Roland Barthes – ESCREVER: VERBO INTRANSITIVO?
Durante séculos a cultura ocidental pensou a literatura não como o fazemos hoje, através do estudo de obras, autores e escolas, mas através de uma autêntica teoria da linguagem. Esta teoria, cujo nome, Retórica, lhe veio da antiguidade, reinou no mundo ocidental desde os Górgias até a Renascença — durante quase dois mil anos. Ameaçada já no século XVI pelo advento do racionalismo moderno, a Retórica foi completamente arrasada quando o racionalismo se transformou em positivismo, no fim do século XIX. Naquela altura não existia mais nenhuma base comum à literatura e à linguagem: a literatura já não se considerava linguagem, a não ser nas obras de uns poucos pioneiros, como Mallarmé, e os linguistas se atribuíam muito poucos direitos sobre a literatura, reduzindo-se estes a uma disciplina filológica secundária de status incerto — a Estilística.
Como sabemos, a situação está mudando e parece-me que é em parte para tomar conhecimento desta mudança que estamos reunidos aqui: a literatura e a linguagem estão no processo de se redescobrirem. Os fatores deste rapprochement são diversos e complexos; citarei os mais óbvios. Por um lado, certos escritores — a partir de Mallarmé — como Proust e Joyce, empreenderam uma exploração radical do escrever, fazendo de suas obras uma busca do Livro total. Por outro lado, a própria Linguística, sobretudo após o ímpeto de Roman Jakobson, desenvolveu-se no sentido de incluir no seu escopo a poética, ou a ordem dos efeitos ligados à mensagem, não à sua referência. Portanto, a meu ver temos hoje uma nova perspectiva de consideração que — eu gostaria de enfatizar — é comum à literatura e à Linguística, ao criador e ao crítico, cujas tarefas, até agora fechadas em si mesmas, estão começando à inter-relacionar-se e talvez até a fundir-se. Isto é válido pelo menos para certos escritores cujas obras estão-se tornando cada vez mais uma crítica da linguagem. É dentro desta perspectiva que eu gostaria de colocar as observações que se seguem (de natureza prospectiva e não conclusiva), indicando como se pode hoje enunciar a atividade literária com a ajuda de certas categorias linguísticas.
Esta nova união entre a literatura e a Linguística, de que acabo de falar, poderia chamar-se, em falta de nome melhor, semiocrítica, uma vez que implica a escrita como sistema de sinais. A semiocrítica não deve ser identificada com a Estilística; mesmo numa forma nova, é muito mais do que Estilística. Tem uma perspectiva muito mais ampla; seu objeto não se constitui de simples acidentes de forma e sim das próprias relações entre o escritor (scripteur, não écrivaint) e a linguagem. Esta perspectiva não implica numa falta de interesse pela linguagem, mas, antes, pelo contrário, num perpétuo retorno às verdades — ainda que provisórias — da Antropologia linguística. Retomarei algumas dessas verdades, pela força de desafio que ainda apresentam em relação a uma certa ideia que se tem de literatura.
Um dos ensinamentos da Linguística contemporânea é o de que não existe língua arcaica, ou pelo menos não existe conexão entre a simplicidade e a idade da língua. Não há uma história progressiva das línguas. Portanto, quando tentamos encontrar certas categorias linguísticas na literatura moderna, não estamos pretendendo relevar um certo arcaísmo da “psique”, não estamos dizendo que o escritor está retornando à origem da linguagem, mas sim que a linguagem é a origem para ele.
Um segundo princípio particularmente importante para a literatura é o de que não se pode considerar a língua como um simples instrumento — utilitário ou decorativo — do pensamento. O homem não existe antes da linguagem, enquanto espécie ou enquanto indivíduo. Jamais encontramos um estágio em que o homem esteja separado da linguagem, que ele então cria para “expressar” o que ocorre dentro dele; é a linguagem que dá a definição do homem, não o inverso.
