Ninguém contesta que filosofia implica mais o amor pela sabedoria do que o amor ao saber, nem que depois, por uma transição natural do amor para a sabedoria, surgiu a filosofia, que passou a significar a doutrina dos que apreciam a sabedoria e são denominados filósofos.
Ora, o saber ou conhecimento como tal não é um mero informe dado pelos sentidos (o reflexo de qualquer coisa no espelho retinal pode ser perfeito num animal ou num idiota, mas não é saber nem conhecimento), nem o simples ato de reconhecer (sendo os nomes um simples meio de se aludir a informes já mencionados): é uma abstração desses informes, em que a abstração dos nomes das coisas é usada como um substituto conveniente para as coisas em si. Por isso o saber ou conhecimento não é de representações individuais, é de tipos de representações; em outras palavras, é a representação das coisas no seu aspecto inteligível, ou seja, da existência que as coisas têm na mente de quem fica sabendo ou conhecendo, tais como princípios, gêneros ou espécies. Na medida em que o conhecimento é dirigido para a consecução dos objetivos, é denominado prático; enquanto permanece na pessoa que vai ficar sabendo, chama-se teórico ou especulativo. Enfim, não podemos dizer que uma pessoa sabe algo sensatamente; só podemos dizer que sabe bem. A sabedoria não leva em conta o saber e governa o movimento da vontade no que se refere a coisas conhecidas; ou podemos dizer que sabedoria é o critério do valor, segundo o qual tomamos a decisão de agir ou não num caso particular ou em geral. Isso não se aplica meramente a atos externos, aplica-se também a atos contemplativos ou teóricos.
Dessa maneira, filosofia é uma sabedoria do conhecimento, uma correction du savoir-penser. Em geral é costume considerar que a filosofia II[[A nossa maneira de numerar as filosofias na ordem inversa como II e I deve-se ao fato de a Primeira Filosofia de Aristóteles, ou seja, a metafísica, ser de fato anterior na ordem lógica de pensamento, que sai de dentro para fora.]] abrange o que mencionamos antes como saber especulativo, como por exemplo a lógica, a ética, a psicologia, a estética, a teologia e a ontologia; e nesse sentido os problemas de filosofia são obviamente os mesmos da racionalização, sendo portanto a finalidade da filosofia correlacionar os dados da experiência empírica de modo a “extrair algum sentido” deles, ou seja, de modo a compreendê-los, o que na maior parte das vezes é conseguido por uma redução do particular para o geral (dedução). E, definida dessa forma, a função da filosofia contrasta com a da ciência prática, cuja função apropriada é prever o particular a partir do geral (indução). Contudo, por trás disso é costume considerar que a filosofia I significa uma sabedoria que não se refere tanto a tipos particulares de pensamento, mas é uma sabedoria que se refere a pensar e analisar o que significa pensar, assim como uma indagação do que pode ser a natureza da referência final do pensamento. Neste sentido, os problemas da filosofia têm a ver com a natureza final da realidade, atualidade ou situação por que passamos, indicando por realidade tudo que é ação ou ato, e não simplesmente potencial. Por exemplo, podemos perguntar o que são a verdade, a bondade e a beleza (consideradas conceitos abstraídos das situações por que passamos e das coisas que sentimos) ou podemos perguntar se estes ou quaisquer outros conceitos abstraídos do que passamos ou sentimos têm de fato uma existência própria; isso constitui o assunto em debate entre nominalistas, de um lado, e realistas ou idealistas, de outro.[[Este é o tema debatido entre os filósofos budistas e bramanistas. Para os nominalistas, as formas, ideias, imagens e motivos finais são meramente nomes dos painéis de pensamentos e só são válidos como meios de comunicação; para os realistas (idealistas) as formas finais são realidades que dependem da existência e são inerentes a ela, isto é, reais em sua existência e nominais apenas no sentido de serem “distinguíveis apenas logicamente”.]] Podemos observar que, como em todas estas aplicações filosofia significa sabedoria, se (ou quando) falamos em filosofias no plural não estamos querendo indicar tipos diferentes de sabedoria, e sim indicar sabedoria em relação a diversos tipos de coisas. A sabedoria pode ser maior ou menor, mas continua havendo uma e a mesma ordem de sabedoria.
