Ananda Coomaraswamy — referências a Mestre Eckhart
O QUE É CIVILIZAÇÃO?
“Eu nada faço e o mesmo deveria ocorrer com o homem subjugado, o que conhece a Realidade Final” (BG. V.8). “Nada faço de mim mesmo” (João 8,28; cf. 5,19). Imaginar que “eu faço” (karto ham iti) e “eu” penso é presunção, é a oiesis de Fílon (Leg. Alleg. 1.47, 2.68, 3.33) e o abhimana indiano. A proposição Cogito ergo sum é um non sequitur e uma tolice; a conclusão lógica é Cogito ergo EST, referindo-se a Ele “que É” (Damasceno em De fid. orthod., I; KU. VI. 12; Mil. p. 73) e que é o único que pode dizer “Eu” (Meister Eckhart, Pfeiffer, p. 261).
As religiões podem e devem ser muitas; todas são individualmente uma disposição ou arranjo de Deus e podem e devem ser estilisticamente diferenciadas, visto que a coisa conhecida só pode estar em quem a conhece segundo o modo de quem a conhece; por isso, como dizemos na índia, “Ele assume as formas que são imaginadas pelos que O veneram”. Ou, como diz Eckhart, “eu sou a causa de Deus ser Deus”. Por esse motivo as crenças religiosas, na mesma medida em que uniram os homens, também dividiram os homens uns contra os outros, como cristãos ou pagãos, ortodoxos ou hereges, de modo que se quisermos saber qual pode ser o problema prático mais urgente a ser resolvido pelos filósofos, só podemos responder: é ser reconhecido num controle e numa revisão dos princípios de religião comparativa, cujo objetivo verdadeiro da ciência, julgada pela melhor sabedoria (e julgar é função própria da sabedoria aplicada), deveria ser demonstrar a base metafísica comum a todas as religiões e mostrar que as diversas sociedades estão basicamente relacionadas entre si como se fossem dialetos de um idioma espiritual e intelectual comum; pois quem reconhecer isso não terá mais vontade de afirmar: “A minha religião é a melhor”, e em vez disso dirá: “A minha religião é a melhor para mim”.
Poucas pessoas negarão que hoje em dia a civilização ocidental está se defrontando com a possibilidade iminente de uma falha funcional completa, e ao mesmo tempo essa civilização há muito vem agindo e continua a agir como um agente de desordem e opressão muito poderoso pelo resto do mundo. Ousamos dizer que em última análise essas duas condições podem ser atribuídas à impotência e à arrogância, que encontraram uma expressão perfeita neste ditado: “O Oriente é o Oriente e o Ocidente é o Ocidente e jamais os dois se encontrarão”, proposição que só a ignorância mais profunda e o desânimo mais arraigado poderiam ter produzido. Por outro lado, reconhecemos que o único campo possível em que uma enterite entre o Oriente e o Ocidente pode ser conseguida é o da sabedoria puramente intelectual, que é única e a mesma em todos os tempos e para todos os homens e não depende de nenhuma idiossincrasia ambiental. Pretendíamos discutir mais extensamente as diferenças entre a religião e a metafísica, mas preferimos concluir esta seção com uma asserção da identidade final de ambas. Consideradas como Meios ou práxis, ambas são meios de conseguir a retificação, regeneração e reintegração da consciência do indivíduo, que é aberrante e fragmentada; também são meios de conceber a finalidade suprema do homem (purushartha) como se consistisse no fato de o indivíduo perceber todas as possibilidades que estão inerentes na sua própria existência; ou podem ir mais adiante e ver uma meta final na percepção de todas as possibilidades de existir em qualquer modo e também das possibilidades de não existir. Para os neoplatônicos e para Santo Agostinho, assim como para Eriugena, Eckhart e Dante e para seres como Rumi, Ibn Arabi, Sankaracarya e muitos outros asiáticos, as sensações religiosas e intelectuais estão entrelaçadas de forma muito íntima para que possam ser separadas completamente; por exemplo, quem suspeitaria que as palavras “como pode Aquele que os Que Compreendem denominam Olho de todas as coisas, Intelecto dos intelectos, Luz das luzes e Onipresença numinosa, como pode Ele ser outra coisa senão a finalidade última do homem” e “Fostes tocado e possuído! há muito tempo estais separado de mim, mas agora Vos encontrei e jamais Vos deixarei ir!” não fossem tomadas de uma fonte deística, e sim de hinos puramente vedânticos dirigidos à Essência (atman) e ao Brâmane “impessoal”!