Além disso, do ponto de vista metodológico, a Linguística habitua-nos a um novo tipo de objetividade. Até agora, a objetividade exigida das ciências humanas é a objetividade do dado, uma total aceitação do dado. Por outro lado, a Linguística sugere que distingamos os níveis da análise e descrevamos os elementos distintivos de cada um desses níveis; em suma, que estabeleçamos a distinção do fato, não o próprio fato. For outro lado, a Linguística pede que reconheçamos que, diferentemente dos fatos físicos e biológicos, os fatos culturais são sempre duplos: referem-nos a algo mais. Como observou Benveniste, a descoberta da “duplicidade” da linguagem confere à reflexão de Saussure todo o seu valor. [[Emile Benveniste, Problèmes de la linguistique générale (Paris, 1966), p. 40. “Qu’est-ce donc que cet objet, que Saussure érige sur la table rase de toutes les notions reçues? Nous touchons ici à ce qu’il y a de primordial dans la doctrine saussurienne, à un principe qui présume une intuition totale du langage, totale à la fois parce qu’elle embrasse la totalité de son objet. Ce principe est que le langage, sous quelque point de vue qu’on l’étudié, est toujours un objet double, formé de deux parties dont l’une ne vaut que par l’autre”.]]
Estes poucos preliminares estão contidos numa proposição final que justifica toda a pesquisa semiocritica. Cada vez mais entendemos a cultura como um sistema geral de símbolos, governado pelas mesmas operações. Há unidade neste campo simbólico: a cultura, em todos os seus aspectos, é uma linguagem. A partir daí, é possível prever hoje a criação de uma única ciência geral da cultura, apoiada em diversas disciplinas, todas empenhadas em analisar, em diferentes níveis de descrição, a cultura enquanto linguagem. E óbvio que a semiocrítica será apenas uma parte desta ciência, ou melhor, desse discurso sobre cultura. Sinto-me autorizado por essa unidade do campo simbólico humano a trabalhar sobre um postulado que chamarei de postulado da homologia: a estrutura das sentenças, objeto da Linguística, encontra-se também, homologicamente, na estrutura das obras. O discurso não é uma simples sequência de sentenças: ele próprio é uma grande sentença. Dentro dessa hipótese, eu gostaria de confrontar certas categorias linguísticas com a situação do escritor em relação ao que escreve.
A primeira dessas categorias é a temporalidade. Penso que todos estamos de acordo sobre a existência de uma temporalidade linguística. O tempo específico da linguagem difere tanto do tempo físico quanto do que Benveniste chama de “tempo crônico”, ou seja, tempo do calendário (Cf. Benveniste, “Les Relations de temps dans le verbe français”, ibid., pp. 237-50). O tempo linguístico tem expressão e découpage bastante diferentes nas diversas línguas. Por exemplo, já que nos vamos interessar pela análise dos mitos, muitas línguas têm um tempo verbal passado especial para indicar o tempo passado do mito. Uma coisa é certa: o tempo linguístico sempre tem seu centro gerador no presente da enunciação. Isto nos leva a indagar se não há um tempo específico do discurso, homológico ao tempo linguístico. Sobre essa questão, podemos tomar a demonstração de Benveniste, de que muitas línguas, especialmente no grupo indo-europeu, têm um duplo sistema temporal. O primeiro é do discurso que se adapta à temporalidade do falante e para o qual a enunciação é sempre o momento gerador. O segundo é o sistema histórico ou narrativo, que se adapta ao relato de eventos passados, sem qualquer intervenção do falante e que, consequentemente, não dispõe de presente e futuro (exceto perifrasticamente). O tempo específico deste segundo sistema é o aoristo ou seu equivalente, tal como o passé simple ou o pretérito. Este tempo (o aoristo) é precisamente o único que falta ao sistema temporal do discurso. Naturalmente, a existência desse sistema apessoal não contradiz a natureza essencialmente logocêntrica do tempo linguístico, de que falei há pouco. Ao segundo sistema faltam simplesmente as características do primeiro.
