É a Rousseau que devemos a descoberta desse princípio, o único em que podem se fundar as ciências humanas, mas que permaneceria inacessível e incompreensível enquanto a filosofia, partindo do Cogito, seguisse prisioneira das pretensas provas do eu, sem poder almejar fundar uma física se não renunciasse a fundar uma sociologia, e mesmo uma biologia. Descartes crê passar diretamente da interioridade de um homem para a exterioridade do mundo, sem ver que entre esses dois extremos estão as sociedades, as civilizações, ou seja, mundos de homens. Rousseau, que com tanta eloquência fala de si mesmo na terceira pessoa (chegando inclusive, nos Diálogos, a desdobrá-la), antecipando assim a famosa fórmula “eu é um outro” (que a experiência etnográfica deve verificar, antes de proceder à demonstração que lhe cabe, de que o outro é um eu), afirma-se como grande inventor dessa objetivação radical, quando define seu objetivo. Este, indica ele na primeira caminhada, é “perceber as modificações de minha alma e suas sucessões”; e prossegue: “Farei comigo, em certo sentido, as operações que os físicos fazem com o ar para determinar seu estado, dia a dia”. O que Rousseau expressa, portanto – verdade surpreendente, ainda que a psicologia e a etnologia a tenha tornado mais familiar –, é que existe um “ele” que se pensa em mim mesmo e que me faz duvidar de saída se sou eu mesmo quem pensa. Descartes achava que podia responder ao “que sei eu?” de Montaigne (de onde isso tudo veio) afirmando que sei quem eu sou, já que penso, ao que retorque Rousseau um “que sou eu?”. Pergunta sem saída óbvia, na medida em que supõe que outra, mais essencial – “eu sou?” – tenha sido resolvida, quando a experiência íntima fornece apenas esse “ele” que Rousseau descobriu e tratou de explorar com lucidez.
Cumpre notar que nem mesmo a intenção conciliadora do Vigário saboia no consegue dissimular que, para Rousseau, a noção de identidade pessoal é obtida por inferência, e permanece marcada de ambiguidade: “Eu existo […] essa é a primeira verdade que me atinge e com a qual sou obrigado a aquiescer [itálico nosso] […] Tenho eu um sentimento próprio de minha existência, ou só a sinto por minhas sensações? Eis minha primeira dúvida, por enquanto impossível de resolver”. Mas é no ensinamento propriamente antropológico de Rousseau – o do Discurso sobre a origem da desigualdade – que se descobre o fundamento da dúvida, que reside numa concepção do homem que põe o outro antes de si e numa concepção da humanidade que, antes dos homens, põe a vida.
Pois só é possível crer que com o surgimento da sociedade tenha-se produzido uma tripla passagem, da natureza à cultura, do sentimento ao conhecimento, da animalidade à humanidade – demonstração que constitui o objeto do Discurso –, atribuindo ao homem, já em sua condição primitiva, uma faculdade essencial que o impila a superar esses três obstáculos; que possua, por conseguinte, originária e imediatamente, atributos contraditórios, a não ser, justamente, nela; que seja ao mesmo tempo natural e cultural, afetiva e racional, animal e humana; e que, com a única condição de que se torne consciente, possa se converter de um plano para o outro.
Tal faculdade, Rousseau não se cansou de repetir, é a piedade, decorrente da identificação a um outrem que não um parente, um amigo ou um compatriota, mas a um homem qualquer porque é homem, ou bem mais que isso: a um ser vivente qualquer, porque vive. O homem começa, pois, por sentir-se idêntico a todos os seus semelhantes, e jamais esquecerá essa experiência primitiva, nem mesmo quando o crescimento demográfico (que, no pensamento antropológico de Rousseau, desempenha o papel de evento contingente, que poderia não ter ocorrido, mas que, temos de admitir, ocorreu, já que a sociedade existe) o tiver obrigado a diversificar seus modos de vida para se adaptar a diferentes ambientes para os quais o aumento da população irá obrigá-lo a se deslocar, e a saber distinguir a si mesmo, mas somente na medida em que um penoso aprendizado o tiver ensinado a distinguir os outros – os animais segundo a espécie, a humanidade e a animalidade, meu eu dos outros eus. A apreensão global dos homens e dos animais como seres sensíveis, em que consiste a identificação, precede a consciência das oposições, primeiro entre as propriedades comuns, e só depois entre humano e não humano.
É mesmo o fim do Cogito que Rousseau proclama, aventando essa solução audaciosa. Pois até então tratava-se, sobretudo, de não colocar o homem em questão, isto é, de garantir, com o humanismo, uma “transcendência redobrada”. Rousseau pode permanecer teísta – era afinal o mínimo que exigiam sua educação e sua época, mas arruína definitivamente a tentativa, recolocando o homem em questão.
Se essa interpretação estiver correta, se, pelas vias da antropologia, Rousseau abala tanto quanto cremos a tradição filosófica, podemos compreender melhor a unidade profunda de uma obra de múltiplas formas e o lugar verdadeiramente essencial de preocupações para ele imperiosas, embora fossem à primeira vista alheias ao labor do filósofo e do escritor; quero dizer, a linguística, a música e a botânica.
Tal como Rousseau o descreve no Ensaio sobre a origem das línguas, o movimento da linguagem reproduz, a seu modo e em seu plano, o da humanidade. O primeiro estágio é o da identificação, aqui entre o sentido próprio e o sentido figurado; o nome verdadeiro se desprende progressivamente da metáfora, que confunde cada ser com os demais. Quanto à música, nenhuma forma de expressão parece mais apta a recusar a oposição cartesiana entre material e espiritual, alma e corpo. A música é um sistema abstrato de oposições e relações, alterações dos modos da extensão, cuja operação acarreta duas consequências: primeiro, a inversão da relação entre o eu e o outro, uma vez que, quando ouço música, eu me escuto através dela, e, por uma inversão da relação entre alma e corpo, a música vive em mim. “Cadeia de relações e combinações” (Confissões, livro XII), mas que a natureza nos apresenta encarnadas em “objetos sensíveis” (Devaneios, Sétima caminhada), é nesses termos que, finalmente, Rousseau define a botânica, confirmando que, por esse viés, aspira também atingir a união entre o sensível e o inteligível, porque ela constitui para o homem um estado primeiro, que acompanha o despertar da consciência; e que não deveria sobreviver-lhe, exceto em raras e preciosas ocasiões.
O pensamento de Rousseau brota portanto a partir de um duplo princípio, o da identificação a outrem e até ao mais “outrem” de todos os outrens, até um animal; e o da recusa da identificação a si mesmo, ou seja, a recusa de tudo o que pode tornar o eu “aceitável”. Essas duas atitudes se completam, e a segunda inclusive funda a primeira: na verdade, eu não sou “eu”, e sim o mais fraco, o mais humilde, dos “outros”. É essa a descoberta das Confissões…
O que escreve o etnólogo senão confissões? Primeiro em seu próprio nome, como mostrei, pois é esse o móvel de sua vocação e de sua obra. E, nessa mesma obra, em nome da sociedade, que por intermédio do etnólogo seu emissário, escolhe outras sociedades, outras civilizações, e justamente aquelas que lhe parecem ser as mais fracas e humildes, mas para verificar a que ponto ela mesma é “inaceitável”: forma de modo algum privilegiada, apenas uma dentre as sociedades “outras” que se sucederam ao longo dos milênios, ou cuja precária diversidade atesta ainda que, também em seu ser coletivo, o homem deve se reconhecer como um “ele” antes de ousar pretender ser um “eu”.