Empédocles: Amor

62. Uma hipótese recentemente ensaiada (Kahn, 1958, 1971) constitui o Amor no único traço de união entre o poema «físico» e o poema «catártico», com sentido intencionalmente posto em resolver a contradição entre a alma que, no primeiro, perece com o corpo, e a alma que, no segundo, e em conformidade com as doutrinas orfeo-pitagóricas, ou do chamado círculo xamanístico (cf. § 47), não depende das vicissitudes de que falam, por exemplo, o frgs. 8 e 9: (8) «em outra coisa te direi: nascimento não há de um único entre os seres mortais, nem fim pela morte infausta; mas só mistura e permuta (dos elementos) misturados — eis o que os homens denominam nascimento»; (9) «Quando, misturados (os elementos), vêm à luz etérea, sob o aspecto de homem ou de besta-fera, ou de planta ou de ave, dizem que isso é nascer; mas quando, depois, uns dos outros se apartam, falam, então, de infausta morte. Não dizem como justo seria dizer: mas, obedecendo ao costume, assim o direi também.» No poema «catártico», o final do frg. 115 aponta, por contraste com a funesta obra da Discórdia (Ódio), para o que seria uma alma (daimon), criatura do Amor, eternamente viva no reino do Amor. Vale a pena citá-lo por inteiro: «Oráculo do Destino, dos deuses remoto decreto, sempiterno, e por amplos juramentos selados: se algum, seus membros maculou de sangue homicida ou, perjuro, o Ódio seguiu — algum dos a quem longa vida em sorte coube, três vezes dez mil gerações andará errante, dos beatos apartado; e renascerá pelo tempo em fora sob todas as espécies de formas mortais, uma por outra trocando as tormentosas sendas da vida. Que o Éter potente no Mar o precipita, e o Mar o lança na Terra árida, e a Terra para o Sol esplendente, que de novo o arremessa para os turbilhões do Éter. Cada um de outro o recebe, mas todos o repelem. Um desses eu sou também, por Deus banido, e errante: que confiado fui no Ódio insano.» Em primeiro lugar, o que este fragmento nos diz é que o daimon imortal cai num mundo que não é o seu. Mas esse é o mundo tão laboriosamente descrito pelo autor, no poema «físico». Afirmar que, no nascimento, as almas «revestem alheias túnicas de carne» (frg. 126), reduz-se ao mesmo; e a naturalíssima ilação é que «este espírito exilado, veio de um mundo diferente, incorpóreo, do qual o poema físico não mostra qualquer vestígio» (Kahn, op. cit., 14) e, por conseguinte, ainda não se vê como os dois poemas se podem conciliar. A tese de Kahn propõe que a única relação entre o poema físico e o poema catártico esteja «no paralelo entre os papéis que o Amor e o Ódio desempenham em ambos», e que esse paralelo é «o princípio fundamental da unidade, no pensamento de Empédocles» (p. 16). O filósofo de Agrigento «parece insistir em que as mesmas potências prevalecem no destino do universo e no do homem. E tal como o Esfero físico surge a harmonia sobrenatural, assim o elemento do Amor, nos compostos mortais, parece como que um representante físico do daimon exilado» (ibid.). Decerto, nos fragmentos que subsistem, Amor e Ódio são os únicos elementos que comparecem nos dois poemas, pois a única menção dos outros quatro, no citado frg. 115 do poema catártico, não serve senão para relevar o papel do Ódio, na rejeição do daimon imigrante. Todavia, se bem compreendemos a intenção da tese, bastante frágil se nos afigura a ponte que transpõe o suposto abismo que separa os dois poemas. Preferiríamos ainda resignarmo-nos a pensar que «a hipótese de um irredutível dualismo entre ‘natureza’ e ‘espírito’, no pensamento de Empédocles, pode salvá-lo da contradição» e que esta o não «priva, ao mesmo tempo, de qualquer real reivindicação de inteligibilidade» (p. 14). Pode haver certa incoerência da nossa parte, em exigir que um pensador seja coerente a todo o custo, sobretudo, a modo como desejaríamos que o fosse, e, em particular, neste caso, que era o do momento em que, na Grécia, as novas ideias acerca da imortalidade da alma ainda esperavam acomodar-se com as antigas crenças na sobrevivência do que não era corpo nem alma, naquela codificação filosófica, em que a cifra cosmogônica e a cifra escatológica andavam a par. Entretanto, a cita de Empédocles, por Porfírio, no frg. 200 — «(no poema de Empédocles, as potências divinas que conduzem as almas, dizem assim:) aqui chegamos, em baixo, neste antro» —, traz-nos a primeira informação de que, para a alma, cuja athanasía («imortalidade») equivale a uma homoíõsis theôi («transformação à semelhança da divindade»), o mundo é uma caverna. Na codificação do mistério do horizonte, a «caverna» é uma nova cifra.

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