Entendida como oposição entre dois sistemas radicalmente diferentes, a temporalidade não tem na marca morfológica dos verbos seu único signo: ela está marcada por todos os signos, às vezes muito indiretos, que se referem ao tempo apessoal do evento ou ao tempo pessoal do locutor. A oposição em sua plenitude nos permite, em primeiro lugar, dar conta de alguns casos puros ou, poderíamos dizer, clássicos — uma estória popular e a história da França recontados nos livros escolares são narrativas puramente aorísticas; O Estrangeiro de Carnus, ao contrário, escrito em pretérito composto, é uma forma perfeita de autobiografia (a do narrador, não a do autor) — e também nos permite entender melhor os casos aparentemente anômalos (Cf. Jean-Paul Sartre, “Explication de l’Etranger”, Situations I (Paris, 1947), pp. 99-121). Como historiador, Michelet fez todo o tempo histórico girar em torno de um ponto do discurso com o qual ele se identificava — a Revolução. Sua história é uma narrativa sem o aoristo, ainda que nela o pretérito simples seja usado de sobejo; inversamente, o pretérito pode muito bem servir para significar não o récit objetivo, mas a despersonalização do discurso — fenômeno que é objeto da mais intensa pesquisa sobre a literatura contemporânea.
Eu gostaria de acrescentar a esta análise linguística, que vem de Benveniste, que a distinção entre o sistema temporal do discurso e o sistema temporal da história é completamente diferente da distinção tradicional entre discurso objetivo e discurso subjetivo. A relação entre o falante e o referente não deve ser confundida com a relação entre o falante e sua enunciação; somente esta última determina o sistema temporal do discurso.
Parece-me que estes fatos de linguagem não seriam imediatamente perceptíveis, enquanto a literatura se pretendesse expressão transparente do tempo objetivo do calendário ou da subjetividade psicológica, isto é, enquanto a literatura mantivesse uma ideologia totalitária do referente, ou, em palavras mais simples, enquanto a literatura fosse realista. Hoje, porém, a literatura de que falo está descobrindo sutilezas relativas à temporalidade. Ao ler certos autores engajados neste tipo de exploração, sentimos que o que se conta em aoristo não parece nem um pouco imerso no passado, no que ocorreu, mas simplesmente no impessoal (la non-personne) que não é nem história, nem informação discursiva (la science), e menos ainda o alguém da literatura anônima. (O alguém é dominado pelo indefinido, não pela ausência de pessoa. Eu diria mesmo que alguém é marcado quanto à pessoa, ao passo que, paradoxalmente, ele não é.) No outro extremo da experiência do discurso, para o escritor de hoje não pode mais bastar a expressão de seu próprio presente, segundo um plano lírico, por exemplo. Ele precisa aprender a distinguir o presente do falante, que tem suas bases numa plenitude psicológica, do presente da locução, que é móvel e no qual o evento e o registro se tornam absolutamente coincidentes. Assim, a literatura, pelo menos em alguns de seus propósitos, parece-me estar seguindo o mesmo caminho da Linguística quando, como Gustave Guillaume (um linguista que não está em moda hoje, mas pode vir a estar novamente), se preocupa com o tempo operante e o tempo próprio da enunciação em si. [[Gustave Guillaume, L’Architectonique du temps dans les langues classiques (Copenhagen, 1945). A obra de Guillaume (falecido em 1960) acerca de uma “psicossistemática” foi continuada nas contribuições de Roch Valin (Petite introduction à la psychomécanique du langage (Québec, 1954. Para um enunciado de Guillaume a respeito de sua relação com a tradição de Saussure, ver La langue est-elle ou n’est-elle pas un système? Cahiers de linguistique structurale de l’Université de Québec, I (1952), p. 4.]]
