Grassi: Sinais e espírito (II)

2. A “Signatura” dos fenômenos: a definição de J. Boehme da esfera “Espiritual”

Referimo-nos à tese de Muller de que a lei da causalidade (causa e efeito) é inadequada a uma explicação do fenômeno da vida, isto é, da função dos seus órgãos. Segundo o ponto de vista de Muller, os órgãos vivos só revelam as “formas” que são peculiares à vida. Isto leva à conclusão de que o ser vivo, e portanto também o homem, não pode transcender o mundo dos fenômenos; e que permanece fechado na estrutura das imagens que a ele próprio se aplicam. Através das referências a Carus, fomos capazes de ressaltar a diferença, essencial ao homem, entre vida consciente e inconsciente. O processo consciente da vida humana origina-se na necessidade de conferir um significado aos fenômenos sensoriais, ou de colocá-los sob uma “assinatura” classificadora, pois somente assim podemos construir nosso mundo humano. Desta forma tornamos real o processo através do qual alcançamos o conhecimento. Para uma discussão mais detalhada do desenvolvimento concreto desse processo de conhecimento e sua relação com os sinais arcaicos, e também para o esclarecimento mais preciso da estrutura e significado dos sinais que se referem ao homem, voltemo-nos aos primeiros cinco parágrafos da obra De signatura rerum de Jacob Boehme. Esse trabalho surgiu em 1730 e leva o subtítulo “Sobre o Nascimento e Relações de Todos os Seres”. O termo “signatura” (assinatura, ação de colocar o selo ou sinal) deve ser compreendido como um número ou marca de catálogo que ajuda na consulta a livros, quadros ou outros objetos de uma biblioteca ou coleção. Também serve, de uma maneira geral, para classificar e achar coisas, obtém essa propriedade como resultado de um método, isto é, um meio de chegar ao objeto que está sendo procurado. Enquanto a multiplicidade dos fenômenos que nos cercam e com os quais precisamos lidar não forem explicados, eles têm efeito estranho, mudo, desolador, tedioso, fantasmagórico e não nos oferecem qualquer orientação. Esse mundo anônimo parece não ter saída; nele, todo impulso permanece sem alvo, enquanto o sentido dos fenômenos não for revelado.

A pesquisa de Boehme sobre a “signatura” dos fenômenos toma duas direções: primeiro, ele trata da nomenclatura das coisas; depois, da questão sobre sua origem e essência (como o indica o subtítulo da obra). Surpreendentemente, Bòhme formula o problema da “signatura” juntamenete com o problema de como é possível falar de Deus. Diz o primeiro parágrafo de De signatura rerum:

‘Tudo o que é falado, escrito ou ensinado a respeito de Deus, sem o reconhecimento da ‘signatura’, é mudo e incompreensível, pois procede de um disparate histórico, de outra boca, diante do que o espírito sem conhecimento está mudo; mas tão logo o espírito lhe esclareça ‘signatura’, ele compreende a boca de outros e como o espírito se revelou com a voz, pela essência, pelo princípio do som.” (J. Boehme, De signatura rerum, em: Sämtl. Schriften, Vol. VI, Stuttgart, 1957, p. 3 e ss) Essa passagem poderia levantar dúvidas com relação ao nosso problema. Aparentemente, a pergunta de Boehme sobre a “signatura” é um problema teológico: o problema do reconhecimento de Deus. No “Prefácio do Autor ao Leitor Amante da Verdade” ele diz: “Ao ser que Deus criou à sua imagem e semelfiança, nada é mais útil em tudo quanto ele pratica do que uma auto-observação constante do que é, de onde o bem e o mal lhe advém e como ele mesmo se encaminha para o bem e para o mal” (Idem, p. 1). Portanto, Boehme demonstra aqui que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e, consequentemente, nada mais útil ao homem do que conhecer-se a si mesmo, pois assim conhecerá Deus. Dessa maneira, é preservada todo o alcance metafísico do problema da “signatura”.