Quanto a esta ordem, se o conhecimento ou saber é por abstração e a sabedoria é sobre conhecimento ou saber, segue-se que esta sabedoria, que pertence a coisas conhecidas ou passíveis de ser conhecidas e atingidas por um processo de raciocínio ou dialética a partir de dados experimentais e que não é nem reivindica ser uma doutrina gnóstica ou revelada, de modo algum transcende o pensamento ou, digamos, a ciência mais verdadeira. Na realidade, é uma sabedoria excelente e, como pressupõe boa vontade, tem um grande valor para as pessoas. Mas temos de lembrar que, devido à sua base experimental, ou seja, estatística, e mesmo supondo uma operação infalível da razão como pode ser atribuído à matemática, essa sabedoria nunca consegue estabelecer certezas absolutas e consegue fazer previsões apenas com grande probabilidade de êxito; as “leis” da ciência, por mais úteis que sejam, nada mais fazem do que resumir situações passadas. Além do mais, a filosofia no segundo dos sentidos dados acima, ou seja, no sentido de sabedoria humana de coisas conhecidas ou passíveis de ser conhecidas, tem de ser sistemática, tendo em vista que por hipótese exige-se dela uma perfeição que consiste em explicar tudo, num ajuste perfeito de todas as partes do quebra-cabeça, de modo a formar um todo lógico; além disso, o sistema tem de ser fechado, ou seja, limitado ao campo de espaço e tempo, de causa e efeito, porque por hipótese se refere a coisas determinadas que podem ser conhecidas, que são apresentadas à faculdade cognitiva disfarçadas de efeitos para os quais procuramos causas. Por exemplo, tendo o espaço uma extensão indefinida, e não infinita, a sabedoria de coisas determinadas não pode ter nenhuma aplicação no que se refere a saber se a “realidade” pode ou não pertencer a modos não-espaciais, ou seja, imateriais, ou, analogamente, a um modo não-temporal, pois, se existe um “agora”, não temos nenhuma experiência sensível de alguma coisa como essa nem conseguimos concebê-la em termos de lógica. Se tentássemos ultrapassar os limites naturais da operação dessa coisa usando a sabedoria humana, no máximo poderíamos dizer que o referencial grandeza indefinida (infinito matemático) apresenta uma certa analogia com o referencial infinito essencial que é postulado na religião e na metafísica; mas basicamente não seria possível afirmar nem negar nada em relação à existência desse infinito, ou seja, não poderíamos dizer se esse infinito “é” ou “não é”.
A sabedoria humana depende inteiramente de si própria (racionalismo); se essa sabedoria propõe uma religião, é o que se denomina religião natural e tem como divindade o referencial que diz que a operação é vista em toda parte, mas mesmo assim é absolutamente refrataria a uma análise, a saber vida ou energia. E essa religião natural é um panteísmo ou monismo que postula uma alma (anima ou animação) do universo, conhecida em toda parte por seus efeitos, que podem ser percebidos no movimento das coisas; entre essas coisas qualquer distinção entre animado e inanimado estará fora de lugar, visto que só podemos definir racionalmente animação como “o que é expresso em movimento ou causa um movimento”. Ou, se não é um panteísmo, é um politeísmo ou pluralismo em que se postula que uma série de animações (forças) está subjacente e “explica” uma variedade correspondente de movimentos. Mas nada pode ser afirmado nem negado no que se refere a propor que tais animações sejam meramente aspectos determinados e contingentes de uma realidade indeterminada. Expressos de modo mais técnico, basicamente o panteísmo e o politeísmo são concepções leigas e, reconhecidos numa dada doutrina religiosa ou metafísica, constituem nelas interpolações da razão e não são essenciais para a doutrina religiosa ou metafísica em si.
