 469). Não há dúvida de que a análise de Sartre, tão rica de reparos e referências, representa um exame sem preconceitos de certas formas que o amor pode assumir e assume e dos conflitos em que desembocam. Mas trata-se das formas do amor romântico e das suas degenerações. O amor de que fala Sartre é o projeto da fusão absoluta entre dois infinitos; e dois infinitos só podem excluir-se e contradizer-se. Querer ser amado significa, para Sartre, querer ser a totalidade do ser, o fundamento dos valores, o todo e o infinito: isto é, o mundo ou Deus mesmo. E o outro, o amado, deveria ser um sujeito igualmente absoluto e infinito, capaz de tornar absoluto e infinito quem o ama. São evidentes os pressupostos românticos dessa colocação. A unidade absoluta e infinita que o Romantismo clássico postulava ingenuamente como uma realidade garantida do amor torna-se, em Sartre, um projeto inevitavelmente destinado ao fracasso. O Romantismo de Sartre é frustrado e consciente de sua falência.
No entanto, está patente na filosofia contemporânea a tendência anti-romântica a privar o amor do caráter de infinitude, isto é, da natureza “cósmica” ou “divina”, e a circunscrevê-lo em limites mais restritos e demarcáveis. Russell evidenciou a fragilidade do amor romântico, que pretende ser a totalidade da vida, mas caminha rapidamente em direção à exaustão e ao malogro. “O amor”, disse ele, “é o que dá valor intrínseco a um matrimônio e, como a arte e o pensamento, é uma das coisas supremas que tornam a vida digna de ser vivida. Mas, embora não haja bom casamento sem amor, os melhores casamentos têm um objetivo que vai além do amor O amor recíproco de duas pessoas é demasiado circunscrito, demasiado separado da comunidade para ser, por sisi mesmo, o objetivo principal da vida. Não é, em sisi mesmo, fonte suficiente de atividade, não oferece perspectivas suficientes para constituir uma existência em que se possa encontrar uma satisfação fundamental. Cedo ou tarde, torna-se retrospectivo, é um túmulo de alegrias mortas, não uma fonte de vida nova. Esse mal é inseparável de qualquer finalidade atingível numa única emoção suprema. Os únicos fins adequados são os que têm incidência no futuro, que nunca podem ser plenamente alcançados, mas estão em constante ‘crescendo’ e são infinitos, como a infinitude da busca humana. Só quando o amor está ligado a algum fim infinito dessa espécie pode ter a seriedade e a profundidade de que é capaz” iPrinciples of Social Reconstruction, p. 192). Com isto, o amor não é negado, mas reconduzido aos limites que o definem. “O homem”, diz ainda Russell, “que nunca viu as coisas belas em companhia da mulher amada não conheceu plenamente o mágico poder que tais coisas possuem. E mais: o amor é capaz de romper o duro cerne do eu, porque é uma espécie de colaboração biológica, na qual as emoções de um são necessárias à satisfação dos propósitos instintivos do outro” (A conquista da felicidade, trad. it., p. 42). Nesse sentido, porém, não requer o sacrifício das pessoas que se amam, mas constitui enriquecimento e realização da sua personalidade. Não requer nem mesmo o emudecimento do espírito de ambas as partes, mas, antes, o respeito à autonomia recíproca e a fidelidade aos compromissos assumidos. Por isso, é indispensável a realização da igualdade de condição moral e jurídica entre os sexos, bem como a transformação e a liberalização das regras morais que ora restringem e inibem com demasiada rigidez as relações sexuais. Por outro lado, porém, “a relação sexual sem amor tem valor mínimo e deve ser considerada uma primeira experiência, capaz de dar uma noção aproximada do amor” (Marriage and Morals, cap. IX; trad. it. p. 118).
Um olhar de conjunto nas teorias mencionadas mostra a recorrência de duas noções fundamentais do amor, sendo possível vincular cada uma dessas teorias a uma ou a outra. A primeira é a do amor como relação que não anula a realidade individual e a autonomia dos seres entre os quais se estabelece, mas tende a reforçá-las, por meio de um intercâmbio, controlado emotivamente, de serviços e cuidados de todo tipo, intercâmbio no qual cada um procura o bem do outro como seu próprio. Nesse sentido, amor tende à reciprocidade e é sempre recíproco na sua forma bem-