Uma segunda categoria gramatical igualmente importante em literatura e em Linguística é a de pessoa. Mais uma vez, tomando como base a Linguística e especialmente Benveniste, eu gostaria de fazer lembrar que pessoa (no sentido gramatical do termo) parece certamente ser um universal linguístico, ligado à Antropologia linguística. Toda língua, como mostrou Benveniste, organiza as pessoas em dois amplos pares de opostos: uma correlação de pessoalidade que opõe a pessoa (eu ou tu) à não-pessoa (ele), o signo da ausência; e, dentro deste primeiro par de opostos, uma correlação de subjetividade (também no sentido gramatical) que opõe duas pessoas, o eu e o nao-eu (o tu). Para nossos fins, precisamos fazer, com Beneviste, três observações. Em primeiro lugar, a polaridade das pessoas, embora seja uma condição fundamental da língua, é peculiar e enigmática, pois não envolve nem igualdade, nem simetria: eu está sempre numa posição de transcendência em relação a tu, uma vez que eu é interior ao enunciado, e tu lhe é exterior; contudo, eu e tu são reversíveis: eu sempre pode vir a ser tu e vice-versa. O mesmo não é válido para a não-pessoa (ele), que nunca pode transformar-se em pessoa ou vice-versa. A segunda observação é a de que o eu linguístico pode e deve ser definido de modo estritamente apsicológico : eu é apenas “la personne qui énonce la présente instance de discours contenant l’instance linguistique je” (Benveniste — “a pessoa que enuncia a presente ocorrência de discurso contendo a ocorrência linguística eu” — Problèmes, p. 252). A última observação é que o ele, ou não-pessoa, nunca reflete a ocorrência de discurso; ele situa-se fora dela. É preciso dar o peso total à recomendação de Benveniste no sentido de não representar o ele como uma pessoa mais ou menos reduzida e afastada: ele é absolutamente não-pessoa, marcada especificamente pela ausência daquilo que constitui linguisticamente o eu e o tu.
A explicação linguística dá diversas sugestões para uma análise do discurso literário. Primeiramente, por mais variadas e sutis que sejam as formas assumidas pela pessoa na passagem do nível da sentença para o nível do discurso, o discurso literário submete-se rigorosamente ao sistema duplo de pessoa e não-pessoa. Este fato pode não ser muito evidente, porque o discurso clássico (num sentido amplo) a que estamos habituados, é um discurso misto que alterna com muita rapidez, às vezes dentro de uma mesma sentença, enunciação pessoal e impessoal, mediante um jogo complexo de pronomes e verbos descritivos. Neste tipo de estória clássica, ou burguesa, a mistura da pessoa e não-pessoa produz uma espécie de consciência ambígua, que consegue manter a pessoalidade do que é dito, enquanto quebra continuamente a participação do locutor no enunciado.
Muitas enunciações em romances escritas em ele (terceira pessoa) são, ainda assim, discursos da pessoa, sempre que o conteúdo da elocução depende de seu sujeito. Se lemos num romance que “o tilintar do gelo no copo parecia ter dado a Bond uma súbita inspiração”, certamente o sujeito do enunciado não pode ser o próprio Bond — não porque a sentença está escrita na terceira pessoa, pois Bond poderia muito bem se expressar através de um ele, mas devido ao verbo parecer, que se torna marco da ausência de pessoa. Entretanto, apesar da diversidade e às vezes mesmo artificiosidade dos sinais narrativos da pessoa, não há senão uma única e grande oposição no discurso: a da pessoa e a da não-pessoa; toda narrativa ou fragmento de narrativa tem que cair em um ou outro desses extremos. Como podemos determinar essa divisão? “Re-escrevendo” o discurso. Se pudermos trocar o ele por eu sem fazer qualquer outra alteração na enunciação, então o discurso é, na verdade, pessoal. Na sentença citada, esta transformação é impossível; não podemos dizer que “o tilintar do gelo parecia ter-me dado uma súbita inspiração”. A sentença é impessoal. Partindo daí, podemos ter uma ideia de como se faz o discurso do romance tradicional; por um lado, ele alterna o pessoal e o impessoal muito rapidamente, às vezes numa mesma sentença, de modo a produzir, se pudermos dizer assim, uma consciência proprietária, que mantém o controle daquilo que diz sem dele participar; e, por outro lado, neste tipo de romance — ou melhor, de acordo com nossa perspectiva, nesse tipo de discurso, quando o narrador é explicitamente um eu (o que acontece muitas vezes), confundem-se o sujeito do discurso e o sujeito da ação relatada, como se — e esta é uma crença generalizada — aquele que hoje fala fosse o mesmo que agia ontem. É como se houvesse uma continuidade entre o referente e a enunciação através da pessoa; como se o narrador fosse apenas um dócil servidor do referente.
