Fernandes (SH:12-15) – Antropologia Filosófica

Bem… nossas investigações acerca dessas teses poderíam chamar-se de “Antropologia”. Mas há uma “antropologia física”, que é uma ciência biológica; outra “cultural”, que é uma ciência… digamos, “social”. Há quem pense que haja antropologias “religiosas”. E, finalmente, ainda há uma outra, cujo estatuto acadêmico é tido — injustamente! —, em certos departamentos de Filosofia, como altamente dúbio, que se chamaria “Antropologia Filosófica”, e que vem a ser precisamente a área de investigações do presente ensaio. Essa Antropologia Filosófica foi inaugurada, se não por Sócrates, pela famosa “quarta pergunta” de Kant, “Que é o homem?”, pergunta que contrapôs à subjetividade moderna uma perspectiva como que de “terceira pessoa”, mas, na verdade sem “pessoa” alguma, porque “transcendental”. (Dito assim, temo que esteja reproduzindo, sem créditos, uma frase de Charles Taylor, em As Fontes do Self). [12]

Ora, a história dessa Antropologia Filosófica pareceu condená-la a uma vida curta ou a um fim prematuro; por um lado, por causa das reações pós-modernas às diversas formas de humanismo; por outro lado, pelo imperialismo universal, irresistível e avassalador, da Ciência “dura” — a Física matemática e a Biologia neodarwinista — sobre todos os demais campos da cultura. (Na penúltima grande enciclopédia filosófica anglo-saxã do século XX, a de Edwards, 1968, a disciplina mereceu um mau artigo; na última, a de Craig, 1998, desapareceu por completo. Sinal dos tempos. Mas não uma surpresa.)

No século XX, aquilo que se costuma chamar de “morte” foi tomado como a solução, não só filosófica, para tudo que pareceu atrapalhar o “bom andamento” do que quer que fosse. Eliminou-se a Ontologia — exagero?! —, então eliminou-se da Ontologia não só o que parecia incompreensível (por carecer, por exemplo, de critério de identidade), mas também o que levava a impasses. Naturalizou-se quase toda a Epistemologia, como se ela fosse uma cobra a devorar-se pela própria cauda (mas como poderia comer a própria boca?!). Reduziu-se a Estética às perplexidades sem guia dos pós-modernos. Reduziu-se a Ética a uma “semântica de terceira classe”, ou segunda categoria, que se passou a chamar de “metaética”, neste caso, a “desconstrução” dessa tradicional disciplina filosófica deveria ter sido muito mais drástica — mais ainda que a de Nietzsche! (V. Capítulo 3, adiante) O que as tradições chamam de karuna, agape, charitas, etc. não tem nada a ver com o que as éticas “filosóficas” (e também as profissionais!) chamam de “bem”. E este, por sua vez, pace Platão, nada tem a ver com o Ser, ou com o Ser do Humano. Ainda que o “bem” da Ética tivesse algo a ver com compaixão, quem fosse “bom” jamais precisaria de “ética”, e quem precisasse de “ética”, por sua vez, jamais seria “bom”. Mas como se pensa que o ser humano, mal entendido, talvez como “animal racional”, é o lobo do ser humano, o jardim zoológico (e a propriedade, etc.) precisa de jaulas, como “éticas”, sistemas jurídicos, superegos, etc. Mas proclamou-se ainda a “morte de Deus” e, em seguida, também a “morte do homem” (dois “personagens conceptuais”, diria Deleuze…), o fim disso e o fim daquilo. Esvaziou-se de quase [13] todo sentido a ideia de “verdade”. Este último processo, que, dizem, teria culminado em Nietzsche, sem dúvida começou com os antigos gregos, que cortaram o fio de prata que ligava a noção de “Verdade” à de aletheia e amarraram-na com arames à noção de episteme. (Esta última, e a noção de “Ética” ou racionalização do ethos, nasceram da falta, da necessidade de “justificativas”, ou seja, nasceram dentre aqueles que teriam sido expulsos do Paraíso.) Finalmente, fez-se da linguagem um fetiche. (Mas, se o dedo aponta para a Lua, que tolice ficar olhando para o dedo!) O cinismo e seu primo irmão, o ceticismo, as notícias fúnebres, enterros, necrológios, estufaram o peito ou puseram um sorrisinho sarcástico na boca de “heróis filosóficos”, de expressão insana, ora a celebrar, ora a negar uma suposta “vida”, ora a idolatrar o “desejo” como máquina da morte, ora a desinflar supostos balões metafísicos com alfinetadas analíticas. Sendo a vitória de todos esses heróis infalivelmente pirrônica, estivemos, no século XX, diante, não de “efervescêcias” ou de “criatividade”, mas de formações militantes de vários exércitos de desesperados. Da Arte à Lógica, tudo como que se desdobrou e refletiu sobre “si mesmo”: baile de máscaras em salão de espelhos. Que lástima a Filosofia no século XX!

Na minha visão das coisas, todos estiveram a serviço, seja de caso pensado, seja como inocentes úteis, da Autoridade Científica e seus grupos terroristas. Já a Ciência, digamos, “pura” (“pesquisa básica” ou “fundamental” seria talvez mais apropriado), não tendo tempo para essas palhaçadas, avançou incrivelmente, continuando o projeto iluminista de passar sobre nossas supostas “subjetividades” como um trator, ou como quem anda sem dar a mínima para os insetos que pisa. Todos se curvaram — inutilmente, pois estavam é sendo esmagados —, inclusive os teólogos.

Algumas vítimas desses morticínios, contudo, continuaram a nos assombrar a existência. (O leitor verá que, para mim, existir é estar fora do Ser.) Fantasmas antigos são a cada geração rebatizados com novos nomes. Outros como que ressuscitam, saem dos antiquários falidos pelo descrédito e irrompem na urbanidade (?!?) filosófica como verdadeiras erupções vulcânicas. Em definitivo, não morreram, absolutamente! Da minha lista de mortos, por exemplo, [14] não constam, nem Deus, nem o Ser Humano, nem a Antropologia Filosófica. Esses “mortos” estão bem vivos e constituem o tema deste livro, que não é sobre defuntos, mas, ao contrário, pretende ser uma celebração da Vida como Experiência Humana ou vice-versa. Escusado lembrar novamente ao leitor, que já o deve ter depreendido, que minha celebração é suspeita, pois está na contracorrente da pós-modemidade, no mínimo no que concerne a algumas das características desta última: relativismo, pragmatismo, construtivismo, idealismo linguístico, uso maníaco da navalha de Ockham, etc., e no máximo no que concerne, não ao “mestre”, ou ao “príncipe”, mas ao verdadeiro “rei” do “não”, do negativo, monarca absolutista do niilismo, o único adversário (ou, paradoxalmente, estranha espécie de aliado?) neste jogo de xadrez, que também é este livro, que me poderia mostrar as portas infernais de um xeque-mate: refiro-me ao filósofo franco-romeno Emil Cioran, de cujo xeque talvez tenha escapado. (A partida continua…? Sem dúvida, mas se tudo é dor, então por que usar a ideia de “dor”? Neste livro, prazer e dor são pólos do que se chama de “sofrimento”. Além disso, as rejeições totais correspondem às aceitações totais…)

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