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Flusser (D:11-14) – a dúvida da dúvida
sábado 6 de novembro de 2021
A dúvida da dúvida é um estado de espírito fugaz. Embora possa ser experimentado, não pode ser mantido. Ele é sua própria negação. Vibra, indeciso, entre o extremo: “Tudo pode ser duvidado, inclusive a dúvida” e o extremo “Nada pode ser autenticamente duvidado”. Com o fito de superar o absurdo da dúvida, leva esse absurdo ao quadrado. Oscilando, como oscila, entre o ceticismo radical (do qual duvida) e um positivismo ingênuo radicalíssimo (do qual igualmente duvida), não concede ao espírito um ponto de apoio para fixar-se. Kant afirmava que o ceticismo é um lugar de descanso para a razão, embora não seja uma moradia. O mesmo pode ser afirmado quanto ao positivismo ingênuo. A dúvida da dúvida impede esse próprio descanso. O espírito tomado por essa quinta-essência da dúvida está, em sua indecisão fundamental, numa situação de vaivém que a análise de Sísifo feita por Camus ilustra apenas vagamente. O Sísifo de Camus é frustrado, em sua correria absurda, por aquilo dentro do qual corre. Daí o problema básico camusiano: “Por que não me mato?”. O espírito tomado pela dúvida da dúvida é frustrado por [12] si mesmo. O suicídio não resolve a sua situação, já que não duvida suficientemente da dubiedade da vida eterna. Camus nutre ainda a fé na dúvida, embora essa fé periclite nele.
“Penso, portanto sou.” Penso: sou uma corrente de pensamentos. Um pensamento segue a outro, portanto sou. Um pensamento segue a outro por quê? Porque o primeiro pensamento não basta a si mesmo, porque exige outro pensamento. Exige outro para certificar-se de si mesmo. Um pensamento segue outro porque o segundo duvida do primeiro, e porque o primeiro duvida de si mesmo. Um pensamento segue o outro pelo caminho da dúvida. Sou uma corrente de pensamentos que duvidam. Duvido. Duvido, portanto sou. Duvido que duvido, portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portanto duvido que sou. Duvido que duvido, portanto sou independentemente de qualquer duvidar. Assim se afigura, aproximadamente, o último passo da dúvida cartesiana. Estamos num beco sem saída. Estamos, com efeito, no beco que os antigos reservaram a Sísifo.
A mesma situação pode ser caracterizada por outra corrente de pensamentos: Por que duvido? Porque sou. Duvido, portanto, que sou. Portanto duvido que duvido. É o mesmo beco visto de outro ângulo.
Este o lado teórico da dúvida radical. Tão teórico, com efeito, que até bem pouco tempo tem sido [13] desprezado com razão como um jogo fútil de palavras. Tratava-se de um argumento pensável, mas não existencialmente vivível (erlebbar). Era possível duvidar teoricamente da afirmativa “sou”, e era possível duvidar teoricamente da afirmativa “duvido que sou”, mas essas dúvidas não passavam de exercícios intelectuais intraduzíveis para o nível da vivência. Os poucos indivíduos que experimentaram vivencialmente a dúvida da dúvida, que autenticamente duvidaram das afirmativas “sou” e “duvido que sou” foram considerados loucos. A situação atual é diferente. A dúvida da dúvida se derrama, a partir do intelecto, na direção de todas as demais camadas da mente e ameaça solapar os últimos pontos de apoio do senso de realidade. É verdade que “senso de realidade” é uma expressão ambígua. Pode significar simplesmente “fé”, pode significar “sanidade mental”, e pode significar “capacidade de escolha”. Entretanto o presente contexto prova que os três significados são fundamentalmente idênticos. A dúvida da dúvida ameaça destruir os últimos vestígios da fé, da sanidade e da liberdade, porque ameaça tornar o conceito “realidade” um conceito vazio, isto é, não vivível.
O esvaziamento do conceito “realidade” acompanha o progresso da dúvida e é, portanto, um processo histórico, se visto coletivamente, e um processo psicológico, se visto individualmente. Trata-se de uma intelectualização progressiva. O intelecto, isto é, aquilo que pensa, portanto aquilo [14] que duvida, invade as demais regiões mentais para articulá-las, e as torna, por isso mesmo, duvidosas. O intelecto desautentica todas as demais regiões mentais, inclusive aquela região dos sentidos que chamamos, via de regra, de “realidade material”. A dúvida da dúvida é a intelectualização do próprio intelecto. Com ela o intelecto reflui sobre si mesmo. Torna-se duvidoso para si mesmo, desautentica-se a si mesmo. A dúvida da dúvida é o suicídio do intelecto. A dúvida cartesiana, tal qual foi praticada durante a Idade Moderna, portanto a dúvida incompleta, a dúvida limitada ao não intelecto, acompanhada da fé no intelecto, produziu uma civilização e uma mentalidade para a qual a realidade encontrou refúgio dentro do intelecto. Trata-se de uma civilização e de uma mentalidade “idealista”. A dúvida completa, a dúvida da dúvida, a intelectualização do intelecto, destrói esse refúgio e esvazia o conceito “realidade”. As frases aparentemente contraditórias, entre as quais a dúvida da dúvida oscila — a saber: “Tudo pode ser duvidado, inclusive a dúvida” e “Nada pode ser autenticamente duvidado” —, se resolvem, nesse estágio do desenvolvimento intelectual, na frase: “Tudo é nada”. O idealismo radical, a dúvida cartesiana radical, a intelectualização completa, desembocam no niilismo.
Ver online : Vilém Flusser