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Giuseppe Lumia: a filosofia da existência - Kierkegaard

segunda-feira 4 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

«Um dia, não somente os meus escritos, mas a minha própria vida serão atentamente estudados», assim escrevia Kierkegaard   em uma página do seu diário. Esse dia tardou quase um século a chegar. Só entre as duas guerras amadureceria aquela «Kierkegaard-Renaissance», que, iniciada na Alemanha, deveria, pouco tempo passado, imprimir grande parte do pensamento ocidental. Kierkegaard foi, no seu tempo, um desconhecido. A sua fama não ultrapassou, parece, as fronteiras da pequena Dinamarca. O horizonte cultural europeu era então dominado pelo astro de Hegel, ponto de chegada de uma grande tradição filosófica. Com Hegel a razão celebrava o seu triunfo, anexando ao seu domínio, completamente, todo o real. Nunca o homem havia concebido um tão ambicioso projeto. Mas era um triunfo não isento de oposições. Herbart, contra a dialética dos opositores, reivindicava a validade do velho princípio de não contradição, recordando como o que é contraditório, ainda que real, não é possível; Schopenhauer  , à ideia hegeliana de pura e incorrompida racionalidade, opunha, como fundamento último do real, uma vontade turvada e obscura; e Marx  , denunciando a pretensão de Hegel de «fazer caminhar o mundo sobre a cabeça e não sobre os pés», proclamava a importância que as necessidades materiais e as estruturas econômicas têm na orientação do caminho da história. Mas quem atacou o hegelismo no que ele tinha de essencial foi Kierkegaard, que reagiu à pretensão de reduzir inteiramente a realidade concreta do Indivíduo, na sua singularidade, à unidade transcendental da ideia.

O conceito de singularidade ocupa um lugar central no pensamento de Kierkegaard. Aquele não é, recorda ele, uma sua descoberta tardia, mas antes a proposição da qual tomou os pontos de partida. Kierkegaard conhece a importância de uma tal descoberta, à qual sente tão ligado o seu nome que manifestou o desejo de que sobre a sua campa se escrevesse simplesmente: «Aquele singular». «Singular, escreve, é a categoria através da qual... devem passar... o tempo, a história, a humanidade. «À categoria do indivíduo, naquele aspecto de singularidade, está incondicionalmente ligado o significado ético que eu tenha para mim» e a própria verdade «é então somente uma verdade, se é uma verdade para mim». Mas a singularidade é uma conquista. A maior parte dos homens são somente eus por assim dizer refreados em si mesmos ; aquela possibilidade que lhes tenha sido dada pela natureza de purificar-se em um eu, acaba, para eles, depressa embotada e deformada em uma terceira pessoa.Depende de nós, portanto, o elevarmo-nos à singularidade ou dissiparmo-nos no anônimo ou no impessoal. Kierkegaard apresenta esta alternativa como um aut-aut que impõe a necessidade de uma escolha.

Nos dois volumes de Aut-Aut, Kierkegaard traça dois planos de existência: o plano estético e o plano ético. A vida estética é toda ela debruçada para o mundo, dissipado na procura do gozo imediato. D. João, o grande sedutor, que salta de uma experiência para outra sem comprometer-se em nenhuma, repudiando a assunção de qualquer responsabilidade, é um símbolo dela. Mas tal forma de vida, cara a um certo romanticismo estetizante, não pode ser, para Kierkegaard, uma existência autêntica, D. João corre de uma aventura para outra mais insatisfeito do que nunca, e termina por afundar-se no aborrecimento quando se lhe torna manifesto o ilusório do seu próprio prazer.

O plano estético da existência alterna com o plano ético, ao qual não se passa, segundo Kierkegaard, através de uma mediação lógica, mas por meio de uma escolha. A vida ética é procura de qualquer coisa de estável, de consistente, qualquer coisa que merece ser «repetida», é a aceitação das próprias responsabilidades, é o empenho na escolha feita. O eu não se dispersa no vão prosseguimento de ilusórias quimeras, mas recolhe-se em torno de um motivo central que confere à vida unidade e coerência. Este tipo de existência tem o seu símbolo no marido fiel que recusa as aventuras fúteis e prende a sua vida a um sólido e seguro afeto familiar.