Por exemplo, “as coisas que pertencem ao estado de glória não estão sob o sol” (Santo Tomás de Aquino em Sum. Theol. III, Supl. q.I, a.I), isto é, não o são em nenhum modo de tempo ou de espaço; podemos dizer antes que “é pelo meio do Sol que se foge completamente” (atimucyate, JUB. 1.3), onde o sol é “a porta dos mundos” (loka-dvara), (CU., VIII.6.6); ou, segundo Eckhart, a “porta pela qual todas as coisas voltam à sua felicidade suprema, perfeitamente livres (purnananda). . . livres como a Entidade Suprema na sua não existência” (asat), a “Porta” do papa João X, a “porta do Céu que Agnis abre” ou svargasya lokasya dvaram avrnot (AB., III.42). É verdade que também aqui vamos encontrar entre a formulação religiosa e a formulação metafísica uma certa distinção que não é de modo nenhum desprezível. Como já vimos, a concepção religiosa da felicidade suprema culmina com a assimilação da alma na Divindade em atos, sendo o ato da própria alma um ato mais de adoração do que de união. Do mesmo modo, e sem incoerência, tendo em vista que supostamente a alma do indivíduo permanece numericamente diferente tanto de Deus como de outras substâncias, a religião oferece à consciência mortal a promessa consoladora de encontrar lá no Céu não somente Deus como todos que ela amou na terra, todos que consegue reconhecer e de quem consegue se lembrar.
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De fato, o conceito metafísico de Perfeição visualiza um estado de existência que não é desumano, pois sabemos que tal estado é sempre acessível em toda parte para qualquer pessoa que se forçar a atingir o ponto central interno da própria consciência e existir em qualquer região ou plano de existência; nem é “sem coração”, a não ser que com coração queiramos indicar a sede da alma e da sentimentalidade; mas garantidamente não é humano. Por exemplo, em Chandogya Upanixade V.10.2 é exatamente como amanava purusha (pessoa não-humana) que o Filho e avatara eviterno que é Agni supostamente conduz para a frente Aquele Que Compreende e através do Sol Supernal encontrou o próprio caminho para o lado mais afastado dos mundos, caminho que é o “percurso dos Anjos” (devayana), em contraste com o dos Patriarcas (pitryana), que não vai além do Sol, mas conduz à recorporificação num modo de ser humano. E prevê-se que, mais cedo ou mais tarde, esse devayana possa levar ao que no misticismo doutrinário se chama “morte final da alma” ou “afogamento” da alma, que é o al-fana ‘an al-fana dos sufistas; isso implica uma passagem (que vai até além da percepção consciente de uma divindade como ato) para um Supremo (para, paratpara em sânscrito) que fica além de todos os traços ou mesmo de uma multiplicidade exemplar, de modo nenhum inteligível. E lá, tão longe isso está de qualquer “reminiscência” possível daquelas que foram conhecidas ou amadas em outro ser, nas palavras de Eckhart, “ninguém me perguntará de onde vim nem para onde fui”; ou, nas palavras de Rumi, “ninguém tem conhecimento de cada um que entra, se é Fulano ou Beltrano”.
Obviamente, isso ocorreu basicamente na Europa a partir do século XIII. No hinduísmo um homem é considerado um verdadeiro mestre que dá a qualquer indivíduo um acesso melhor às escrituras desse próprio indivíduo; pois “o caminho que os homens tomam de todos os lados é Meu” (Bhagavad Gita IV. 11). Clemente de Alexandria concede que “sempre houve uma manifestação natural do único Deus Todo-Poderoso entre todos os homens que pensam direito” (Mise. V); quase nas mesmas palavras do Bhagavad Gita citadas acima, Eckhart diz: “Qualquer que seja o caminho em que melhor encontrares Deus, segue esse caminho”; Dante não exclui do céu todos os filósofos pagãos; na tradição do Graal, Malory diz: “Merlyn made the round table in tokenyng of the roundenes of the world for by the round table is the world sygnifyed by ryghte. For ail the world crysten and hethen repayren into the round table” (Mort d’Arthur, XIV.2); todos estes podem ser contrastados com a Canção de Roland em que, quando Saragoça foi tomada, “mil francos entram nas sinagogas e nas mesquitas, cujas paredes com martelos e machados destroem. . . os pagãos são levados em multidões para a pia batismal para receber o jugo de Cristo”.
A Escuridão e a Luz pertencem respectivamente ao asuratva e ao devatva d’Ele e permanecem n’Ele, que é asura e deva, Titã e anjo, sarpa e aditya; enquanto isso, do ponto de vista do Orientador do Caminho, os reflexos de todos eles no espaço e no tempo são o mal e o bem. No hinduísmo, “a Escuridão que existe n’Ele chama-se Rudra” (MU. VI.2) e está representada nos nomes e tons de Kali e Krsna; na yoga cristã, o Raio Negro ou Escuridão Divina, que é a “tranquilidade da cor negra” e “o escuro imóvel que não é conhecido por ninguém a não ser por Ele, em quem o escuro reina, de Eckhart (cf. “nuvens e escuridão profunda”, no Deuteronômio, 4,11), já é mencionado no Codex Brucianus e por Dionísio e passa a ser o tema da contemplado in caligine. Quanto à propriedade da expressão “yoga cristã”, temos de observar apenas que as consideratio, contemplatio e excessus ou raptus de São Bernardo correspondem exatamente a dhrana, dhyana e samadhi.