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Ferreira da Silva (2009:51-53) – Diagnosis

segunda-feira 12 de fevereiro de 2024

  

A ciência sempre se revestiu de uma serena atmosfera de insenção e de imparcialidade relativamente ao objeto de seu estudo. Dizia ela não pretender mais do que auscultar a linguagem forte e sincera das coisas, captando a sua confissão mais íntima. Apesar dessas demonstrações de equilíbrio e de objetividade, há muito tempo que a reflexão filosófica sobre os fundamentos da ciência revelou quão falsa é essa sua pretensão e quanto de imposição, escolha e elaboração existe no método da ciência. A ciência não aceita tudo, mas unicamente o que lhe convém: é uma construção e não um retrato fiel. Essas ideias já foram exaustivamente discutidas e divulgadas para que tivéssemos que voltar a elas. O que tencionamos entretanto estabelecer aqui é o fato, nem sempre advertido, de que no conhecimento científico, além dos métodos e recursos mais aparentes, além do afã diurno do saber, existe um elemento oculto que norteia todo o impulso explicativo. Esse elemento oculto é justamente a convicção fundamental, o pressentimento ou anelo último que regula todos os passos e trâmites da investigação. Como diz Fritz Medicus: “Cada hipótese pressupõe a legitimidade de seu fim de conhecimento (Erkenntnisziel)”. Esse pressuposto fundamental antecede qualquer hipótese ou método da ciência e consiste no sentimento imediatamente vivido de uma determinada estrutura do real. Desse ponto de vista, poderíamos considerar cada disciplina científica não como um todo aberto e incondicionado, mas sim como um complexo teleológico que se desenvolveria em direções prefixadas. Não pretendemos desenvolver essa tese em toda a sua generalidade, mas unicamente precisar qual o seu sentido no que respeita às hodiernas ciências do homem.

Qual o ideal secreto e dissimulado de ciências tais como a antropologia, a etnologia, a sociologia ou a psicologia? Aproximar-se-iam elas de seu objeto sem nenhuma atitude, esquema ou imagem preconcebida ou pelo contrário perceberiam na realidade apenas o que antecipadamente se propunham a perceber, desfigurando os fatos? Essa questão suscita vários problemas e entre eles o problema epistemológico do conhecimento do passado, uma vez que as ciências mencionadas se referem ao já acontecido. A mutável perspectiva do presente não alteraria substancialmente a imagem do passado? A Grécia vista por um homem da Idade Média ou por um homem do século XIX apresentaria inalteravelmente a mesma figura? “É necessário — diz Eric Dardel em seu livro L’histoire Science du concret — que o historiador se liberte da coerção que as coisas mesmas exercem sobre ele. Muitos pretensos objetos não são mais do que os reflexos devolvidos de nossa própria imagem.” Assim, pois, o passado sofreria o efeito retroativo de todas as vicissitudes do presente, bem como dos projetos do futuro, mantendo-se sempre em suspenso, sempre equívoco em seu significado, esperando continuamente o veredicto da atualidade histórica.

A filosofia existencial, que mais se adentrou no estudo da estrutura temporal do homem, acentua de maneira decisiva o circuito vital entre as três dimensões do tempo. São os homens de hoje, imersos numa particular situação, circunscritos por um determinado horizonte, que contemplam o passado, vivem e fazem ciência. Ora, entre as componentes mais importantes da nossa situação cultural devemos contar essa atmosfera intelectual, esse a priori ao qual nos referimos antes e que determina o teor de todos os nossos conceitos, governando todas as nossas operações intelectuais.

Em particular nas ciências do homem, em que o homem ajuíza sobre o homem e procura compreendê-lo em todas as suas manifestações e atitudes, é que de um modo mais intenso se faz sentir o peso dessa autocompreensão antecipada de nosso modo de ser. Formamos uma certa representação de nossa natureza e estrutura e passamos logo a projetá-la através do tempo e do espaço, pensando assim adquirir um conhecimento pleno da esfera humana. Esse mítico a priori que fundamenta todas as explicações na moderna ciência do homem é o princípio que o filósofo Francisco Romero denomina a explicação hacia abajo. Segundo esse princípio interpretativo, conhecer uma coisa significa reduzi-la a outra, situada na escala dos seres em ordem ontológica inferior: o espírito se reduziria à psicologia, essa à fisiologia, a fisiologia à físico-química, e, observa Romero, se houvesse algum plano de ordem ainda inferior, os homens não titubeariam em rebater toda a realidade sobre ele. Conhecer, segundo essa linha de ideias, é materializar, transformar o fenômeno fluido e fugaz em mecanismo tangível. E não seria justamente esse o ideal secreto e dissimulado das ciências modernas do homem? Apesar de proclamarem a sua neutralidade e ausência de preconceitos em seu acesso aos fenômenos, não empunhariam elas, desde o início, a categoria fundamental do seu conhecimento?

Os pensamentos acabam sempre por revelar mais os homens que os concebem e defendem do que os objetos a que se referem. Não podemos, em geral, destacar os pensamentos da atividade pensante que os forma, de modo que cada concepção do mundo e das coisas denuncia o homem que a ratifica. Não seria essa imagem que o homem forma de si mesmo através da ciência contemporânea o contragolpe, no plano do conhecimento, dos valores materialistas que informam todo o desenvolvimento de nossa civilização?


FERREIRA DA SILVA, Vicente. Dialética das Consciências. São Paulo: É Realizações, 2009