A análise da vida ética é feita por Kierkegaard no segundo volume de Aut-Aut sob a forma de uma carta que o assessor Guilherme escreve ao autor dos ensaios contidos no primeiro volume, no qual se havia descrito o ideal do esteta. Battaglia e Paci fazem notar que a ética do assessor Guilherme é muito semelhante à hegeliana. Ali se encontra afirmada a positividade das relações sociais, ali se proclama a necessidade do matrimônio, se exalta a lei do trabalho. «O eu não é somente um eu pessoal, mas um eu social e civil... Da vida pessoal ele passa à civil, e desta à pessoal. A vida pessoal, como tal, é um isolamento e é, portanto, imperfeita, mas quando através da vida civil o homem volta à sua personalidade, a vida pessoal revela-se sob uma imagem mais alta». A vida social, portanto, traduz-se em um enriquecimento da personalidade. Daqui o valor da amizade fundada, não tanto sobre uma ocasional simpatia, mas sim sobre uma comum concepção positiva da vida; e do matrimônio, considerado, não já como o encontro de duas criaturas excepcionais, mas como substância ética que todo o par é capaz de realizar. Daqui, ainda o alto significado moral do trabalho, que liberta o homem da servidão da natureza e funda a sua autêntica dignidade. «É belo — escreve Kierkegaard em uma página famosa — ver como os lírios dos campos, que não fiam e não tecem, estão mais esplendorosamente vestidos do que Salomão em toda a sua pompa; é belo ver as aves encontrar sem dificuldade o seu alimento; é belo ver Adão e Eva no paraíso, onde podiam ter tudo o que queriam; mas é mais belo ainda ver um homem conquistar com o seu trabalho aquilo de que necessita... É uma expressão da perfeição humana saber o homem trabalhar; e é uma expressão ainda mais alta que ele deva trabalhar». O valor da vida social e dos institutos fundamentais nos quais ela se articula parece, assim, ser plenamente reconhecido por Kierkegaard, não sendo menos significativo que ele escolha, como seu intérprete, um personagem qualificado para a função social que absolve, ou seja, um assessor de tribunal, um tutor da lei.

Mas nem na vida ética se realiza para Kierkegaard a existência autêntica. O mundo do assessor Guilherme revela-se-lhe, no decorrer do tempo, como o mundo do genérico e do nivelado, no qual tudo que de original exista na personalidade de cada um se perde na mecanicidade da repetição — e ele, ao fim, repudia-o. O seu juízo sobre a vida social subverte-se. «A situação geral da vida pública — escreve — não é mais do que uma absoluta falta de consciência». A sociedade aparece-lhe «como um conjunto de criaturas animais que se reportam ao rebanho»; nela não é possível um diálogo que não se reduza ao nível da tagarelice. A sociedade mortifica a originalidade do indivíduo; para ela nada mais importa senão que cada um de nós seja «como os outros». Ter a mesma religião dos outros é seguir a verdadeira religião; viver tão bem como os outros torna-se a fórmula da verdadeira felicidade. Na multidão a nossa personalidade dispersa-se, absorvida pelo anônimo. Importa, pois, sair da multidão para reconquistar a nossa singularidade. É esta, portanto, para Kierkegaard a última alternativa, a decisiva. Somente fechando-nos em nós mesmos, emergindo na nossa unicidade da multidão dos muitos, destacando-nos com a nossa perfeição da infinidade do ser, nós poderemos recuperar a nossa singularidade, poderemos existir autenticamente — pois que o «ex-sistere» significa precisamente isto: «emergir» da multidão, emergir do mar do ser.

Na existência realiza-se a nossa liberdade, mas a liberdade é angústia. A angústia, sentimento revelador, para Kierkegaard, de uma existência autêntica, é a «possibilidade da liberdade», é a vertigem que nos dá o conhecimento de que depende de nós escolher entre o céu e a terra, entre Deus e o nada. Más da angústia, pelo próprio caráter paradoxal da existência, nasce a fé; do sentido da culpa que está na presunção do homem de contrapor-se a Deus como existente, nasce a certeza da redenção por obra da graça. O símbolo da fé é Abraão, que obedece à ordem paradoxal de Deus para matar o próprio filho, e que o vê por isso restituído por Deus. Se soubermos abandonar-nos a Deus, Deus nos restituirá a nós mesmos, regenerados pela sua graça.