O que significa: “Eu posso”?
O conceito de potência tem, na filosofia ocidental, uma longa história e, pelo menos a partir de Aristóteles, ocupa nela um lugar central. Aristóteles opõe – e ao mesmo tempo liga – a potência (dynamis) ao ato (energeia), e essa oposição, que atravessa tanto sua metafísica como sua física, foi transmitida por ele como herança, primeiro à filosofia e depois à ciência medieval e moderna. Se decidi vos falar hoje e aqui do conceito de potência, é porque meu objetivo não é simplesmente historiográfico. Não se trata, para mim, de voltar a dar atualidade a categorias filosóficas caídas no esquecimento há muito tempo; estou convencido, pelo contrário, de que esse conceito nunca deixou de operar na vida e na história, no pensamento e na prática dessa parte da humanidade que acrescentou e desenvolveu a tal ponto sua potência que impõe a todo o planeta seu poder. Em vez disso, seguindo o conselho de Wittgenstein, segundo o qual os problemas filosóficos se tornam mais claros se os formulamos como perguntas sobre o significado das palavras, gostaria de enunciar o tema de meu estudo como uma tentativa de compreender o significado do sintagma “eu posso”. O que queremos dizer quando dizemos: “Eu posso, eu não posso”?
[…]Há, porém, uma aporia: por que não há sensação dos próprios sentidos [ton aistheseon… aisthesis]? Por que, na ausência de objetos externos, eles não proporcionam sensação, mesmo tendo em si o fogo, a água e os outros elementos dos quais há sensação? Isso acontece porque a faculdade sensitiva [to aisthetikon] não é em ato, mas só em potência [dynamei monon]. Por isso não tem sensações, tal como o combustível não arde por si, sem um princípio de combustão; de outro modo, consumir-se-ia a si próprio e não teria necessidade de fogo existente em ato [enthelcheiai… ontos],
Estamos tão habituados a representar a sensibilidade como uma faculdade da alma que essa passagem do De anima (417 a 2-9) não parece nos colocar problemas. O vocabulário da potência penetrou tão profundamente em nós que não percebemos que, nessas linhas, surge pela primeira vez um problema fundamental, que, como tal, vem à luz na história do pensamento ocidental só em alguns momentos decisivos (no pensamento moderno, um desses momentos é a obra de Kant). Esse problema – que é o problema original da potência – se enuncia na pergunta: “O que significa ter uma faculdade? De que modo algo como uma ‘faculdade’ existe?”.
A Grécia arcaica não concebia a sensibilidade, a inteligência (ou, ainda menos, a vontade) como “faculdades” de um sujeito. A própria palavra aisthesis é, em sua forma, um nome de ação em -sis, que exprimia uma atividade real. Como pode, então, uma sensação existir na ausência de sensação, existir uma aisthesis no estado de anestesia? Essas perguntas nos introduzem imediatamente no problema daquilo que Aristóteles chama de dynamis, potência (um termo em relação ao qual convém recordar que significa tanto potência como possibilidade e que os dois significados nunca foram dissociados, como acontece, no entanto, nas traduções modernas). Quando dizemos que um homem tem a “faculdade” de ver, a “faculdade” de falar (ou, como escreve Hegel, e Heidegger repetirá a seu modo, a “faculdade” da morte), quando afirmamos simplesmente “isso não está em minhas faculdades”, movemo-nos já na esfera da potência. O termo “faculdade” exprime, assim, o modo como uma certa atividade é separada de si mesma e atribuída a um sujeito, o modo como um vivente “tem” sua práxis vital. Algo como uma “faculdade” de sentir se distingue do sentir em ato, de modo que este possa ser referido propriamente a um sujeito. Nesse sentido, a doutrina aristotélica da potência contém uma arqueologia da subjetividade, é o modo como o problema do sujeito se anuncia a um pensamento que não tem ainda essa noção. Hexis (de echo, “ter”), hábito, faculdade, é o nome que Aristóteles dá a essa in-existência da sensação (e das outras “faculdades”) em um vivente. O que é assim “tido” não é uma simples ausência, mas algo que assume a forma de uma privação (no vocabulário de Aristóteles, steresis, “privação”, está em relação estratégica com hexis), isto é, de algo que atesta a presença do que falta ao ato. Ter uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação. Por isso, a sensação não se sente a si mesma, como o combustível não queima por si. A potência é, portanto, a hexis de uma steresis: “As vezes, o potente é tal porque tem algo, outras vezes porque lhe falta. Se a privação é de algum modo uma hexis, o potente é tal ou porque tem uma certa hexis ou porque, dela, tem a steresis” (Metaph., 1019 b 5-8).
E evidente no trecho do De anima que se segue àquele de onde partimos que o que interessa a Aristóteles é essa segunda forma de potência (o ter uma privação). Aristóteles distingue aqui (417 a 21 sg.) uma potência genérica, que é aquela de que se trata quando dizemos que uma criança tem a potência da ciência, ou que é em potência arquiteto ou chefe de Estado, da potência que compete a quem tem já a hexis correspondente a certo saber ou a certa habilidade. É nesse segundo sentido que se diz que o arquiteto tem a potência de construir mesmo quando não está construindo, ou que o tocador de citara tem a potência de tocar mesmo quando não toca. A potência que está aqui em questão difere essencialmente da potência genérica que compete à criança. A criança, escreve Aristóteles, é potente no sentido de que deverá sofrer uma alteração através da aprendizagem; pelo contrário, aquele que já possui uma técnica não deve sofrer alteração alguma, mas é potente a partir de uma hexis, que pode não pôr em ato ou atuar, passando de um não ser em ato a um ser em ato (ek tou… me energein de, eis to energein — 417 a 32 – b 1). A potência é, pois, definida essencialmente pela possiblidade de seu não-exercício, tal como hexis significa: disponibilidade de uma privação. Assim, o arquiteto é potente na medida em que pode não construir, e o tocador de citara o é porque, ao contrário daquele que é dito potente só em sentido genérico e que simplesmente não pode tocar citara, pode não-tocar citara.
E é desse modo que Aristóteles responde, na Metafísica, à tese dos megáricos, que afirmavam, de resto não sem boas razões, que a potência existe só no ato (energe monon dynasthai, hotan de me energe ou dynasthai — 1046 b 29-30). Se isso fosse verdade, objeta Aristóteles, não poderiamos considerar arquiteto o arquiteto mesmo quando não constrói, nem chamar médico ao médico no momento em que não está exercendo sua arte. Em questão está, pois, o modo de ser da potência, que existe na forma da hexis, do domínio sobre uma privação. Existe uma forma, uma presença do que não é em ato, e essa presença privativa é a potência. Como afirma Aristóteles sem reservas em uma passagem extraordinária da Física: “A steresis, a privação, é como uma forma [eidos ti, uma espécie de rosto: eidos vem de eidenai, ‘ver’]” (193 b 19-20).