Coomaraswamy (AKCCivi:107-113) – O Caminho do Peregrino

Os cinco versículos traduzidos e comentados abaixo estão no Aitareya Brahmana VII.15 e também no Sankhayana Srauta Sutra. Rohita acaba de voltar para a sua cidade porque ficou sabendo que o pai (Aiksvaku) foi acometido por hidropisia por Varuna, porque demorou muito em satisfazer a promessa de lhe oferecer o filho (Rohita), em sacrifício a ele próprio (Varuna), que não é difícil relacionar com Mrtyu ou Morte. Os versículos são dirigidos a Rohita na sua capacidade de pai de família e muito caseiro; ele é exortado a viajar pela floresta em busca de melhor sorte; em outras palavras, é solicitado a abandonar a vida doméstica e se transformar num peregrino sem lar. A “sorte maior” (aqui nana tem quase a força etimológica de “não-insignificante” ou “nada pequeno”, ou melhor, “grande”) destinada a Rohita é evitar a morte como sacrifício a Varuna, a quem havia sido dedicado ao nascer. Por trás dos aspectos aparentemente episódicos da história de Rohita e Sunahsepa, que é o substituto encontrado no sexto ano das suas peregrinações, está o tema universal de sair viajando (agarad abhiniskrantah . . . parivrajet, Manu VI, 41) em busca de um meio de fugir da morte a que todos nós estamos destinados ao nascer, que por natureza é sempre um sacrifício a Varuna, que aqui e em qualquer lugar não é difícil identificar com Mrtyu, ou Morte, senhor de tudo que existe sob o sol. Como a própria história deixa bem claro no que se refere à libertação do substituto (Sunahsepa), a contaminação da morte só pode ser evitada recorrendo a Agni (tantas vezes descrito nos Vedas como “o Explorador de Caminhos” par excellence) e pela celebração dos ofícios que ele impõe, dos quais o mais importante neste caso é uma homenagem a Indra, que é o “companheiro do viajante” do nosso texto.

O refrão seguinte diz: “Continue, continue” (cara-eva), a ligação entre o apelo e Indra e a fraseologia “solar” empregada em todo o texto nos dão uma chave das implicações técnicas dessa fraseologia. Precisamos ter em mente que é exatamente porque eles são nômades e viajantes, e não meros lavradores domésticos (krstayah) que normalmente são denominados carsanayah nos textos védicos. Como observa Macdonell na Gramática védica, 122, a palavra Carsani é derivada de car (ir ou movimentar-se) (veja Grassmann, Worterbuch zum Rig-veda, “ursprunglich ‘wandernd’ (von car)”. A derivação tirada de krs por Monier-Williams não é impossível, mas semanticamente é implausível, como se pode ver claramente com relação ao Rg Veda I. 46: pita kutasya carsanih, “o pai de família ativo ou que está em movimento”, referindo-se a Agni como pai de família aqui embaixo ou, mais provavelmente neste contexto, ao Sol como pai de família lá em cima. Grassmann toma a nossa palavra nesse contexto como “empsige” (ativo) e Griffith diz que é “vigilante”. Nirukta V. 24, seguido por Sayana, parafraseia kutasya carsanih com krtasya karmanas cayitadityah, traduzido por Sarup como “o que observa os feitos, a ação, ou seja, o sol”.

Na realidade, o Sol é o “supervisor do karma” ou, em outras palavras, é a Providência (prajnana); mas se movimento e vista coincidem in divinis, a palavra carsani continua a indicar um movimento; o fato de acharmos que o movimento também implica uma visão não justifica fazer uma tradução livre da palavra que significa movimento usando uma outra palavra que significa vista.

É claro que é num pé (ou pés) que o Sol (ou Morte) está presente no coração e quando se retira esse pé (ou esses pés) a criatura é “separada”, ou seja, morre (Satapatha Brahmana X.5.2.13). Em outras palavras, é por um fio (sutratman, Atharva Veda Samhita X.8.38; Satapatha Brahmana VIII.7.3.10 etc.) que o Sol, que é a essência espiritual (atman) de todas as coisas (Rg Veda 1.115.1; Jaiminiya Upanixade Brahmana III. 2-3 etc.) está ligado (samyukta, Bhagavad Gita XIII.26 e Svetasvatara Upanixade Up. V. 10) a seres nascidos, como o Conhecedor do Campo está ligado ao Campo. Desse modo o Espírito, que não nasce e não muda (Bhagavad Gita 11.26 etc), é considerado Habitante do corpo (dehin, saririn) e algo que sempre nasce e sempre morre ([…], Bhagavad Gita II, 26); assim sendo, o espírito “vem de dentro e nasce de forma múltipla” ([…], Mund Up. II, 2.6). É desta peregrinação incessante e incansável do Espírito (a procissão divina) que Rohita tem lembrança no quarto versículo do nosso texto; quando o fim da estrada foi atingido (adhvanah param, Katha Upanixade III. 9) e a Sorte foi encontrada, quando o olho de Rohita e o olho do Sol (que em si é “o Rohita” do Atharva Veda Samhita XIII, 1) são um e um só Olho ([…], Rg Veda X.16.3: dass selbe ouge, da inne mie got siht: meine auge und gottes auge dass ist ein auge und ein gesicht, Eckhart, Pfeiffer, XCVI), quando o Peregrino (carsani) se transforma num Ser que Compreende e está desperto (vidvan: yo asakad boddhum, Katha Upanixade VI.4), “nesse ponto ele está pronto para ser corporificado dentro dos mundos emanados” ([…], Katha Upanixade VI.4), realmente um Peregrino (carsani, como está no Rg Veda I. 46.4), fundido, mas não confundido (bhedabheda) com o ser do Falcão Peregrino (syena) e com a Águia (suparna) cujos Olhos estende para ver todas as coisas simultaneamente.