Na tradição filosófica da antiguidade, o conceito de “eídos” corresponde aos termos “signum” e “signatura”. Os sinais que tornam possível o reconhecimento das coisas, dos fenômenos e dos significados dos sons, não aderem diretamente a manifestações sensoriais como tais, pois essas – conforme o textonão começam a “falar” antes do espírito nos revelar sua “assinatura”. Isto infere que a “assinatura” não se nos mostra diretamente sem que tenha sua origem num ser humano individual. Como poderíamos nos comunicar uns com os outros se cada um, por sua conta, atribuísse significados arbitrários, relativos e subjetivos às coisas? Sigamos o texto: aquilo que fala originalmente e deixa as coisas ‘falarem’ é o espírito. Embora permaneça a pergunta sobre o que é esse espírito, ainda podemos concluir a partir do que foi afirmado que se trata de algo objetivo. O texto afirma que se as “signaturae” não se originam no espírito, só podem resultar de um “disparate histórico”. Assim sendo, os sinais das coisas não devem ser extraídos do aprendizado nem da sua interpretação histórica subjetiva, mas somente daquelas fontes objetivas e universalmente válidas que são chamadas de “espírito”.

O segundo parágrafo do texto de Boehme — que estabelece novamente uma relação com Deus – refere-se basicamente ao fenômeno da linguagem. “Então quando alguém fala, ensina ou escreve sobre Deus, eu ouço, leio e não o compreendo suficientemente; porém, quando o seu som e o seu espírito — provindos de sua ‘signatura’ e forma — entram na minha forma, marcando sua forma na minha, então posso compreendê-lo basicamente, quer esteja falando ou escrevendo, pois ele possui o martelo que faz repicar os meus sinos.” (Idem, p. 4) O termo “Deus”, que também aparece na primeira linha do primeiro parágrafo, não pode e não deve enganar aqui; o seu significado (assim diz Boehme) se revelará no nosso reconhecimento de nós mesmos. Esse termo não nos leva arbitrariamente a um exame dogmático mas, desde o começo, mantém em aberto a questão de como é possível falar-se do princípio e da causa primordial. Assim, não se refere a um ou outro discurso, a uma ou outra comunicação, mas à auto-expressão que se dirige ao originário.

Mas como acontece a comunicação, quer através de palavras, cores, sinais e sons? Como devemos interpretar Boehme — que, a fim de compreender o outro, sua ressonância e seu espírito devem sair de sua “signatura” e forma e “entrar” na nossa? Sabemos que um tom e um som aparecem quando um movimento mecânico afeta um certo órgão: o ouvido. Onde nãovida não há sons; só fenômenos mecânicos. A voz (“phonê”) se distingue do som (“psóphos”) por ser a primeira um ruído com função interpretativa (hermenêutica) e indicadora (semântica). Vozes são sinais através dos quais interpretamos, definimos e classificamos os fenômenos no seu sentido. A compreensão é possível, assinala Boehme, quando “uma ressonância e sua forma saem de sua assinatura e forma e entram na minha”. A transferência é explicável desde que algo comum a ambos confira um significado ao fenômeno. Os animais dispõem de vozes através das quais se comunicam. Essas vozes diferem segundo a espécie, mas permanecem inalterados dentro da espécie; seus significados são inatos.

Os seres humanos, no entanto, não estão em condições de se comunicarem simplesmente como o fazem os animais; eles precisam começar pela procura do significado dos elementos fonéticos com os quais desejam transmitir algo; assim sendo, esses significados estão sujeitos a mutações históricas. Os idiomas humanos emergem e desaparecem e, além disso, têm formas diferentes para cada povo.

Pelos primeiros dois parágrafos da obra de Boehme nós sabemos que os sinais, as “signaturae”, através dos quais esclarecemos, definimos e indicamos os fenômenos, não surgem simplesmente da vida mas, sim, do “espírito”. Novamente se apresenta a pergunta sobre o que deve ser compreendido por esse termo. Dissemos que é uma característica do ser humano o ser rodeado por fenômenos que ele não consegue interpretar de imediato; como resultado, o homem tenta imprimir-lhes sua assinatura, um sentido. Ao mesmo tempo, a “assinatura”, isto é, a interpretação dos fenômenos, deve ser examinada quanto à sua plausibilidade. Isto é feito através da revelação, pelo homem, a si mesmo e aos outros, das razões para as definições dadas. Para conseguir reconhecer cada uma das razões, ele usa uma teoria (pois “theorein” significa “olhar”) que, por sua vez, precisa ser confirmada por uma experiência. A “assinatura” com a qual definimos algo como tal, tem suas raízes, portanto, na compreensão da razão. A razão para a definição, no entanto, não pode ser arbitrariamente estabelecida pelo indivíduo, pois ela deve provar sua validade para todos. Essa validade universal da razão é o denominador comum, em consequência de que o sinal atribuído a um fenômeno também é aceito pelo outro. Segundo a formulação de Boehme, é o elemento que cria a possibilidade para o seu “eco e seu espírito partir de sua ‘assinatura’ e formar-se na minha forma; só assim posso compreender com a razão certa”.

