Era urgente, para mim, o fazer ver como os “algos” presentes no mundo vital, e que vão constituir os assuntos e importâncias, positivas e negativas, com que nos temos de acomodar, eram puras presenças e compresenças sensíveis, — cores, figuras, ruídos, olores, resistências, etc, — e que essa sua presença atua sobre nós em forma de sinais, indicações, sintomas. Para tal fim, trouxe o exemplo do céu. Esse exemplo do céu, porém, pertence muito especialmente à visibilidade. E, embora o visível e a visão nos ofereçam maior clareza como exemplos, para expor a primeira defrontação com a nossa doutrina, seria grave erro supor que a visão é o “sentido” mais importante. Mesmo do ponto de vista psico-fisiológico, que é um ponto de vista subalterno, parece cada dia mais verossímil que foi o tato o sentido originário, do qual os demais se foram diferenciando. Do nosso ponto de vista mais radical, é coisa clara que a forma decisiva de nosso trato com as coisas, é efetivamente o tato. E, se isto é assim, forçosamente o tato e o contato são o fator mais peremptório na estruturação do nosso mundo.
Indiquei ainda que o tato se distingue de todos os demais sentidos ou modos de presença, porque duas coisas sempre se apresentam nele, de uma vez, e inseparáveis: o corpo que tocamos e o nosso corpo com que o tocamos. É, pois, uma relação não entre um fantasma e nós, como na pura visão, mas entre um corpo alheio e o nosso corpo. A dureza é uma presença em que se fazem presentes a um tempo algo que resiste e o nosso corpo; por exemplo, nossa mão que é resistida. Sentimos nela, pois, ao mesmo tempo, o objeto que nos oprime e o nosso músculo oprimido. Caberia por isso dizer que no contato sentimos as coisas dentro de nós, — entenda-se, — dentro do nosso corpo, e não como na visão e audição, fora de nós, ou como no sabor e no olfato as sentimos em certas porções da nossa superfície corporal: a cavidade nasal e o paladar. Advertidos disso, sem grande espavento, dávamos um grande passo: o de perceber que o contorno, o mundo patente se compõe, antes de tudo e fundamentalmente, de presenças, de coisas que são corpos. E o são porque elas se chocam com a coisa que existe mais próxima do homem: o eu que cada um é, a saber: o seu corpo. Nosso corpo faz com que sejam corpos todos os demais e com que o seja o mundo. Para o que costuma chamar-se um “espírito puro”, os corpos não existiriam, porque não poderia tropeçar com eles, sentir as suas pressões e vice-versa. Não poderia manejar as coisas, transferi-las, conformá-las, triturá-las. O “espírito puro”, portanto, não pode ter vida humana. Deslocar-se-ia pelo mundo sendo ele mesmo um fantasma. Recorde-se o conto de Wells em que se fala de uns seres somente com duas dimensões, seres que por isso não podem penetrar em nosso mundo, onde tudo tem pelo menos três dimensões, mundo, pois, que está feito de corpos. Assistem ao espetáculo das vidas humanas; veem, por exemplo, que um malvado vai assassinar uma velha adormecida, mas eles não podem intervir, não podem preveni-la e sofrem e se angustiam de seu ser fantasmal.
O homem é, pois, antes de tudo, alguém que está em um corpo e que neste sentido, — somente neste sentido, repare-se, — é apenas o seu corpo. Este simples mas irremediável fato vai decidir da estrutura concreta do nosso mundo e, com isso, da nossa vida e destino. O homem se acha, para toda a vida, recluso no seu corpo. Razão de sobra tinham os pitagóricos em brincar com o vocábulo (NT: Ortega não é um ortodoxo da terminologia linguística; mantivemos os seus usos de palavras como “vocábulo”, “fonema”, “palavra”, e, outras, na língua própria do Autor) a este propósito, — trocadilho de que usavam não para riso e festa, mas gravemente, doloridamente, dramaticamente, melancolicamente. Sabido que em grego corpo é soma e tumba, sema, repetiam soma sema, — corpo tumba, corpo-cárcere.
O corpo em que vivo infuso, recluso, faz de mim inexoravelmente um personagem espacial. Põe-me em um lugar e me exclui dos demais. Não me permite ser ubíquo. Em cada instante me prega como um prego num lugar e me desterra do resto. O resto, isto é, as demais coisas do mundo estão em outros lugares e só posso vê-las, ouvi-las e talvez tocá-las, do lugar em que estou. Chamamos o sítio em que estou: “aqui” — e o próprio fonema castelhano, por seu acento agudo e o seu fulminante cair, — em somente duas sílabas, — do a tão aberto ao tão pontiagudo, e por seu acento tão vertical, — expressa maravilhosamente essa martelada do destino que me prega como um prego. . . aqui.