Se voltarmos à definição linguística da primeira pessoa (aquela que diz “eu” na presente ocorrência de discurso), poderemos entender melhor o esforço de certos escritores contemporâneos (na França, por exemplo, o mais recente romance de Philippe Sollers, Drame) quando eles tentam distinguir, no nível da estória, a pessoa psicológica e o autor do texto. Quando um narrador relata algo que lhe aconteceu, o eu que narra não é mais o eu do que é narrado. Em outras palavras •— e parece-me que isto está ficando cada vez mais evidente — o eu do discurso não pode mais ser um lugar em que uma pessoa previamente depositada é inocentemente restaurada. O recurso absoluto a uma ocorrência de discurso para determinar a pessoa é chamado nun-egocentrismo, por Damourette e Pichon (do grego nun, “agora”). [[J. Damourette e E. Pichon, Des mots à la pensée: Essai de grammaire de la langue française (Paris, 1911-36), V, -* 1604 e VII, -* 2958: “Le langage est naturellement centré sur le moi-ici, maintenant, c’est-à-dire sur la personne qui parle s’envisageant au moment même où elle parle; c’est ce qu’on peut appeller le nynégocentrisme naturel du langage” (-* 1604).]] O romance Dans le labyrinthe, de Robbe-Grillet, começa com uma admirável declaração de nun-egocentrismo: “Je suis seul ici maintenant” (Estou sozinho aqui agora). [[Dans le labyrinthe (Paris: Éditions de Minuit, 1959). Para os ensaios de Roland Barthes relacionados com o método de ficção e a teoria de Robbe-Grillet, ver Essais critiques (Paris, 1964), pp. 29-40, 63-70, 198-205.]] Este recurso, por mais imperfeito que ainda se apresente, parece ser uma arma contra a “má fé” generalizada do discurso que faria da forma literária a simples expressão de uma interioridade previamente constituída para e fora da linguagem.
Para finalizar esta discussão de pessoa, eu gostaria de lembrar que o percurso do eu no processo de comunicação não é homogêneo. Por exemplo, quando libero o signo eu refiro-me a mim mesmo, enquanto falo: eis aqui um ato que é sempre novo, mesmo se repetido, um ato cujo sentido é sempre novo. Contudo, meu interlocutor recebe este signo como um signo estável, produto de um código completo, cujos conteúdos são recorrentes. Em outras palavras, o eu de quem escreve eu não é o mesmo eu lido pelo tu. Esta dissimetria da linguagem, explicada linguisticamente por Jespersen e depois por Jakobson, sob o nome de shijter ou superposição de mensagem e código, parece estar finalmente começando a perturbar a literatura, ao mostrar que a intersubjetividade, ou melhor, a interlocução não se torna possível pelo simples desejá-lo, mas apenas através de uma profunda, paciente e muitas vezes circular descida aos labirintos da significação. [[Cf. Jakobson, Shifters, Verbal Categories, and the Russian Verb (Cambridge (Mass.), 1957). (Vertido para o francês por Nicolas Ruwet in Essais de linguistique générale (Paris, 1963), pp. 176-96.) Para a origem do termo “shifter”, ver Otto Jespersen, Language, its Nature, Development and Origin (Londres, 1922), p. 123, e ibid., The Philosophy of Grammar (Londres, 1923), pp. 83-84.]]
