Fernandes (FC:41-42) – conhecer não é acrescentar, mas retirar

A Filosofia pode, portanto, libertar-nos, tanto do “dever ser”, essa marca da escravidão, quanto da “intenção”, essa artífice dos métodos. Assim como, talvez, a Estética não se possa disciplinar como uma teoria do Belo, mas, com mais pertinência, como uma investigação da singularidade irredutível da sensação-como-modo-de-conhecer, também a Ética não se poderá disciplinar como uma teoria do Bem ou do Dever Ser, mas, com mais pertinência, como uma investigação que aponta para além do bem e do mal. O caráter (ethos) pode bem ser o destino do ser humano, como nos advertiu Heráclito: mas somente, e somente se, faltar-lhe atenção.

Tampouco a Epistemologia pode disciplinar-se deixando-se absorver pela chamada “Questão Metodológica”, o que seria tornar-se uma teoria do que não se tem, mas se deve adquirir. Com mais pertinência, como já disse, a Epistemologia é investigação daquilo que nos condiciona, ou do que havemos de nos livrar, por meio da compreensão. É libertando-nos da teia do conhecimento, enquanto construção, que realizamos o que já temos, sempre tivemos, jamais deixaremos de ter: ou seja, o que somos na nossa verdadeira natureza.

Disciplinada, a Filosofia é, pois, paradoxalmente, a indisciplina ela mesma. Não que se tenha tornado errática em relação a um “alvo”, mas porque colapsa em “singularidades”, em diferenciais em que os valores deixam de “valer”, por força das intensificações infinitas da própria investigação. O “Ser enquanto Ser” é a primeira dessas singularidades, em que o “Humano” colapsa numa espécie de Consciência Não-Intencional, ao compreender o processo mesmo da intencionalidade: aí temos a verdadeira Ontologia e a Antropologia Filosófica. A “segunda” — mas não numa ordem linear — é a “Reação” (dos “reagentes irracionais” que chamamos de “agentes racionais”), que colapsa na espontaneidade absoluta da Ação, inerente à compreensão mesma da “consciência” pontual, à compreensão mesma do “ponto”, do ponto de vista, do ponto cego, da condição egocêntrica, da raiz do desejo, que é a Identificação. E aí teríamos a verdadeira origem da Ética.

A Consciência como a singularidade ontológica, a Ação como a singularidade ética: indisciplina das indisciplinas! As outras duas disciplinas básicas entram em “formação” como antípodas: a Epistemologia, enquanto investigação positiva do conhecimento, só se consuma quando colapsa na compreensão total desse processo, ou seja, na desconstrução do que é por aí assujeitado, na compreensão de [41] que “objetivação” e “formação do sujeito” são aspectos de um mesmo fractal, de modo que conhecer não é acrescentar, mas retirar, despojar-se do que recobre o Ser; e, no outro extremo do espectro dessas intensidades, estará a Estética, enquanto investigação da sensação como singularidade, o que só se consuma quando colapsam, tanto a forma, a abstração, a repetição, o “motivo”, quanto a expressão — de Quem? —, o orgânico, o representativo.

Disciplinada, a Filosofia é, portanto, inovação — “zerada”, absoluta, ex nihil — incessante da singularidade: o tornar-se, finalmente, “desvalido”, o “des-valer” das díadas que representam a ignorância: Ser e Nada; Verdadeiro e Falso; Bem e Mal; Ser e Dever Ser; Belo e Feio. É essa potência que deveria ser exercida todas as vezes que fazemos “Filosofia da …”. Ficaria claro porque são distintas a Estética e a Filosofia da Arte; a Epistemologia e a Filosofia da Ciência. E ficaria mais claro que a Filosofia não “é” História da Filosofia, assim como História da Filosofia não “é” História, por mais que a História e a História da Filosofia ocupem espaços proeminentes no carro que pode ser puxado pelos bois.

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