O que Indra impõe a Rohita, que tanto gosta de ficar em casa, é uma verdadeira “viagem do peregrino”. E tendo em vista que as peregrinações terrenas são visitações miméticas de “centros” análogos (“todos os caminhos levam a Roma” ou, analogamente, a Jerusalém ou a Benares ou a qualquer outro local que represente para nós o “umbigo da terra”), podemos muito bem imaginar que os nossos versículos se transformaram numa canção da estrada e foram cantados como tal por peregrinos indianos, do mesmo modo que na Europa os homens cantavam Congaudeant Catholici quando se dirigiam para Compostela. Ao menos em intenção, os nossos versículos têm algo em comum com o moderno “Avante, soldados de Cristo”. Não pode haver nenhuma dúvida quanto ao fato de terem os peregrinos indianos várias canções de marcha; de fato, há pouco tempo chegamos a ouvir bandos de peregrinos cantando a caminho do alto do Pico de Adão, no Ceilão, e rumo ao Badrinath, no Himalaia. Parece que ouvimos os nossos versos cantados pelo chefe de um grupo e depois a resposta dada pelo coro: Caraiva, caraiva, ou seja, “continue, continue”. De qualquer modo, é inquestionável que os nossos versos são um apelo emocionante a todo homem para apanhar a própria cama e sair andando e continuar até atingir “o fim da estrada” (adhvanah param, Katha Upanixade II 1.9). O nosso pensamento um tanto humorístico que diz: “É uma grande vida, se não fraquejarmos” aplica-se aqui à busca da meta final do homem; essa meta quer dizer tudo que está implicado numa fuga das garras da Morte, cuja força contaminante se estende por todas as coisas que há sob o Sol, mas não vai além das portas de ouro, que são os portões solares do mundo ([…], Maitri Upanixade VI.30 e Chandogya Upanixade VIII.6.5 etc).

No texto em prosa que separa os versos de Aitareya Brahmana VII. 15 entre si, está absolutamente estabelecido que na realidade Rohita aceitou o conselho de Indra e perambulou pela floresta num período de seis anos; chegou a se transformar no que em outros lugares se denomina parivraijaka ou “pobre que perambula” e, como a palavra sramena sugere, transformou-se num sramana ou “mourejador”; o contexto todo implica claramente a vida, não de um vanaprastha (anacoreta que mora na floresta) dentro de uma cabana, e sim a de um sannyasin peregrino ou “pobre peregrino” que supostamente deve ter recebido as iniciações finais e passado pelos ritos funerais de modo a ter se transformado no que Rumi denomina “morto ambulante”, alguém que “morreu antes da morte” ou, como diz o Katha Upanixade VI.4, “alguém que conseguiu acordar antes da dissolução do corpo” ([…]); não é necessário acrescentar que na Índia aceita-se como certo que haver morrido para todo proprium, isto é, para todo o sentido de “Eu e meu” é praticamente sinônimo de uma libertação da mortalidade e de todos os outros “males”. Podemos acrescentar que o estado dos peregrinos sem lar é análogo ao do “Pássaro Vermelho que não tinha ninho” (Rg Veda X.55.6) e ao do Filho do Homem que não tinha “onde repousar a cabeça”, pois como explica o Pancavimsa Brahmana XI, 15.1, ninho é gado, ninho significa crianças e ninho é o lar. A assimilação é mais significativa tendo em vista que Rohita é um dos nomes do Sol e o nosso Rohita tem uma linhagem solar; e. é perfeitamente válido achar que o Indra solar deve ter sido o seu guru. Levando essas três coisas em consideração, quando Indra é denominado camarada ou companheiro do viajante, é impossível deixar de recordar a instituição dos Companheiros que floresceu na Europa na Idade Média e até bem depois, instituição que pode reivindicar uma antiguidade imemorial. Não podemos continuar a dar mais indicações aqui, mas recomendamos ao leitor o número especial da revista Le Voile d’Isis, de abril de 1934, que trata dos Companheiros. Com relação ao cajado ou bastão dos peregrinos, apenas vamos observar que “on a donc là un équivalent exact du caducèe hermètique et du brahma-danda ou bâton brahmanique” (ibid, p. 151), acrescentando que o cajado dos Três Viajantes (ou de Visnu) foi reconhecido como um aspecto do Eixo do Universo (do sânscrito skambha, aksa e do grego Stauros). Por isso existe uma metafísica de viagem, do mesmo modo que vamos ver a seguir que existe uma metafísica de jogos. Depois disto não é preciso observar que com o declínio da peregrinação a arte de viajar também se perdeu.