Resta ainda uma última noção gramatical que, na minha opinião, pode trazer mais luz sobre a atividade de escrever, pois diz respeito ao próprio verbo escrever. Seria interessante saber quando foi que o verbo escrever começou a ser usado como intransitivo, deixando o escritor de ser aquele que escreve algo, para ser aquele que escreve. (Com que frequência ouvimos em conversas de círculos mais ou menos intelectuais alguma coisa como: “O que é que ele está fazendo?” — “Está escrevendo”). Esta passagem do verbo escrever de transitivo para aparentemente intransitivo é certamente sinal de uma importante mudança de mentalidade. Mas trata-se realmente de intransitividade ? Nenhum escritor, qualquer que seja sua época, pode ignorar que sempre escreve algo: poder-se-ia mesmo dizer que, paradoxalmente, o verbo escrever parece ter-se tornado intransitivo no momento em que seu objeto — o livro ou o texto — adquiriu uma importância especial. Portanto, apesar das aparências, não é no aspecto de intransitividade que devemos buscar a definição do verbo escrever contemporâneo. Talvez uma outra noção linguística possa nos dar o caminho: a noção de diatese, ou, de acordo com as gramáticas clássicas, de voz (ativa, passiva, média). A diatese designa o modo pelo qual a ação (procès) afeta o sujeito do verbo; isto é óbvio no caso do passivo (se digo “fui derrotado”, é bastante óbvio que fui muito afetado pela ação do verbo derrotar). Ainda assim, dizem-nos os linguistas que — pelo menos no indo-europeu — a oposição dialética não se faz entre a ativa e a passiva, mas entre a ativa e a média. Seguindo o exemplo clássico, apresentado por Meillet e Benveniste, o verbo sacrificar (ritualmente) é ativo se o sacerdote sacrifica a vítima por mim, e está na voz média se, tomando a faca das mãos do sacerdote, eu mesmo executo o sacrifício. [[Benveniste, “Actif et moyen dans le verbe”, Problèmes, pp. 168-75. Cf. a distinção iniciada por Panini (II. 350 a.C.) : parasmaipada, “uma palavra por outro”, i.e., ativo, e amanepada, “uma palavra por si mesmo”, i.e., médio. Consequentemente, yajate (“ele sacrifica” — por outro, como sacerdote) vs. yajate (“ele sacrifica — por sisi mesmo, como ofertante). Cf. Berthold Delbrück, Vergleichende Syntax der Indogermanischen Sprachen (Estrasburgo, 1893).]] No caso da ativa, a ação se passa fora do sujeito, pois, embora o sacerdote realize o sacrifício, este não o afeta. No caso da voz média, pelo contrário, o sujeito afeta-se ao agir; ele sempre está dentro da ação, mesmo se há um objeto envolvido. Portanto, a voz média não exclui a transitividade. Definida assim, a voz média corresponde exatamente à situação do verbo escrever: hoje, escrever é fazer-se centro da ação da fala, é efetuar a escrita, afetando-se a si mesmo: é deixar o escritor no escrito, não como sujeito psicológico (o sacerdote indo-europeu podia muito bem transbordar em subjetividade, enquanto fazia ativamente o sacrifício para seu cliente), mas como agente da ação.
Penso que a análise dialética do verbo escrever atual, que tentei apresentar como um verbo em voz média, pode ser levada ainda mais longe. Os senhores sabem que, em francês — sou obrigado a dar unicamente exemplos franceses — certos verbos têm, na forma simples, um sentido ativo. Por exemplo: os verbos aller, arriver, rentrer, sortir (ir, chegar, voltar, sair). Curiosamente, esses verbos ativos tomam o auxiliar passivo, o verbo être (ser), nas formas do passé composé. Ao invés de dizer j’ai allé, dizemos je suis allé, je suis sorti, je suis arrivé, je suis rentré, etc. Para explicar esta bifurcação peculiar à voz média, Guillaume distingue dois passés composés. O primeiro, que ele denomina diriment, “separado”, é um passé composé com o auxiliar avoir; este tempo supõe uma interrupção da ação devida à iniciativa do falante. Tome-se como exemplo o verbo marcher (andar), um verbo caracteristicamente ativo: “je marche; je m’arrête de marcher; j’ai marché” (eu ando; paro de andar; andei) — este é o passé composé diriment. O outro passé composé, que ele denomina intégrant, constrói-se com o verbo être e indica uma espécie de entidade semântica que não pode ser liberada por simples iniciativa do sujeito. “Je suis sorti” ou “Il est mort” (“eu saí” ou “ele morreu”) (pois não posso dizer “eu morri”) nunca se referem a uma interrupção parecida com o diriment de sair ou morrer. Creio que esta oposição é importante, pois podemos ver claramente que o verbo escrever era tradicionalmente um verbo ativo e ainda hoje tem um pretérito formalmente diriment: “j’écris un livre; je le termine; je l’ai écrit” (Escrevo um livro, eu o concluo; eu o escrevi). Mas parece-me que o verbo está mudando de status, se não de forma, em nossa literatura e escrever está-se tornando um verbo de voz média, com o pretérito intégrant. Isto é verdade, uma vez que o verbo escrever atual está-se tornando uma espécie de entidade semântica indivisível. De modo que, se a língua seguisse a literatura — que, talvez pela única vez, tem o comando — eu diria que não devíamos mais dizer “j’ai écrit”, mas sim “je suis écrit”, assim como dizemos “je suis né, il est mort, ele est êclose”. Nessas expressões não há ideia de passivo, apesar do verbo être, pois é impossível transformar “je suis écrit” (sem forçar as coisas e supondo que eu ousasse empregar essa expressão) em “on m’a écrit” (“eu fui escrito” em “alguém me escreveu”). Na minha opinião, a distância entre o escritor e a língua diminui assintoticamente no verbo escrever de voz média. Poderíamos mesmo dizer que o escrever subjetivo, ainda como o escrever romântico, é o que é ativo, pois nele o agente não é interior mas anterior ao processo de escrever. Aqui, aquele que escreve não escreve para si, mas, como se fosse um procurador, para alguém que é exterior e antecessor (ainda que os dois tenham o mesmo nome). No verbo escrever atual, de voz média, o sujeito é contemporâneo do texto, sendo criado e afetado por ele. O caso do narrador em Proust é típico; ele só existe ao escrever.
