Nesse capítulo dos hábitos, devemos incluir o que em sentido lato poderíamos dominar “hábitos sociais”, conjunto de formas consuetudinárias de comportamento e compreensão humanas.
Em grande medida recebemos a vida feita, pois o nosso eu social é um princípio anônimo e objetivo, uma estrutura que independe de nós e que vestimos para nos enquadrar num dado grupo. Apreciamos o mundo não através de nossos próprios sentidos e de uma lógica individual, mas sim através de uma ótica do rebanho. Não há sociedade sem uma mentalidade comum, sem um modo coletivo de ver e de conjurar o real, pois nessa visão anônima e social, o mundo sempre se apresenta sob os seus ângulos mais favoráveis e tranquilizadores. A própria sociologia é hoje unânime em reconhecer que a “natureza” sempre se manifesta ao homem através de um a priori social e que é recortada dessa ou daquela maneira no plasma amorfo das sensações, segundo as intenções e objetivos míticos e religiosos do grupo.
Dessa forma, o critério máximo de certeza e de verossimilhança do pensamento individual é constituído pelo complexo de significações e representações próprias do grupo, por aquilo que poderíamos denominar, com Chestov, a “omnitude”.
É justamente essa forma social de razão e de ter razão, essa evidência multitudinária das ruas que forra o mundo de significações de curso esforçado, que obscurece no homem a consciência para evidências mais profundas, para o sensus sui. Perdendo-se na alteridade social, o eu se reconhece no espelho deformante da consciência grupal e passa a transcrever todo o inefável de sua própria subjetividade, na linguagem grosseira da exterioridade social. “Com efeito — diz Chestov — enquanto nos mantemos dentro dos limites da razão, dentro dos limites em que se desenvolve aquilo que a consciência comum, a omnitude, chama de vida, a compreensão do que acontece diante de nós se reduz a uma explicação meramente mecânica.”
Somente quando abandonamos a convivência com os estereótipos com que o social e a consciência comum revestem as coisas para o seu sossego, é que certos aspectos incalculáveis e tremendos da realidade se revelam, transfigurando o habitat inócuo da quotidianidade. Surge então o homem subterrâneo, o homem essencial para quem duas vezes dois pode ser cinco.
O mundo que recebemos em nossa experiência quotidiana e vulgar e com o qual mantemos comércio em nossa existência prática é um ente de consistência puramente diurna, secular, pragmática, despido de qualquer verdade superior. Há momentos, porém, em que se descerra o véu de Maia da consciência comum, e podemos então vislumbrar o prodigioso mistério da existência. “Nesse momento — diz Claude Magny — os conceitos sociais, as palavras, aparecem como simplesmente pousados na superfície das coisas; desde que abrimos um pouco mais os olhos, eles se desvanecem e nos abandonam face a face com coisas indefiníveis, ao seu arbítrio, sem qualquer defesa contra elas.” Uma experiência desse tipo é a que nos descreve Rilke nos Cadernos de Malte Laurids Brigge, quando, através da solidão, vemos seu personagem distanciar-se cada vez mais dos limites da verossimilhança banal, atingindo o limiar do “tempo da outra explicação”: “Sim, ele sabia que nesse momento se afastava de tudo; não somente dos homens. Um instante ainda, e tudo perderá seu sentido: essa mesa, esse corpo, essa cadeira à qual ele se agarra, todo o quotidiano e próximo se tornará incompreensível, estranho e inerte.”
O que pretendemos frisar aqui é a medida em que essa trama de representações sociais e utilitárias das coisas, essa concepção objetivante do real, pode dissimular todo um campo de experiências e de realidade.