Damos abaixo um trecho e a tradução acompanhada de comentários [[Nota: só postada a tradução.]]. O trecho é o da edição da Bibliotheca Indica do Aitareya Brahmana, vol. IV, p. 72, 1906, menos no caso das duas palavras indicadas por um asterisco que foram adotadas por nós na leitura do Sankhayana Srauta Sutra; e no caso da primeira palavra do trecho, em vez de usar nana srantaya vamos usar nanasrantaya, isto é, nana e asrantaya ligadas por sandhi. Temos então o seguinte:

“Muita sorte tem quem não se cansa,
É o que ouvimos dizer, Rohita!
Mas é uma raça má a que fica sentada;
Indra acompanha o viajante
Continue, continue!

As pernas do viajante lançam-se para a frente
E a pessoa dele se desenvolve e produz frutos:
Todos os seus males estão adormecidos,
Mortos pela faina do seu progresso.
Continue, continue!

O bem-estar de quem fica soerguido também fica soerguido
Mas o de quem fica em pé também fica em pé;
O bem-estar de quem fica deitado permanece deitado
Mas o de quem vai sempre para a frente também vai para a frente,
Continue, continue!

O quinhão de quem fica deitado é Kali,
O de quem está disposto a se soltar é Dvapara,
O de quem fica em pé é Treta:
O de quem procura se movimentar é Krta
Continue, continue!

É o viajante que acha o mel,
É o viajante (que encontra) o figo saboroso
Veja a sorte do Sol,
Que nunca se cansa de viajar!
Continue, continue!”

Nosso texto tem dois aspectos importantes que precisam ser discutidos com uma menção especial ao terceiro e ao quarto verso. Cada verso fala em quatro condições, embora não exatamente na mesma ordem. Os quatro estados são: estar sentado ou reclinado, soerguido ou resignado a ficar rejeitado, ficar em pé ou agir. No quarto versículo observe a sequência sayanah, samjihanah, uttistha e sampadyaie; cf. Rg Veda X. 53.8 em que o sempre procurado Agni apareceu e, tendo sido chamado para “guardar os caminhos forjados pela contemplação” e para “gerar” (ou “apresentar”, como diz muito bem Griffiths seguindo a janaya = utpadaya de Sayana) a Raça Celestial, dirige-se aos mumuksavah da seguinte maneira: “Aqui corre o Rio da Pedra: aproveitem, fiquem em pé (ut tisthata) e atravessem-no (pratarata), meus camaradas (sakhayah); deixemos para trás os corcéis (vajari) ineficazes (asevah) e atravessemos para o lado em que há corcéis melhores [propícios] (sivari). Aqui também há quatro condições ou estados: uma reclinação original (fenda dos ofídios) implicada pela injunção de ficar em pé, uma presteza em abandonar os que são deixados para trás, ficar em pé e dirigir-se (nos caminhos “forjados pela contemplação”) a uma praia que fica mais adiante e já foi atingida por quem é designado como “favorável”. Do mesmo modo, em Rg Veda X. 124.3-4 Agni (que sabemos que possuía uma natureza titânica, autóctone e ofídica ante principium) abandona (jahami) Agni, Soma e Varuna que haviam caído, diz “adeus” ao Pai Titã, “escolhe” Indra e “passa” (emi) da parte sacrificatória para a não-sacrificatória. Analogamente sthasnu carisnu, com relação à procissão divina, em que o Espírito, havendo vivido no escuro e na inércia por muito tempo ([…]), passaria agora a se erguer e se movimentar” (Manu I. 56). De fato, em toda a tradição védica vemos uma sequência de ideias lógica e repetitiva representada pelo uso das raízes si (jazer, estar deitado), ha (abandonar) ou uma forma desiderativa equivalente de muc (soltar, libertar), stha (ficar em pé) ou o equivalente jan (nascer ou passar a existir) e car (continuar) ou os equivalentes e, gam, prapat, ruh ou tar, sendo que no trecho que consideramos samjihanah equivale a mumuksuh. Por outro lado, quando chegamos ao fim da estrada desfaz-se a distinção entre “estar deitado” e “estar em pé” e “ir”, assim como entre “renunciar” e “possuir”; esse fim não é um movimento interrompido, é uma consumação em que já não existe mais nenhuma necessidade de locomoção. “Sentado ele viaja para longe; reclinado vai a qualquer lugar ([…], Katha Upanixade II. 21).

SEGUE: breve8582

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