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CEM: I.6 – beneficência

domingo 16 de fevereiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

16. Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir “certezas imediatas”; por exemplo, “eu penso”, ou, como era superstição de Schopenhauer  , “eu quero”: como se aqui o conhecimento apreendesse seu objeto puro e nu, como “coisa em si”, e nem de parte do sujeito nem de parte do objeto ocorresse uma falsificação. Repetirei mil vezes, porém, que “certeza imediata”, assim como “conhecimento absoluto” e “coisa em si”, envolve uma contradictio in adjecto [contradição no adjetivo]: [1] deveriamos nos livrar, de uma vez por todas, da sedução das palavras! Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim; o filósofo tem que dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está expresso na proposição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível — por exemplo, que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um “Eu”, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar — que eu sei o que é pensar. Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, [2] por qual medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez “sentir”, ou “querer”? Em resumo, aquele “eu penso” pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um “saber” de outra parte, [3] ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma “certeza” imediata. — No lugar dessa “certeza imediata”, em que o povo pode crer, no caso presente, o filósofo depara com uma série de questões da metafísica, verdadeiras questões de consciência para o intelecto, que são: “De onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um Eu, e até mesmo de um Eu como causa, e por fim de um Eu como causa de pensamentos?”. Quem, invocando uma espécie de intuição [4] do conhecimento, se aventura a responder de pronto essas questões metafísicas, como faz aquele que diz: “eu penso, e sei que ao menos isso é verdadeiro, real e certo” — esse encontrará hoje à sua espera, num filósofo, um sorriso e dois pontos de interrogação. “Caro senhor”, dirá talvez o filósofo, “é improvável que o senhor não esteja errado; mas por que sempre a verdade?”. —

17. Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado — a saber, que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; [5] de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: [6] mas que este “isso” seja precisamente o velho e decantado “eu” é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma “certeza imediata”. E mesmo com “isso pensa” já se foi longe demais; já o “isso” contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: “pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo —”. Mais ou menos segundo esse esquema o velho atomismo buscou, além da “força” que atua, o pedacinho de matéria onde ela fica e a partir do qual atua, o átomo; cérebros mais rigorosos aprenderam finalmente a passar sem esse “resíduo de terra”, e talvez um dia nos habituemos, e os lógicos também, a passar sem o pequeno “isso” (a que se reduziu, volatizando-se, o velho e respeitável Eu).


483. ...por meio do pensar é posto o eu; mas até agora se acreditou, como o povo, que no “eu penso” jaz algo de imediatamente certo e que esse “eu” seria a causa dada do pensar, e por analogia com ela todos nós entenderíamos as outras relações causais. Por mais que essa ficção agora possa ser costumeira e indispensável — isso, somente, não prova nada contra o seu caráter fictício: uma crença pode ser condição da vida e, apesar disso, ser falsa.

484. “É pensado: consequentemente há pensante”: a isso chega a argumentação de Cartesius [Descartes   em latim]. Mas isso significa postular nossa crença no conceito de substância já como "verdadeira a priori” — que, quando seja pensado, deva haver alguma coisa "que pense” é, porém, apenas uma formulação de nosso hábito gramatical, que põe para um fazer [Tun] um agente [Täter], Em resumo, aqui já se propõe um postulado lógico-metafísico — e não somente há constatação... Pelo caminho de Cartesius não se chega a algo absolutamente certo, mas só a um fato de uma crença muito forte.

Se se reduz a frase a "é pensado, logo há pensamentos”, então se tem uma mera tautologia: e justamente o que está em questão, a “realidade do pensamento” [“Realität des Gedankens”], não é tocado — desta forma não se pode repudiar a “aparência” do pensamento. Cartesius, porém, queria que o pensamento não tivesse apenas uma realidade [Realität] aparente, mas uma em si.


Ver online : Código de Ética Médica


[1Contradictio in adjecto·, “contradição que ocorre entre um termo e o que se lhe acrescenta (entre um substantivo e seu adjetivo, por exemplo)” (Lalande).

“Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim”: Mag das Volk glauben, dass Erkennen ein zu Ende-Kennen sei. Nietzsche produz uma surpreendente paronomasia (não recriada em nossa tradução), ao juntar a expressão zu Ende [até o fim] ao verbo kennen (aqui substantivado), transformando Ende num prefixo, sobre o modelo de erkennen.

[2“Se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito”: wenn ich nicht darüber mich schon bei mir entschieden hätte. A ligeira “agramaticalidade” da frase em português permite ecoar o jogo de pronomes do original: ich I mich / mir, “eu / me / comigo”. Há um crescendo, no qual o pronome pessoal reto se transforma em oblíquo direto e depois indireto. De modo correspondente à declinação do sujeito na frase alemã: nominativo, acusativo, dativo. E como sempre em Nietzsche, o jogo formal tem implicações semânticas: essas modulações do “eu” se dão num contexto onde é questionada a noção do “eu”, onde é constatado o declínio do sujeito. Sujeito que se entendia tradicionalmente como “o ser que conhece” — na definição do Novo dicionário brasileiro, da Melhoramentos (São Paulo, 51 ed., 1969). As demais traduções consultadas oferecem: “se eu não estivesse já com ideias assentes sobre isso”; si yo no hubiera tomado ya dentro de mí una decisión sobre esto; Se io, infatti, non mi fossi già ben deciso al riguardo; si je n’avais pas tranché la question par avance et pour mon compte; si je n’avais pas, en mon for intérieur, tranché la question; si je n’ai pas tranché ces questions pour mon compte; if I had not already decided within myself what it is; if I had not already decided that matter within myself.

[3“referência retrospectiva a um ‘saber’ de outra parte”: Rückbezie-hung auf anderweitiges ’ ‘Wissen ". As traduções portuguesa e espanhola para Rückbeziehung são algo simplistas: “comparação” e recurso; a francesa mais recente emprega mise en relation; as anteriores recorrem a verbos: recourir e reporter. As de língua inglesa são mais precisas: ambas dizem retrospective connection.

[4“intuição”: mesma palavra latina no original, Intuition.

[5Na edição de Colli e Montinari, uma nota lembra ao leitor que isso já foi dito por Schopenhauer: “Mas os pensamentos não vêm quando nós queremos, e sim quando eles querem” (em Parerga e Paralipomena, π, 54); e também por Rousseau: “Les idées viennent quand il leur plaît, non quand il me plaît" (Confissões, livro 4).

[6“Isso pensa”: Es denkt. Na gramática alemã, a partícula es tem uma infinidade de usos. Trata-se de um pronome pessoal que com frequência atua impessoalmente. Corresponde ao inglês it e ao latim id, derivando, como estes, do indo-europeu "-i".