Já não foi fácil ter coragem para dizer, nas duas Seções precedentes, nas barbas de Platão, de cuja obra toda a Filosofia Ocidental não passa de um comentário — e foi o tê-lo dito que me fez ter querido dizê-lo! —, que não havia relação alguma entre o Ser e o Bem. Há de haver coragem agora para dizer, nesta Seção, que tampouco há poder, coisa sobre a qual toda a Civilização, Ocidental e Oriental, parece estar assentada, como uma galinha chocando um ovo. Há de haver coragem para dizer com todas as letras, e com isso vir a querer dizê-lo(!), que também o poder é um desses simulacros incompreensíveis do Instrumento, e que ficam… para sempre? (não,só se não forem compreendidos!) no âmbito interno do Instrumento. Esse “âmbito interno” do Instrumento é aquilo que agora vamos abraçar, como dois amigos que não se veem há muito tempo, apesar de se olharem todos os dias.
Não sei se o leitor compartilha comigo a visão da relação profunda entre esse “Não-Ser do poder” (“impotência do poder” ?) e a possível visão do vínculo prático entre compreender e ser compassivo. Mas o preâmbulo a todas as iluminações é aquela visão extática (estamos nela, ao final do Primeiro Capítulo!), de modo nenhum desesperada(!), mas calmamente plácida e profundamente grata, de que não há absolutamente nada que (o) “eu” possa fazer!
Tornar dispensável o parênteses é o X da questão! Não há coisa alguma a atingir! Nenhuma prática conduz, provoca, leva, causa o que quer que seja, inclusive, e sobretudo, a Verdade. O que quer que eu faça, seja o que for, é tudo que há para ser feito. Digo-lhe, sussurrando, upanishadicamente, com toda convicção, franqueza, e com a disposição de “quem avisa amigo é” : não há, de fato, “poder”. A noção mesma é uma ilusão. Não há causas, “agentes”, “princípios ativos”, químicos ou humanos, que tenham o “poder” de fazer o que quer que seja sobre o que quer que seja. Nada tem poder sobre nada. Cada ação, cada acontecimento, é parte de uma configuração total que não está no tempo, logo não há tempo para o exercício do poder. Não havendo “poder”, tampouco há “renúncia ao poder”. O Ser é realmente a Divindade (Ela não “existe”, só “é” !), mas… a Divindade não tem poder algum. Não descemos da Cruz, não porque somos impotentes, ou renunciamos ao poder, mas porque não há poder, só a vulnerabilidade indefesa da paixão. Aquele que o Instrumento pensa que teria “poder” sobre mim não o tem absolutamente. Tampouco aquele que o Instrumento pensa que sou “eu” poderia fazer o que quer que seja ao que quer que seja. Estamos todos no mesmo barco, o que percebemos são aspectos de nós mesmos ou aspectos da Experiência em si. Na compreensão disto e em nada mais, consiste o “voto de Obediência”.
A Divindade ou O Ser, não “governa” o Mundo, seja pela força, seja pelo poder, seja pelo querer, mas pela Autoridade Absoluta da Verdade Eterna, que, não precisando fazer nada, é suprema atividade. Não há “perscrutação da Providência”, não porque somos condenados à ignorância, mas porque não há “tempo para fazer planos de salvação”, de modo que tampouco haveria o que perscrutar: Só há a espontaneidade imediata e inocente da ação. Jamais sabemos o “porquê” ou o propósito das coisas, à parte as maquinações inconscientemente reativas do Instrumento, porque… não há “porquê” ou propósito em coisa alguma. A totalidade da Criação, abstraído seu Instrumento, é absolutamente não-intencional, nos dois principais sentidos de “intencional”, o de “visar um objeto” e o de “ter um propósito”, e absolutamente “intensional” (com s), no sentido de ser “puramente qualitativa”. Na compreensão disto e em nada mais, consiste o “voto de Castidade”.
A Divindade, ou o Ser, não “governa” o Mundo de caso pensado, mas anulando absolutamente todo passado e todo futuro na eternidade do instante. Não possuímos nada, não porque sejamos deserdados, mas porque somos um com tudo que há. Tudo está ligado a tudo, de uma só vez e de uma vez por todas. Somos as infinitas interfaces, que “distinguem para unir” o tempo à eternidade, em fronteiras ontologicamente coincidentes. Na compreensão disto e em nada mais, consiste o “voto de Pobreza”.