Brun: Parmênides — Fragmento III

Resume-se a poucas palavras to gar auto noein estin te kai einai, mas qualquer tradução é já uma interpretação. Uma tradução muito corrente é a que consiste em ler: «É a mesma coisa pensar e ser.» F.-M. Cleve1 vai mesmo ao ponto de ver nesta fórmula like an ancient cogito ergo sum. Mas Burnet protesta contra uma tradução que, em seu entender, é um arcaísmo filosófico2 e traduz: «Uma só e mesma coisa pode ser concebida e pode ser.» Jean Beaufret traduz por seu lado: «O mesmo, esse, é ao mesmo tempo pensar e ser.» Esta última tradução apoia-se numa interpretação de Heidegger em que vale a pena determo-nos.

Para Heidegger3, o cristianismo teria deformado o sentido deste pensamento de Parmênides. Seria contrassenso crer que o ser não é mais que o ato do pensamento. Conviria então perguntar o que significam to auto e te … kai, depois o que quer dizer noein e, por fim, que sentido convém atribuir a einai. Seguiremos a análise que Jean Wahl faz desta exegese de Parmênides por Heidegger4. O noein seria a physis, isto é, o reino que se abre e desenvolve na luz, o ser que é aparecer e manifestação. Quanto ao noein, que se traduz por conhecer, é preciso não ver nele qualquer pensamento lógico. Conviria traduzi-lo por entender, no seu significado de acolher, deixar vir a si (daí o derivado entender-se e o substantivo entendimento), e ainda por atender, no sentido de ouvir uma testemunha a quem se concede a palavra. Assim o noein seria o entendimento daquele que concorda com qualquer outro e o atendimento daquele que escuta e toma uma posição de vénia para receber o adversário e levá-lo a deter-se imediatamente. Por isso, para Heidegger, o noein seria o ato de trazer o que aparece ao ser e o de o deter.

Quanto ao to auto, designaria a unidade, não a da pura uniformidade e identidade como indiferença, mas como pertença recíproca do contrastante. Ou seja, segundo uma ideia cara a Heidegger, Parmênides convergiria aqui com Heráclito falando da unidade dos contrários. Portanto, o verso de Parmênides significaria que, entre o ser e o entendimento do ser, há uma espécie de contradição unitária, isto é, é preciso que ao mesmo tempo ambas as coisas saiam uma da outra e sejam unidas uma à outra.

«É preciso reconhecer que na aurora do pensamento, muito tempo antes que se viesse a formular um princípio de identidade, a própria identidade falara, numa sentença que afirmava: o pensamento e o ser têm lugar no mesmo e amparam-se mutuamente a partir deste mesmo.»5

Seria um erro acreditar que podemos ir do Dasein ao Sein. O homem não possui o entendimento do ser, apenas porque o ser a ele se abre; é, pois, o Sein que explica a luz que pode haver no Dasein. Heidegger apoia ainda esta interpretação no fragmento VIII, 34: tauton d’esti noein te kai ouneken esti noema, que traduz por: «O entendimento e a razão de ser do entendimento são a mesma coisa.» Por isso noein seria tomar uma saída privilegiada, que sieria a via do Ser. Mas Heidegger pretende ir mais longe e mostrar que o noein equivale finalmente à phisis, ou ao Logos heraclitiano. Para tal, apoia-se no fragmento VI, I.


  1. F.-M. CLEVE, The Giants of Pre-Sophistic Greek Philosophy, t. II, p. 528. 

  2. BURNET, L’aurore de la philosophie grecque, p. 200. 

  3. Cf. HEIDEGGER, Essais et conférences, p. 166, 279, sq.; Qu’appelle-t-on penser?, p. 222; Introduction a la métaphysique, p. 150; Le principe d’identité (trad. Questions, I, A. Préau, trad., Paris, 1968, p. 257). 

  4. J. WAHL, loc. cit., p. 159 sq. 

  5. Le principe d’identité, op. cit., p. 261. 

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