Alexandre Costa: êthos – escuta – logos

Excerto de “O êthos humano em Heráclito”, do Prof. Dr. Alexandre Costa, em Izabela Bocayuva (org.), ETHOS NA ANTIGUIDADE. Rio de Janeiro: ViaVerita, 2013, p. 11-15.

Dentre os textos que nos foram legados pela tradição, o primeiro aparecimento do termo grego tó êthos em literatura de caráter filosófico ocorre por duas vezes na obra de Heráclito de Éfeso, da qual conhecemos pouco mais do que uma centena de fragmentos. Em dois desses fragmentos, Heráclito emprega, primeiro, a expressão ἦθος γὰρ ἀνθρώπειον (B78) e, depois, a expressão ἦθος ἀνθρώπῳ (B119), que significam, literal e respectivamente, “o êthos humano” e “o êthos do homem”. Essas duas ocorrências permitem perceber de imediato que a pergunta acerca do êthos é, necessariamente, a pergunta acerca do êthos humano. É importante observar, também, que se trata de duas sentenças claramente afirmativas, que almejam diretamente a delimitação do que seja o êthos do homem. O propósito deste artigo consistirá em analisar o que Heráclito nos tem a dizer, tão diretamente, a respeito desse êthos, tentando extrair das duas sentenças aqui mencionadas qual o lugar1 do homem segundo a filosofia heraclítica. No Fragmento 119, Heráclito afirma: “o êthos do homem: o daímon”2. Trata-se de uma afirmação claramente taxativa, definidora. Mas ela nos impõe uma [11] dificuldade imediata – saber o que vem a ser esse daímon. Assim, a definição do êthos humano proposta pelo Fragmento 119 de Heráclito demanda, para nós, abrir uma outra pergunta, a fim de que, a partir dela, se possa retomar a contento a questão de origem: qualquer reflexão em torno da questão do êthos em Heráclito terá, necessariamente, que indagar por esse daímon que o define. Há apenas mais um fragmento heraclítico em que o termo ocorre: “Diante do daímon, o homem ouve, infantil, como, diante do homem, a criança”3 (B79). Evidentemente, o mais importante para a interpretação desses dois fragmentos em que o termo “daímon” se destaca consiste em compreender o que ele significa. Considero mais acertado não traduzir o termo justamente pela dificuldade em definir qual o seu significado mais próprio no tocante ao pensamento de Heráclito. É usual traduzi-lo por “divindade”, “nume”, “gênio” ou mesmo por “destino”. São traduções certamente aplicáveis, mas insuficientes, talvez mais tolhedoras do que reveladoras, pois muito embora sejam formalmente corretas não parecem dar conta da abrangência e complexidade da palavra. É preciso buscar outros acessos para a compreensão do daímon dentro das molduras e da especificidade da filosofia de Heráclito.No Fragmento 79, o termo “daímon” apresenta-se ladeado pelo verbo “ouvir”, sendo a audição ou a escuta o elo entre o homem e o daímon – “diante do daímon, o homem ouve”. A associação entre o verbo “ouvir” e o vocábulo “daímon” é bastante recorrente na língua grega, em todas as suas diversas épocas. Na Apologia, Platão apresenta um Sócrates que ouve o daímon constantemente: para Sócrates, o daímon é audível. Em períodos mais tardios, os gnósticos cristãos concebiam o daímon como a voz interna do homem, aquela que antes de tudo deve ser ouvida. Ainda mais tardiamente, a cristandade de língua grega designava como “daímon” os conselhos benfazejos dos anjos da guarda escutados ao pé do ouvido. Importa notar que, [12] através das mais distintas épocas, a despeito do que venha a ser o daímon propriamente dito, o termo manteve-se ladeado pelo fenômeno da escuta. O daímon podia ser pensado como a própria divindade, o destino, o nume, o gênio, o conselho dos anjos, a voz interior, o espírito, o demônio, o que fosse: isto variou. O que não se alterou é o fato de que, em cada momento, o que quer que fosse o daímon, ele esteve sempre associado à escuta, do que a escrita de Heráclito é, portanto, mais um belo exemplo.

Para além disso, é absolutamente relevante observar um outro aspecto no fato de a palavra “daímon” em Heráclito estar, também ela, ladeada pelo verbo “ouvir”. Digo “também” porque três são as outras palavras com que Heráclito relaciona o verbo “ouvir”: o homem, a physis e o lógos.4 Deste modo, mesmo ainda não sendo possível determinar o que seja o daímon, decerto ele se situa nessa mesma ordem de relação em que o homem, ouvinte, escuta o lógos e a physis. É de crucial importância ressaltar que esse ouvir o lógos e a physis representa para o homem muito mais do que uma potência ou capacidade: ele é irrecusável, dando-se constantemente5. É na totalidade do seu tempo, em cada instante e segundo de sua existência, que o homem ouve o lógos. Se o homem jamais se livra dessa audição, pode-se dizer que é em meio a essa potência que lhe é tão condicional que o homem faz, paradoxalmente, a experiência de uma impotência igualmente insuperável, justamente a de não poder se subtrair a essa potência. Em Heráclito, ouvir o lógos é a condição inarredável do homem, afinal, “como alguém escaparia diante do que nunca se põe?”6.

