GIUSEPPE FAGGIN — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
A “THEOLOGIA DEUTSCH”
Em 1516 Lutero publicou em Wittemberg, por intermédio do editor Grünenberg e sob um longo e arbitrário título composto por ele mesmo, aproximadamente a metade de uma pequena obra mística que acreditava fosse um resumo dos sermões de Tauler. Em 1518 publicou uma segunda edição ampliada mas deliberadamente alterada também em alguns pontos, com o título de Eyn theologia deutsch, que permaneceu em todas as edições posteriores. O título original Livrinho da vida perfeita foi conhecido por obra de Reuss que em 1854 descobriu, na biblioteca do príncipe de Löwenstein em Bronbach, um valioso manuscrito da pequena obra, que remonta a 1497. O texto está precedido por um breve prólogo que nos oferece as únicas e imprecisas notícias que conhecemos sobre seu autor. “Este livrinho foi escrito por Deus mediante um homem sábio, devoto, verdadeiro e justo, amigo de Deus, que pertenceu à Ordem teutônica e foi sacerdote e custódio do convento da Ordem de Frankfurt. Este livro nos ensina muitas diferenças preciosas da verdade divina, como e em que proporção se podem reconhecer os verdadeiros e justos amigos de Deus e também os injustos e falsos espíritos livres tão prejudiciais para a Santa Igreja”.
A pequena obra remonta aos fins do século XIV e reflete diretamente a influência de Meister Eckhart a quem, não obstante, não se menciona expressamente, ainda que apareçam com frequência, quase textualmente, passagens de sermões eckhartianos. Outras fontes são os Evangelhos, Santo Agostinho, Pseudo Dionísio Areopagita e Tauler. Como se pode ver desde o começo, o autor se propõe demonstrar a plena ortodoxia de seu pensamento e se preocupa em manter bem distinta sua doutrina da doutrina herética dos livres espíritos: e isto revela claramente,por um lado, que a condenação pontifícia do misticismo eckhartiano não conseguiu conter o amplo movimento religioso promovido e alimentado por Eckhart, senão que no máximo havia tornado mais cautelosas as expressões e os ímpetos da especulação. Por outro lado, mostra que os Irmãos do livre espírito e os bigardos heterodoxos costumavam apoiar na autoridade de Meister Eckhart seus próprios erros doutrinais e práticos. O monge de Frankfurt acusa mais de uma vez a estes falsos místicos de não haver compreendido o significado da verdadeira “liberdade de espírito” e de havê-la confundido com o capricho subjetivo e com a anarquia moral. Quando o homem percorreu todos os caminhos que conduzem à verdade e os praticou até o ponto de sentir-se cansado, chega o demônio e o faz crer que superou o último e mais elevado degrau da perfeição e que, portanto, já não necessita nem escritura, nem doutrina, nem obra nenhuma. Daí nasce nele uma falsa tranquilidade e um grande orgulho interior que o faz pensar assim: “Sim, agora eu estou acima de todos os homens e, por conseguinte, é justo que eu seja um Deus para todas as criaturas e que estas e especialmente os homens, me sirvam e a mim se submetam”. Ele, como Lúcifer, se declara igual a Deus e quer ser, como este, livre, sem necessidades, sem vínculos e quer estar acima de todas as coisas, ser superior à própria consciência e à lei divina; se considera além do bem e do mal, despreza todas as práticas, as normas, os mandamentos e os sacramentos da Igreja e não se detém diante de nenhum delito.
Contra este amoralismo naturalista que se antecipa a Nietzsche e à sua doutrina do super-homem com algumas expressões de Eckhart, o monge de Frankfurt, em pleno acordo com a genuína ensinança do Mestre, reafirma a fundamental relatividade da criatura diante do Absoluto e a função disciplinadora e catártica das obras, que “constrangem à ordem” a inata cegueira e a maldade dos homens. Mas a proclamada necessidade das obras, mais que um motivo coerente com todo o espírito da Teologia alemã, é uma declaração à margem da doutrina predominante e até em contradição com ela. Também para o francfortês, a ação exterior continua sendo um “meio” que encaminha para uma pureza interior e oferece a tudo o que é externo o valor da divina interioridade.