Há duas maneiras de se compreender o que o outro diz: positiva e negativa. A compreensão é positiva se aceitamos a razão da assertiva do outro (explicamos a nós mesmos porque ele fala daquela maneira); é negativa se, a despeito de compreendermos as razões de suas assertivas, nos desviamos de suas definições. No segundo caso, devemos primeiramente mostrar que compreendemos a assertiva do outro e então provar que a razão que ele deu não é justificativa. A unidade da razão aparece — conforme a metáfora de Boehme, no segundo parágrafo — como o martelo que faz com que soe tanto o nosso quanto o sino do outro. A fala, então, não é mero som (“psóphos”), não é mera série de vozes (“phone”), mas fala humana.

Nesta altura das nossas reflexões, citaremos as seguintes características da definição de termo “espírito”: o processo específico que distingue o homem dos animais. O ser humano não deve ser compreendido apenas através do conceito da vida, pois os fenômenos não lhe revelam seus significados diretamente. É procurando e achando razões que o homem alcança as razões da “assinatura”. Esta situação especial, que distingue o homem do animal, nós a chamamos de “espiritual”.

O terceiro parágrafo de De signatura rerum diz: “Disto aprendemos que todas as qualidades humanas têm sua origem numa única; têm uma única raiz e origem; de outra forma, um homem não seria capaz de compreender o outro através de sons” (Idem, ibidem).

À primeira vista, este parágrafo parece não conter nada de novo, pois o “denominador comum” — ou, na terminologia de Boehme, a “única raiz e origem” — já havia sido mencionado como o requisito para a compreensão mútua. No entanto, precisamos examinar se há mais a aprender sobre as características desse elemento comum.

Como dissemos, a conversação com outros consiste no esforço em mostrar aos outros que — e por que — as razões das nossas próprias definições (desde que sejam diferentes das dos outros) são mais consistentes. Consistente ou correto, aqui, quer dizer que as nossas razões são objetivas; isto é, são atraentes a todos, e permitem convencer a todos. A razão, como tal, deve provar ser necessária no sentido de ser reconhecida por todos e, além disso, de obrigar aos outros (de maneira a sentirem a necessidade) a usá-la como base para suas definições. Se a razão não possuísse a característica da necessidade e, portanto, da validade universal, na realidade não haveria possibilidade de compreensão mútua: cada um estaria fechado dentro do seu mundo de símbolos subjetivos. Nos ater íamos ao domínio das “opiniões” ou de definições visíveis somente a “mim” ou ao “outro”. Aqui surge mais uma característica do espírito. Se, ao contrário do animal que nasce com o significado dos sons e dos fenômenos, o ser humano precisa procurar cada uma das definições, essa necessidade se lhe manifesta através da experiência constante do seu fracasso no trato com as coisas, com as pessoas, e na sua atitude diante das próprias paixões (medo, esperança etc). Esse elemento negativo, por sua vez, não poderia ser experimentado pelo homem não fosse o fato dele, constantemente, se defrontar com o efeito e as indicações de uma coerção já existente. Experiências negativas só são possíveis quando se está sob a compulsão de um regulamento, de uma lei, de uma obrigação que não se pode cumprir. Essa obrigação forçada, que produz o processo da busca, é chamada espírito, pelo qual a obrigação de uma vida puramente orgânica é distinta.

Há tentativas de explicação biológica para o fato do homem não conhecer as “assinaturas” e titubear em se orientar (deficiência do instinto). Contra essa atitude existem duas objeções decisivas: 1) Se os padrões animais afrouxarem, qualquer compulsão à procura de orientação declinará. 2) A indiferença, no entanto, é insuportável para o ser humano. E tão pouco pode ser superada pela volta ao paraíso perdido dos instintos animais. Justamente a experiência da tentativa de entorpecimento das paixões humanas na vida sensual é a que leva ao mais intenso tédio, saciedade e desespero; o que prova encontrar-se o homem sob uma compulsão nova que não pode ser derivada da vida animal. O problema desse esquema e de sua tensão especificamente humana é o tema da análise da angústia, de Kierkegaard, do qual trataremos no terceiro item deste capítulo.

