Escrever a última Seção [A Questão da Ética], em que apenas rapidamente desloco a valoração das suas supostas origens num “agente livre e moralmente responsável” para a reatividade inconsciente da Mente, do Pensamento e da Linguagem está em consonância, assim como a própria “desconstrução” da problemática da Ética, com o “espírito do tempo” — o que destoou terá sido, provavelmente, tê-lo feito à maneira de uma metanarrativa de matiz ontoteológico. Mas… sugerir que talvez o lugar da Ética seja o Inferno!? E, no entanto, afirmo que, se o Inferno for o seu lugar, então lá ela sempre esteve, o mal-intencionado título da Seção não se referindo a algo que “teria acontecido” à Ética, mas sim a um predicamento seu, inerente e inescapável. Contudo, seguindo meu estilo, que é o de pintar quadros escritos sem procurar esconder as pinceladas, para mim, agora é como se tudo mudasse de repente, como num passe de mágica. Confesso-me de repente temeroso de dizer o que penso, com todas as letras que aquilo que penso merece e, ao mesmo tempo, ansioso de expô-lo à luz do Espírito. Pois, mesmo depois da não apenas insidiosa, mas verdadeiramente devastadora crítica dos “Mestres da Suspeita” — Darwin, Nietzsche, Marx e Freud —, a Ética continua a parecer a muitos — e, como são… muitos, é sufocante! —, em todos os campos, teóricos e práticos, da chamada “Sociedade Humana”, demasiadamente importante. As vezes tenho a impressão de que só se fala nisso! Seria o medo? Os melhores analistas das relações entre o medo, essa emoção básica do Instrumento encarnado, e inerente a todo desejo e todo apego, e a civilização, cultura, etc., apostam que o “medo fundamental” não seria o da morte, já que é impossível tomar como objeto a própria morte, muito menos acolhê-la à Experiência que somos, mas o medo de não ser, o medo de não ser coisa alguma. Seria o medo de não ser que levaria a maioria das encarnações do Instrumento a frenéticos, constantes e inconscientes “investimentos” reativos em produtividade, aquisição, consumo, ânsia de sobrevivência, etc.? As vezes os que não param de falar de Ética me parecem estar é querendo proteger coisas bem mais rasteiras, como seus “direitos”, seu conforto, sua propriedade privada, coisas desse tipo! Coisas… muito boas, diria o Instrumento, que leu, mas jamais entendeu, o Fausto goetheano. Seria uma tábua de salvação num mar revolto de “tentações” de não ser, mas só de “existir”, uma tábua de salvação daquilo a que eles se apegam — e se apegam a tudo, da propriedade à qualidade de vida, do “corpo” e suas paixões à salvação da própria “alma” ? O apego é geralmente tido como uma característica muito… humana, não? Seja como for, é para mim impressionante — e chocante — como hoje em dia quase todo mundo pensa que a Ética é algo importantíssimo, a “única saída”, a “única esperança” de tudo que aflige a “humanidade”. Mesmo os religiosos costumam pôr a Ética quase que acima de tudo, às vezes acima de Deus. Mas não é de hoje: desde a Antiguidade, no Oriente era preciso ser “moral” ; como condição sine qua non para ter o direito de ser instruído em yoga; no Ocidente, a preocupação, em última análise meramente prudencial, com a racionalização do ethos, com a maximização utilitária de recompensas e minimização de punições marca nossa cultura — até mesmo a figura simbólica do “herói” —, como que desde “o início dos tempos”. Será que somente poucos, psicopatas certamente(!) [sic], portadores da Síndrome de Cegueira de Valores, desconfiariam de que a racionalização do ethos (caráter, habitat, costumes), ainda que fantasiada de “contemplação”, theorein, batismo da Inteligência, etc., ainda assim é uma… racionalização?
Os cientistas, qua cientistas — na verdade, tal coisa é uma “invenção da imaginação” instrumental! —, fazem de uma alegada ou suposta (num certo sentido) independência entre a Ciência e a Ética, ao mesmo tempo uma prova [sic] da força da Ciência e da necessidade de “submeter as aplicações práticas da Ciência (tecnologia) a uma Ética”, seja para a “Salvação da Humanidade”, seja para evitar o sofrimento, para melhorar a distribuição, atribuição e retribuição da Justiça, da renda, ou lá que diabo seja. Até os pós-modemos, em geral, embora tendam a desconstruir e relativizar tudo, procuram, de uma maneira ou de outra, aqui ou ali, com medo, vergonha ou simples hipocrisia? — posso imaginar tudo, menos… a compaixão! — , “retomar” o fio da meada, que, na verdade, (?!) já entreviram como perdido para sempre em Ética, de roldão, junto com as metanarrativas ontoteológicas ou logocêntricas: cada vez com mais frequência se metem a rediscutir, por exemplo, a “possibilidade” de uma Ética, ou as implicações éticas do atual “fenômeno de efervescência religiosa”, como se fossem questões capitais para a viabilidade de um contrato social mínimo, etc. Alguns filósofos, como os pragmatistas, simplesmente adoram discutir Ética, “alternativas para supostas retomadas da Ética” (ou alternativas para a impossibilidade da “Ética” ?). Na contrafilosofia analítica, o que se produz em “Metaética” (deontologismo, consequencialismo, utilitarismo, cognitivismo, não-cognitivismo, etc.) dá para encher uma biblioteca inteira. Passo. Outros filósofos, como Charles Taylor ou Tugendhat, para só mencionar dois que no momento me ocorrem, dentre os de língua inglesa, Habermas, Apel, dentre os de língua alemã, Lima Vaz, dentre os de língua portuguesa — de fato contam-se às centenas! —, parecem ver na refundamentação de tudo na Ética, por variados e imaginosos subterfúgios, uma espécie de “única saída”, não só para a Filosofia, mas sobretudo para a sobrevivência (certamente não para a verdadeira Vida!!!), para os impasses e o sofrimento no mundo contemporâneo, impressionados demais, talvez, com a veneranda tradição platônica de união do Ser com a Verdade, o Bem e a Beleza. Enfim, tenho a sensação de estar contra todo mundo ao começar uma Seção destinada a “detonar” a “Ética” como área legítima de investigação, seja filosófica, seja teológica e mostrar-lhe, ainda que com essas hesitações iniciais, as portas do Inferno. Mas o fato é que o Instrumento encarnado em mim, a encarnação do Instrumento que às vezes — faço sinceros votos de que não sempre — escreve este livro, sente-se de repente incapaz de realmente querer dizer (na língua do Império, really mean it) que, a não ser como artifícios do Instrumento, julgar é separar-se do Ser; que Hitler não era bom ou mau, não estava certo ou errado; que o “darwinismo social” nem é, nem não é eticamente condenável; que nem se deve nem não se deve praticar o terrorismo, o aborto, estuprar crianças, matar a velhinha de bengala que atravessa claudicante nosso caminho, etc. Que fazer? O vínculo entre “razão” e “boa vontade” (ou “vontade voltada ou atraída para o Bem” ) parece-me definitivamente irrecuperável, por várias considerações que o leitor terá feito comigo ao longo da última Seção. Contudo, filósofos, cientistas, religiosos, etc. relutam tenazmente em entregar o tema da Ética à Ciência (sobretudo à Psicologia e à Sociologia Evolucionistas) ou, simplesmente, à Política (aos Sistemas Jurídicos e, finalmente… à Polícia [sic]). Afinal, haveria ou não haveria fatos “morais” ? Contradictio in terminis.