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República V

  

Aqui, porém, insere-se o que tem sido chamada «a grande digressão» [1] da República  , e, como tal, considerado por vezes uma parte mais tardia do diálogo. O que sucede é que, na melhor tradição literária grega [2], a discussão é interrompida no começo do Livro V; e voltamos a ver o agrupamento de figuras do proêmio, e a mesma arte de movimentar. É a ocasião em que Polemarco combina com Adimanto interromper Sócrates  , para o forçar a explicar-se melhor sobre a comunidade de mulheres e filhos, anunciada em IV. 423e-424a.

E esse ponto que vai ser esclarecido, com grandes rodeios e precauções, expressas na metáfora das vagas marinhas, ao longo do Livro V. Primeiro, far-se-á a proposta de que as mulheres, podendo ter a mesma capacidade dos homens, devem tomar parte nos cargos diretivos da cidade; segundo, expor-se-á o complicado sistema pelo qual se realizarão os casamentos e a procriação na classe dos guardiões, de molde a obter o mais alto grau de eugenia; a terceira, a mais temível das vagas, consiste em proclamar a condição necessária para que tal Estado se torne realizável: que seja governado por filósofos [3]. A afirmação conduz, naturalmente, à definição do que seja um filósofo e à distinção, com que encerra o livro, entre saber e opinião, entre o «amigo do saber» (philosophos) e o «amigo da opinião» (philodoxos) [4]. [Rocha Pereira]

Traduções: Chambry; Jowett


Resumo analítico de Francis Wolff  , no livro de Julia Annas, Introduction à la République de Platon   (PUF, 1981)

CONDIÇÕES PARA REALIZAR A JUSTIÇA ASSIM DEFINIDA

  • Primeira condição: Igualdade dos homens e das mulheres (V 451c-457c)
    • Esta igualdade concerne tanto as funções públicas quanto a educação pois a diferença sexual não implica nenhuma diferença de atitude. As mulheres poderão ser Guardiães, guerreiras, filósofas
  • Segunda condição: Comunidade de mulheres e de crianças nos guerreiros (V, 457c-471c)
    • Principais vantagens da abolição da família
      • o eugenismo (controle do número de uniões e seleção dos melhores casamentos pelo Estado, sorteios eventualmente falsificados) por um lado (458d-460b)
      • a educação pelo Estado das crianças (fora da vista de seus pais) depois de seu nascimento (infanticidas eventuais), por outro lado (460b-461e), garantem a melhor sociedade possível, sem propriedade privada de nenhuma espécie, e logo sem dissensão, entre Guardiões, e por conseguinte entre cidadãos (461e-466d)
      • a educação das crianças deve em particular as associar para a guerra (466d-467e), para a qual devem ser instituidas recompensas e punições (467e-469b) e na qual se fará uma distinção clara entre gregos (que não se deverá reduzir à escravidão) e não-gregos (469b-471c)
    • Transição: o Estado descrito até o presente — que é incontestavelmente justo — é realizável? Não o será a não ser quando a terceira condição será realizada (471c-473c)
  • Terceira condição: o filósofo Rei (V, 473c até o fim de República VII)
    • Dito de outra forma (473c-474c): o Estado justo só realizável se os filósofos se tornam governantes ou se os governantes se tornam filósofos
    • O que é um filósofo? (V, 474d - VI, 488a)
      • Primeira definição: um "apaixonado da sabedoria" (ou "amigo do saber" philo  -sophia)
        • Objeção: esta definição confunde o filósofo e o curioso ( o amador de espetáculos)
      • Segunda definição: o filósofo é aquele que só ama o espetáculo da verdade (475e-487a)
        • É preciso distinguir por um lado as Formas reais (eide) — por exemplo o justo e o injusto, o belo e o feio — e suas aparências múltiplas; por outro lado, o conhecimento das realidades existentes e a opinião (intermediário entre conhecimento e ignorância) que se tem sobre as aparências (intermediária entre ser e não-ser) (476a-477b)
        • O conhecimento é infalível, a opinião, a opinião pode ser verdadeira ou falsa (477c-478d)
        • As Formas e aquilo que é: o conhecimento porta sobre objetos únicos e imutáveis (sempre F), a opinião sobre objetos múltiplos e mutáveis, as vezes F as vezes não-F (478e-480a)

[1V. Goldschmidt, que divide a obra platônica, sob o ponto de vista estrutural, em diálogos aporéticos e diálogos acabados, considera característica destes últimos o que denomina «détour essentiel» e especifica (Les Dialogues de Platon, p. 163): «Estes diálogos apresentam «alongamentos» cujo acesso nos fica vedado, se os considerarmos como digressões. Cada diálogo propõe-se tratar um assunto, do qual o desvio não se afasta, se não para o delimitar melhor». Também P. Shorey, What Plato Said, p. 225, considera esses passos como «a pedra angular» da construção completa.

[2No Canto XI da Odisseia, a narrativa dos errores de Ulisses perante a corte dos reis dos Peaces, principiada no Canto IX, é interrompida, porque, observa o herói, não é possível contar tudo e são horas de descansar (328-332). Mas Alcínoo pede-lhe que a continue (362-376), o que ele faz, até a deixar completa no final do Canto XII. (Pomos de parte, naturalmente, as múltiplas e justificadas dúvidas levantadas pela crítica homérica quanto às interpolações deste Canto XI, pois são irrelevantes para a época de Platão). Por outro lado, o «segundo prólogo» nas tragédias é uma prática conhecida dos leitores de Eurípides.

[3A bibliografia sobre a posição dos historiadores e sociólogos modernos quanto ao filósofo-rei (philosophos-basileus) pode ver-se em P. Friedländer, Plato, 3, pp. 482-483, n. 41.

[4Em grego, a oposição dos dois conceitos é mais clara, pois se exprimem ambos por compostos, cujo primeiro elemento é comum (philo-). Não é demais acentuar a importância desta definição de filósofo, tanto mais que há boas razões para crer que o composto não ascende a Pitágoras, como uma tradição numerosa, mas tardia, fazia crer até há pouco tempo, mas que se originou no ensino da Academia. Sobre este assunto, veja-se a n. 26 ao Livro V, infra, e o que escrevemos em Estudos de História da Cultura Clássica, P, p. 187 e bibliografia citada na n. 8 da p. 185. [Na 8.a ed., 1998. pp. 245-247 e bibliografia citada na nota 8 da p. 212.]
Note-se que o filósofo que aqui se define não é, como diz E. Havelock, Preface to Plato, p. 281, «um membro de uma escola de pensamento entre outras escolas, equipado com doutrinas expressas em fórmulas convenientemente sistematizadas», mas, «no fundo, um homem com capacidade para o abstrato» (ibidem, p. 282), ou melhor ainda, na expressão de J. E. Raven (Plato’s Thought in the Making, p. 128), «nada menos do que o homem perfeito, que une na sua pessoa todas as virtudes humanas que possam conceber-se».