A “situação espiritual” do homem é baseada, portanto, primeiramente na experiência de que os fenômenos são destituídos de, “assinaturas” e, em segundo lugar, na necessidade, na compulsão, de procurar essas “assinaturas”. Com isso chegamos a uma conclusão surpreendente: no decurso da nossa investigação, não usamos a fala como ser isolado pois, na realidade, nós mesmos somos órgãos e utensílios da causa que se manifesta em nossa fala. Sob esse ponto de vista poderíamos dizer que não somos nós que falamos, mas que algo fala através de nós, e que somos forçados a definir os vários fenômenos.

Mesmo a busca dos sinais dos fenômenos não surge por nossa livre vontade pois sem a definição dos sinais pereceríamos no âmbito dos fenômenos.

O fato mesmo da busca das “assinaturas” não depender da livre e espontânea vontade de cada um sempre volta a aparecer nas palavras de Boehme ao acentuar o caráter objetivo da fala, como na introdução a seu Aurora: “Deus me deu o conhecimento: não eu/que sou o eu/o sabe/mas Deus o sabe em mim… A quem, então, pertence o conhecimento?… Se Ele dá à luz/não sou em quem o faz, mas Ele em mim; eu estou como morto, no nascimento do conhecimento supremo, e Ele é minha vida. Pois eu nem o procurei nem o aprendi .. . Mas Ele é a minha compreensão. Portanto eu digo: eu vivo em Deus e Deus em mim/e assim eu ensino e escrevo sobre Ele/caros irmãos/mais nada sei”. [Na “Justificativa do Autor”, no início da Aurora, lê-se mais em baixo: “Meus caros irmãos! Não se tornem meus inimigos apenas pela minha sabedoria. Porque eu, / que sou o Eu / não sabia de antemão / o que lhes tinha escrito… Eu, no entanto, sou uma criança, carente de dádivas maternas. Estou desfalecido, como moribundo; mas o Altíssimo levanta-me com seu alento, para que eu siga o seu caminho… Para mim será recompensa suficiente conseguir o vosso alento, sondar-me em vós e oferecer-vos minha vida; o que mais devo oferecer-vos? Aceitem essa dádiva e a considerem boa”. J. Boehme, Aurora, em: Sämtl. Schriften, Vol. I, Stuttgart, 1955, p. 19, 20 e 24.]

O quarto parágrafo de De signatura rerum contém uma alusão à relação entre o espírito e a razão (“logos”). “Então com o som ou a fala, a forma se inscreve numa outra forma, uma mesma ressonância capta e move a outra, e no som o espírito desenha as suas próprias formas da essência e torna forma no ‘Princípio’, algo que se compreende pela palavra de onde o espírito se concebeu, no Bem ou no Mal, e com a mesma descrição vai para a forma de outro e desperta no outro, também, uma forma idêntica na ‘signatura’, de maneira que as formas coincidam numa só; então é um conceito, uma vontade e um espírito, e também uma compreensão.” (J. Boehme, op. cit., p. 4)

Uma nova indicação: a respeito da forma não se diz apenas que ela se “inscreve numa outra forma”, mas que: “uma mesma ressonância capta e move a outra”. Paralelamente à questão da “signatura”, da forma que até aqui se encontrava em primeiro plano, tem-se agora a ressonância que, na verdade, já fez seu papel na imagem metafórica do sino, anteriormente citada. Aquilo, através do que reconhecemos algo como algo — a razão —, corresponde, na tradição antiga, como já foi dito, ao “eidos”, à ideia; portanto, à necessidade do reconhecimento. O texto de Boehme é tanto mais extraordinário pois, além do processo de ver, aparece o processo de ouvir que lhe empresta um papel igualmente originário. Poder-se-ia dizer que ouvir — e portanto o âmbito do som — significa aqui ‘Vibração em ressonância” com o objeto “ouvinte”. Com isto o âmbito emocional, o domínio do “estado de espírito”, no sentido arcaico, viria para o primeiro plano. Seria difícil contradizer uma tal interpretação principalmente se nos lembrarmos que a teoria platônica de Eros, como um reconhecimento do primitivo, se baseia, em princípio, no impacto e na fascinação da forma e, portanto, no elemento emocional.