Estas observações indicam que o problema central da literatura moderna coincide exatamente com o que poderíamos chamar de problemática do verbo na Linguística; assim como a temporalidade, a pessoa e a diatese definem o campo posicionai do sujeito, a literatura moderna está tentando, através de diversas experiências, estabelecer um novo status no escrito para o agente do escrever. O sentido ou a meta desse esforço é substituir a ocorrência de discurso pela ocorrência de realidade (ou do referente), que vem sendo o “álibi” mítico dominante na ideia de literatura. O campo do escritor não é outro senão o da escrita, não enquanto “forma” pura concebida por uma estética da arte, mas, de modo muito mais radical, enquanto única área (espace) daquele que escreve.
Parece-me necessário lembrar àqueles que se possam sentir tentados a acusar este tipo de busca de solipsismo, formalismo ou, inversamente, de cientificismo, que, recorrendo às categorias fundamentais da linguagem, tais como pessoa, tempo e voz, nos colocamos no próprio centro da problemática da interlocução. Pois é exatamente nessas categorias que podemos examinar as relações entre o je e aquilo que não tem a marca de je. Na medida em que pessoa, tempo e voz implicam nesses notáveis entes linguísticos — os “shifters” — essas categorias nos obrigam a conceber a linguagem e o discurso não mais em termos de uma nomenclatura instrumental e reificada, mas no próprio exercício da linguagem (parole). O pronome, por exemplo, que sem dúvida é o mais cambiante dos “shifters”, pertence estruturalmente à fala. Este é o escândalo, se os senhores assim quiserem, e é sobre este escândalo que se deve trabalhar hoje, em linguística e em literatura. Estamos todos tentando — com diferentes métodos, estilos, ou talvez mesmo preconceitos — chegar ao cerne do pacto linguístico que une o escritor ao outro, de modo que — e esta é uma contradição a que nunca se dará a devida importância — cada momento do discurso é a um só tempo absolutamente novo e absolutamente entendido. Penso que, com uma certa dose de temeridade, podemos mesmo dar a essa pesquisa uma dimensão histórica. Sabemos que o septenium medieval, em sua classificação grandiosa do universo, prescrevia duas grandes áreas de pesquisa: de um lado, os segredos da natureza (o quadrivium) e, do outro, os segredos da linguagem (o trivium: grammatica, rhetorica, dialectica). Do final da Idade Média aos dias de hoje, perdeu-se esta oposição, passando-se a considerar a linguagem apenas como instrumento a serviço da razão ou do coração. Hoje, porém, revive algo desta antiga oposição: a pesquisa da linguagem, liderada pela Linguística, a Psicanálise e a Literatura, corresponde à exploração do cosmos. Pois a literatura é em si uma ciência, ou pelo menos um conhecimento, não mais do “coração humano”, mas da linguagem humana. Contudo, sua investigação não se dirige às formas e figuras secundárias, que constituíam o objeto da Retórica, mas às categorias fundamentais da linguagem. Assim como a gramática só surgiu na cultura ocidental muito depois da retórica, é só depois de muitos séculos no caminho de le beau littéraire que a literatura pode começar a ponderar sobre os problemas fundamentais da linguagem, sem os quais não existiria.