Por outro lado, a sabedoria humana não confia exclusivamente em si própria e pode ser aplicada a uma exposição parcial (isto é, analógica) da sabedoria religiosa ou metafísica, consideradas estas anteriores a ela própria. É que, embora as duas sabedorias (filosofia II e filosofia I) sejam de espécies diferentes, pode haver uma coincidência de forma e, neste sentido, pode haver o que se denomina reconciliação da ciência com a religião. Por isso uma depende da outra, se bem que de modos diferentes; para ser corrigidas formalmente as ciências dependem da verdade revelada, e a verdade revelada depende das ciências para ser demonstrada formalmente por analogia, “não como se tivesse necessidade dela, e sim apenas para poder transmiti-las com maior facilidade”.
Nos dois casos, a meta final da sabedoria é um bem ou felicidade que aparece para o próprio filósofo ou para os seus vizinhos ou para a humanidade em geral, mas necessariamente sempre em termos de bem-estar. Esse tipo de bem pode ou não ser um bem moral.9 Por exemplo, supondo uma boa vontade, ou seja, um senso natural de justiça, a religião natural é expressa eticamente na sanção de leis de conduta como essa, pois a maioria delas leva ao bem comum; e quem sacrifica até a vida em prol disso pode ser admirado. Na estética (a arte sendo circa factibilia), se a religião natural receber boa vontade vai justificar a produção desses bens porque estão aptos a contribuir para o bem-estar humano, seja na forma de necessidades físicas, seja como fonte de prazer dos sentidos. Tudo isso pertence ao humanismo e está muito longe de ser desprezível, mas no caso de não haver boa vontade, a religião natural também pode ser aplicada para justificar a proposição que diz que “a força tem razão” ou “quem ficar para trás que se arranje” e para produzir artigos, tanto por métodos prejudiciais ao bem comum como por métodos que, em si, se adaptem diretamente a fins prejudiciais, como é o caso do trabalho de crianças e da fabricação de gases venenosos, por exemplo. A verdade revelada, pelo contrário, exige boa vontade a priori e acrescenta que é preciso a ajuda da filosofia racional, como ciência ou como arte, para que a boa vontade possa se tornar eficiente.
Existe outro tipo de filosofia I, isto é, a que mencionamos como verdade revelada, e embora abranja todo o campo da filosofia II, faz isso de outro modo, enquanto por trás trata confidencialmente de realidades que de fato podem ser imanentes em tecido de espaço e tempo e não são totalmente incapazes de ser demonstradas racionalmente, mas apesar disso são consideradas transcendentes com relação a este tecido, ou seja, não estão de modo nenhum contidas nele nem são dadas por ele, nem são totalmente receptivas a demonstrações. A Primeira Filosofia, por exemplo, afirma a atualidade de um “agora” que não depende do fluxo de tempo, mas o que sentimos ou por que passamos é apenas um passado e um futuro. Aqui também o processo da Primeira Filosofia não é mais dedutivo em primeiro lugar e indutivo em segundo; é indutivo do começo ao fim e tem uma lógica que vai invariavelmente do transcendental para o universal e deste para o particular, como anteriormente. Na realidade, esta Primeira Filosofia utiliza sem discutir o princípio que diz que “o que está em cima é como o que está embaixo” e vice-versa e é capaz de encontrar em todo e qualquer fato microcósmico o sinal ou símbolo de uma realidade macrocósmica e dessa maneira recorre a provas por analogia; mas este processo aparentemente dedutivo é empregado aqui para servir de demonstração, e não para servir de prova, pois aqui as provas lógicas estão fora da questão e são substituídas por fé (o credo ut intelligam de Santo Agostinho) ou pela prova dada por algo que sentimos imediatamente (alaukikapratyaksa).
O nosso primeiro problema relacionado com a sabedoria mais elevada e considerada uma doutrina conhecida por revelação (por transmissão auditiva ou por transmissão simbólica), coerente mas não sistemática, e inteligível em si, embora trate em parte de coisas ininteligíveis, é distinguir a filosofia II da filosofia I sem separar a religião da metafísica. É uma distinção sem diferença, como a que se faz entre atributo e essência, sem deixar de ser uma distinção de importância fundamental se quisermos apanhar o verdadeiro significado de qualquer fato espiritual dado.