Este é o motivo pelo qual Boehme diz que a ressonância “capta e move a outra”. Diante do que foi discutido, está claro que a base da explicação não pode ser tomada simplesmente como um “objeto” racional. Um tal ponto de vista é origem da generalização das ciências isoladas, em que os fundamentos para explicar os fenômenos estão “à mão” na forma dos primeiros princípios e dos axiomas que pertencem a essas ciências. Se reconhecemos, no entanto, que precisamos procurar a razão para definir fenômenos, somos forçados a admitir que o homem, no sentido literal da expressão de Boehme, deve ser “captado e movido pela razão”.

O texto que citamos também indica de onde o espírito toma suas formas. Ele diz: “e no som, o espírito desenha sua forma que obtém da essência”. O termo “essência” deriva do latim “essentia” que corresponde ao termo grego “ousia”; “ousia”, que geralmente é traduzido vagamente como “substancialidade”, é uma forma de particípio do verbo “einai” = ser; “ousia” é, portanto, o ser de algo em sua realização; ou seja, o ser como “ente”. Por este motivo é que a língua grega pré-filosófica usava o termo “ousia” no sentido de “pertences”, isto é, de necessidades existentes. “Pertences” não são sempre identificados como a posse de dinheiro; ao pescador, por exemplo, estes podem significar a rede, sem a qual ele não pode ser o que ele é ou não pode exercer sua atividade específica. Para os gregos, o termo “ousia” tem uma conotação muito mais concreta do que quando lhe atribuímos um significado puramente abstrato.

Mas como devemos interpretar a afirmação de Boehme de que o espírito desenha (copia, obtém) suas próprias formas “da essência”? Na sua busca, o homem descobre o que os fenômenos são em si mesmos: ele descobre a sua essência. Nessa busca, o homem não pode proceder arbitrariamente. É verdade que o processo racional se revela quando os fenômenos são definidos por um processo de conclusão, de provas, que chamamos de “logos”; por outro lado, é impossível qualquer conclusão, qualquer ligação a não ser que possamos fundá-la num reconhecimento (noein) das formas primitivas, das “archai”. No processo dialógico, a “entidade” (ousia) dos fenômenos se revela; mas considerando que as definições às quais se chega pelo processo lógico têm suas raízes no reconhecimento das formas primitivas, isto é, na sua essência, trata-se de definições do espírito, tanto durante quanto como resultado do processo lógico. Portanto, Boehme diz: “o espírito desenha (copia, obtém) na própria forma”. Através do reconhecimento da razão, a multiplicidade dos fenômenos é reduzida à unidade da explicação, à unidade que torna possíveis as interpretações pela fala humana.

Talvez seja de espantar quando Boehme diz que, nesse processo, “o espírito se concebeu no bem ou no mal”. Não deveria ser absolutamente “bom” tudo quanto provém do espírito e portanto tem umsignificado espiritual”? Essa objeção não é válida pois no processo racional de esclarecimento, a fim de definir os fenômenos, agimos passo a passo, ou seja, a consistência das hipóteses é constantemente examinada e estas são rejeitadas se forem insustentáveis. Entre outras coisas, a história é o acontecimento desse processo que, é verdade, nem sempre leva ao esclarecimento da razão original, pois se pode ficar atolado em definições falsas. Portanto, pertence à natureza do espírito que o processo lógico, que tem suas raízes no espírito, pode levar tanto ao bem quanto ao mal, tanto à verdade quanto ao erro/fraude.

No quarto parágrafo da obra de Boehme que estivemos discutindo, pela primeira vez aparece um novo conceito: a vontade. “… então é um conceito, uma vontade e um espírito, e também uma compreensão”. A vontade só aparece, conforme já foi mencionado, quando o impacto de sinais diferentes e inequívocos — que nos animais são decisivos — não mais prevaleça; a vontade emerge sempre que paixões devam ser guiadas, por se tornarem ambíguas sob a coação de dever interpretar fenômenos; a vontade é o anseio por um objetivo, por um “telos” que é imposto pela razão. No processo dialógico, no entanto, o homemnão pode ter um único objetivo mas, sim, um objetivo por vez, que se revele passo a passo no decorrer desse processo. O objetivo da vontade, assim, já não é encontrado onde o impacto do indivíduo se expressa, mas na realização de uma afirmação objetiva que o processo dialógico traz consigo. A vontade só emerge como resultado da condição especificamente humana de enfrentar “possibilidades” e da obrigação de escolher uma entre elas.

