A crítica de Simondon ao hilemorfismo

Hottois1993

A crítica ao hilemorfismo constitui fundo de repúdio do pensamento simondoniano da individuação em devir. Está latente em toda parte, frequentemente repetida em contextos diversos, da ontologia à ética e à política. Constitui, de certa forma, a desconstrução simondoniana da metafísica dualista que, como tal ou sob a forma de um ou outro monismo redutor, percorre toda a história da filosofia ocidental, pelo menos desde Platão.

O erro do hilemorfismo seria negar a realidade do devir ao pensar o real a partir do indivíduo constituído, assimilado a uma essência ou substância imutável, sem verdadeira gênese nem autêntico futuro. O hilemorfismo explica o indivíduo pela síntese de uma forma — perfeitamente identificada e definida a priori — e de uma matéria — totalmente amorfa e inerte em si. Essência ideal radicalmente separada da matéria (Platão) ou enteléquia ativa na matéria (Aristóteles) (IPC, p. 39-41), a forma não tem outro destino biofísico, temporal, senão encarnar-se, com sucesso variável, na matéria. A relação entre forma e matéria é pensada em exterioridade, sem consideração por sua realidade que é ativa e determinante. Daí os problemas bem conhecidos do dualismo, incapaz de pensar juntos o que primeiro separou e truncou.

G. Simondon levanta uma hipótese quanto à origem do paradigma hilemórfico, que estaria em certa organização e representação antigas do trabalho. De um lado, o mestre que concebe a forma (causa formal e final do trabalho); do outro, o escravo encarregado de realizar a forma na matéria. A representação do processo de individuação pelo mestre compreende, portanto, de um lado, o esquema ideal do objeto acabado desejado e, de outro, a noção vaga de uma matéria (desde então indiferente, passiva, com a qual nunca lida diretamente), de um instrumento e de uma operação (o escravo e seu trabalho) igualmente distantes. Só o escravo tem alguma experiência da realidade da individuação, mas sua posição não lhe permite pensá-la nem apreciar suas dimensões propriamente criadoras, já que é obrigado a cumprir exclusivamente o desejo formal do mestre.

“O esquema hilemórfico é assim um par em que os dois termos são nítidos e a relação obscura. O esquema hilemórfico, sob esse aspecto particular, representa a transposição para o pensamento filosófico da operação técnica reduzida ao trabalho, tomada como paradigma universal de gênese dos seres. É sim uma experiência técnica, mas uma experiência técnica muito incompleta, que está na base desse paradigma. A utilização generalizada do esquema hilemórfico em filosofia introduz uma obscuridade que vem da insuficiência da base técnica desse esquema” (MEOT, p. 242-243).

Compreender o indivíduo em sua gênese e realidade efetivas exige que se parta, não dos dois termos cuja separação artificial só permite pensar a realização como uma relação abstrata ou misteriosa, mas sim do processo mesmo, da operação: da individuação. Esta se torna então princípio do pensamento; cabe a ela uma prioridade lógica e ontológica sobre as noções de “forma” e “matéria”. Ou, dito de outro modo e na medida em que a ontologia é, ela mesma, impregnada de hilemorfismo: é preciso pensar a anterioridade da ontogênese sobre a ontologia, desdobrar o que se poderia chamar uma ontogenealogia. Se considerarmos a realidade desta, então percebemos o caráter “irreal”, abstrato, das noções veiculadas pelo hilemorfismo. No primeiro capítulo de IG (Forma e Matéria), G. Simondon analisa longamente algumas operações técnicas simples e sugestivas, em particular a da moldagem. Essa análise muito concreta mostra que uma “forma pura” e uma “matéria amorfa” não existem. A individuação exige a materialidade da forma: a fôrma é muito real. Ela mesmo é o produto provisoriamente estável e, em certas condições, estruturante-individuante, de um processo de individuação. É portanto particular, singular, mesmo que seja utilizado como um arquétipo. Quanto à matéria, ela não é absolutamente qualquer uma. Não se usa qualquer terra para fazer um tijolo. A matéria já é informada e contém informação potencial, ou seja, ela é suscetível de ser informada novamente, porque virtualidades nesse sentido já existem nela. Forma e matéria devem ser escolhidas e preparadas com cuidado. Tal essência de madeira, tal tronco mesmo totalmente singular, convém melhor (porque é mais duro, mais reto, mais espesso…) para fazer uma viga do que outro. O processo de individuação, mesmo nas operações técnicas simples, é extremamente complexo; ele envolve todo um sistema físico energético de forças que podem tender para tal ou qual equilíbrio (forma estável do produto acabado), mas não para qualquer equilíbrio. O pré-individuado nunca é qualquer um.