[13] Mas o que significa “ouvir o lógos”? Pelo exposto até aqui, torna-se claro que o uso do verbo “ouvir” em Heráclito transcende o seu sentido literal. Mas transcendê-lo não necessariamente significa excluí-lo do rol de suas possibilidades semânticas: muito pelo contrário, é forçoso reconhecer que essa audição a que Heráclito se refere realiza-se, antes de tudo, sensivelmente. Ouvir o lógos, como já aludido, é a condição perene do humano, condição que se exerce continuamente por meio da sua sensibilidade, que lhe possibilita e lhe impõe, através dos sentidos, fazer a experiência contínua e irrecusável disso que aparece nos fragmentos de Heráclito sob a forma de um lidar que a umtempo une e afasta o homem e o lógos.

Se constitui tarefa sempre delicada e realmente difícil definir conceitualmente o que vem a ser exatamente esse logos. É certo, porém, que a sua audição se dá primeiramente de forma sensorial: o homem “ouve” o lógos por todos os seus poros, apreendendo-o por intermédio da totalidade dos seus sentidos. Pode-se afirmar que, na escrita de Heráclito, o homem “ouve” não apenas pela audição, mas também pela visão, pelo tato, pelo paladar e pelo olfato: eles são as “Testemunhas”7 daquilo que o lógos, sempre o mesmo, reiteradamente nos apresenta a cada dia, hora e segundo. É, portanto, desta forma aisthética que o homem se encontra constante e imediatamente aberto a esse contato irrecusável com o cosmo e também com a sua natureza e caráter (physis), sendo ele mesmo, o homem, uma parte sensível desse todo igualmente sensível. É imerso no cosmo, por meio da sua [14] sensibilidade, que o homem ouve o lógos e a physis que nele se encontram “impressos”: “Bem-pensar é a maior virtude, e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza (physis), escutando-a”8.

Vale considerar que a escolha do verbo “ouvir” por parte de Heráclito, conferindo-lhe uma espécie de primazia diante dos demais sentidos de que dispomos, está muito possivelmente associada ao fato de nominar como lógos aquilo que há de uno e universal, de imutável e de eterno em meio à dinâmica de um cosmo em que todas as coisas são múltiplas e contigentes, mutáveis e transitórias: o lógos e também a physis9 são possivelmente os únicos a quem compete ser numa realidade cuja dinâmica imediata e sensível é a do devir. Pois como esse lógos, gramatical e etimologicamente falando, vem a ser um substantivo que remete a légein, seu verbo de origem, o seu significado ou mesmo os seus significados primeiros e primevos encontram-se essencialmente vinculados às idéias de fala e discurso e, por extensão, também de linguagem10: ouvir a physis, ouvir o lógos, significa apreender necessariamente em algum grau e de algum modo a linguagem que são e que estabelecem por meio do seu simples aparecer: sendo11, lógos e physis mostram-se, “dizem de si”, tornando-se, portanto, “audíveis”.


  1. O termo êthos é corrente em âmbito filosófico e, por isso, raramente traduzido. Seu significado transita originalmente por um campo semântico presidido pelas idéias de “lugar”, “residência”, “ambiente” e, por extensão, também “caráter”, “distinção”, “modo” e “natureza”. ↩

  2. Todas as citações aos fragmentos de Heráclito serão feitas de acordo com a minha própria tradução: COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro, Difel, 2002. p. 181. ↩

  3. Idem, ibidem, p. 135. ↩

  4. Muitos são os exemplos ao longo dos fragmentos heraclíticos em que a relação entre o homem e o lógos realiza-se por meio da escuta. Pode-se dizer, ainda mais radicalmente, que essa relação é uma escuta, uma determinada audição. Nessa relação, o lugar do homem é o do ouvinte, enquanto o lógos (Cf. B1) e & physis (Cf. B112) são aquilo que se ouve. ↩

  5. O lógos sempre é (Cf.B1) e o homem, enquanto for, todo o seu tempo é tempo de audição do lógos. Ver, por exemplo, B1 e B72. ↩

  6. B16. Op. cit. p. 69. ↩

  7. Em Heráclito, pode-se afirmar que a função própria dos sentidos é o testemunho, pelo que o autor sempre os denomina “testemunhas”, tal como evidenciam os Fragmentos 28, 101a e 107, nos quais também se pode verificar que, se por um lado o testemunho do lógos é contínuo, porque perenemente promovido e possibilitado pelos sentidos, por outro lado, o modo ou a qualidade desse testemunho ou apreensão pode ser eficiente ou deficiente, decretando por extensão uma audição respectivamente eficiente ou deficiente do lógos, tema que retomarei oportunamente. ↩

  8. B112. Op. cit. p. 175. Grifomeu. ↩

  9. Estes dois termos tendem, no conjunto dos fragmentos, a uma certa fusão, sobrepondo-se por vezes. Sobre o caráter imutável da physis a despeito de sua renovação “diária”, cito o Fragmento 106: “A natureza (physis) de cada dia é uma e a mesma.” (Op. cit. p. 171). A esse respeito, ver também B6 e o contexto em que se inclui, fornecido por Aristóteles: Meteorologia, II, 2.355a13. ↩

  10. As discussões filológicas acerca da etimologia da palavra “lógos” são bastante calorosas. Sobre o tema, indico especialmente o artigo de Heribert Boeder intitulado “Der Frühgriechische Wortgebrauch von Lógos und Alétheia”. In: Das Bauzeug der Geschichte. Würzburg, Königshausen und Neumann, 1994. De todo modo, além dos significados de “fala”, “discurso” e “linguagem”, destacar-se-iam também, dentre as possibilidades originais do termo, os significados de “junção”, “reunião” e “colheita”. ↩

  11. Cf. B1. ↩

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