0 quinto e último parágrafo do nosso texto contém uma tese surpreendente e decisiva: cada “signatura” nada mais é que o “recipiente” (ou invólucro) do espírito mas, não, o próprio espírito. O texto diz: “E então, além disso, compreendemos que a “signatura” ou forma não é espírito, mas é o recipiente ou caixa do espirito, onde esse se encontra, pois a “signatura” se encontra na essência e é como um alaúde em silêncio e que está mudo e incompreendido; mas se for tocado, sua figura será compreendida, saber-se-á qual é a sua forma e seu material e para que voz está afinado. Assim também a marca da natureza na sua forma é um ser mudo; é como um alaúde afinado, sobre o qual a vontade, o espírito, tocam; a corda que for tocada soará segundo sua qualidade” (Idem, ibidem).

Se o espírito representa o processo através do qual chegamos ao conhecimento, se o espírito se manifesta no surgimento de perguntas e na necessidade de respondê-las, então todo sinal exterior, toda “assinatura” só passa a ter vida e se torna eficaz na medida em que tem suas raízes na realização desse processo, e na medida em que pertence a esse processo. Num sentido parecido, Platão formula seu mito do deus egípcio Toth, que deu à humanidade o presente da escrita. Parece ser um presente altamente perigoso pois, com ela (a escrita), o homem corre o perigo de perder sua memória original [“Esta arte (a da escrita) oh! rei, tornará os egípcios mais sábios e de melhor memória, pois ela foi inventada como um meio de recordação e de sabedoria. Este, no entanto, respondeu: Oh! engenhoso Toth, alguém sabe o que é necessário para trazer as artes à luz; outro deverá ajuizar as vantagens e os dons que elas proporcionam aos que as usam. Assim também vós, pai das letras, acabais de afirmar o contrário do que elas causarão. Pois essa invenção inspirará o esquecimento nas almas dos que estão aprendendo, pelo descuido da memória, já que, confiantes na escrita, recordar-se-ão apenas por meio de símbolos externos mas não interiormente e de imediato” (Platão, Fedro, p. 274 e 4).].

No processo dialógico e com base no reconhecimento original, o homem atinge as causas originais que determinam seu mundo; remontar a elas significa lembrar-se. Se, através da escrita ou de outros sinais externos, nos afastamos desse processo auto-efetivante, isto implica a paralisação do perguntar; poder-se-á tornar instruído, mas nunca se alcançará a fonte espiritual. Mesmo a compreensão de um texto só pode ser conseguida através de um processo dialógico constantemente renovado. O que queremos dizer com isso é que a realidade humana é sempre um processo através do qual os seres humanos chegam a algo. É um processo que tem sua estrutura, suas emoções, seus perigos. Mas a realidade só é dada, entretanto, enquanto os homens estiverem “a caminho”. Tão logo parem, tudo se torna “peça de museu”. “Ser”, portanto, não é “estar concluído” mas um constante tornar-se (ou vir-a-ser). “Signatura” e “sinal” são formas de comportamento, de ação e de relacionamento, ou “receitas para pensar”. Fora dos relacionamentos, ou separados deles, são “caixas” mortas.

O passado (lembrar) e o futuro (previsão) se abrem — a fim de se tornarem “frutíferos” — na faculdade instantânea de escolher e de colecionar com base no reconhecimento original, ou seja, no processo em que o espírito vive. O “instante” presente, no sentido de uma “visão” discernente, nunca pode ser objetivado. O reconhecimento objetivado já é passado, torna-se imediatamente o que já foi, o im-perfectum, algo que já não mais possui sua consumação, seu “perfectio” e, portanto, algo a ser realizado outra vez. Somente no discernimento auto-efetivante, com base no dom de ver o original, vive a tradição e assim o que já foi consumado nunca poderá ser salvo através do ater-se literalmente a um texto ou às normas de estatutos; senão tudo se tornaria mudo, “peça de museu” e vazio como todos os objetos puramente arqueológicos que estão espalhados em torno de nós sem qualquer efeito. Este é o significado das palavras de Boehme, de que a “signatura” ou forma não é espírito em si, mas meramente o recipiente (invólucro) ou “caixa do espírito”. Relembrando a metáfora de Boehme: o alaúde lá está, mas ele não é música; o alaúde precisa ser constantemente tocado de maneira sensível.

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