Isto traz consigo automaticamente algo novo e decisivo para a estrutura do mundo. Eu posso mudar de lugar, mas qualquer que ele seja será o meu “aqui”. Pelo visto, aqui e eu, eu e aqui, somos inseparáveis por toda a vida. Ao ter o mundo, — com todas as coisas dentro, — de ser para mim d’aqui, se converte automaticamente em uma perspectiva, isto é: suas coisas estão perto ou longe d’aqui, à direita ou à esquerda d’aqui, acima ou abaixo d’aqui. Esta é a terceira lei estrutural do mundo e do homem. Não se esqueça que aquilo que chamo homem não é senão cada um, e, portanto, que estamos falando do mundo de e para cada um, — não do mundo objetivo de que nos fala a física. Não sabemos o que seja o mundo físico, nem sequer o que seja o mundo objetivo, portanto: um mundo que não é somente o de cada um, mas o comum a todos os homens. Essa terceira lei estrutural diz que o mundo é uma perspectiva. A coisa não é insignificante. Pelo menos, esta súbita aparição em nosso horizonte do “perto” e do “longe” é de não pequena gravidade. Porque eles significam distâncias, surgem então: o próximo e o distante, e, no melhor caso: o que está próximo me é odioso; e o que está distante é a mulher de que se está enamorado. Além disso, essa distância, que é a lonjura, não ó geométrica, nem é aquela da ciência física, é uma distância que, se necessito ou desejo vencer, tenho e, sobretudo, teve o homem primitivo da percorrê-la com grave gasto do seu esforço e do seu tempo. Hoje, para vencer as distâncias não se gastam essas duas coisas, mas se gasta dinheiro, cuja obtenção implica dispêndio de tempo e de esforço, — dispêndios que se medem por “horas-trabalho”.
Já veremos que outro homem tem também o seu aqui, — mas esse aqui do Outro não é o meu. Nossos “aquis” se excluem, não são interpenetráveis, são diferentes e, por isso, a perspectiva em que o mundo aparece a ele é sempre diferente da minha perspectiva. Por isso, não coincidem suficientemente os nossos mundos. Eu estou, em princípio, no meu e ele no seu. Nova causa de solidão radical. Não somente estou fora do outro homem, mas também o meu mundo está fora do dele: somos, mutuamente, dois “foras” e por isso somos radicalmente forasteiros.
Longe é o que está a considerável distância do meu aqui. Longe é o que está ali.
Entre o aqui e a distância do ali, há um termo médio, — o aí, — isto é, o que não está no meu aqui, mas sim próximo. Será o aí o lugar onde está… o próximo? O aqui, demonstrativo adverbial de lugar, procede linguisticamente de um pronome pessoal.
O fato de ser o homem corpo determina, pois, não somente que todas as coisas sejam corpos, mas que todas as coisas do mundo estejam colocadas com relação a mim. Todas as coisas, inclusive as que não são corpóreas! Porque se as há, — até agora não as encontramos em nossa análise, — terão, (já o veremos), de manifestar-se por meio de corpos. As imagens de Homero não são corpóreas e não existiriam, não seriam para nós, se não tivessem sido escritas em pergaminhos. Ao serem, imediata ou mediatamente, corpos, as coisas e ao estarem colocadas com relação ao mim, perto ou longe, ò direita, ou à esquerda, acima ou abaixo d’aqui, — d’aqui que é o locus o lugar do meu corpo, — advém o estarem repartidas e advém que cada uma se acha em, está em ou pertence a uma região do mundo. As coisas, assim, se agrupam em regiões espaciais, pertencem a este lado ou a aquele lado do meu mundo. Há coisas, objetos ou seres humanos, por exemplo, que pertencem ao lado do meu mundo que chamo o Norte, e outras que pertencem ao lado que chamo Oriente. De tal modo é essa atribuição a determinada região, essa localização das coisas constituinte do homem, que até o cristianismo necessita situar a Deus; por assim dizer: instalá-lo em um lugar do espaço, e, por isso, qualifica a Deus atribuindo-lhe, — como algo essencial a ele, que o define e o precisa, — um local onde normalmente está, quando cotidianamente reza: “Pai nosso que estais no Céu”. Pais há muitos, mas singulariza a Deus o ser aquele que habita no alto, na região das estrelas fixas ou firmamento. E, contrapostamente, aloja o diabo no outro extremo, na região mais de baixo, inferior, a saber: o inferno. O diabo acaba assim sendo o antípoda de Deus. Também os gregos primitivos situavam na região inferior ou infernal não poucos seres e coisas. Mas, para eles, essa região inferior significava simplesmente ser a base ou peanha do mundo, em que tudo mais se apoia e se sustem. A essa região base chamavam Tártaro. Por certo, como não podiam, — mesmo dado o primitivismo de sua mentalidade, — fazer menos do que perguntar-se como, por sua vez, se sustem o tártaro, imaginavam que um animal de larguíssima e dura carapaça o sustinha. Esse animal era a tartaruga, que em italiano e em português conserva ainda o seu nome grego menos deformado. A nossa tartaruga, com efeito, não é senão o vocábulo grego tartarougos, — o que sustem o Tártaro (NT: ou o “habitante” do Tártaro, conforme J. Corominas).
Nada disso, porém, — está claro — é fenômeno autêntico ou radical. Trata-se já de interpretações imaginárias, com as quais a mente do homem reage ante as coisas do mundo e a sua primária perspectiva e localização com respeito à sua pessoa. Para tal fim, inventa coisas imaginárias, que situa em regiões imaginárias. Aludi a isso para mostrar até que ponto é constitutivo do homem o sentir-se em um mundo regionalizado, em que acha cada coisa como pertencendo a uma região. Mas não tem sentido que nos ocupemos, neste curso, daqueles locais e localizações imaginárias de um mundo que já não é o primário e real da vida, mas uma ideia ou imagem do mundo.
O haver aparecido, neste inventário que fazemos do mundo vital, esta coisa, — a mais próxima de cada um, — que é o seu corpo e, — em choque ou atrito com ele, todos os demais corpos, e a sua localização em perspectiva e regiões, — não nos deve fazer esquecer que, ao mesmo tempo, — portanto: nem antes, nem depois, mas ao mesmo tempo, — as coisas são para nós instrumentos ou estorvos para a nossa vida, o seu ser não consiste em ser cada uma por si e em si; ao contrário: elas têm somente um ser para. Torne-se clara esta noção de “ser para” como a que expressa o ser originário das coisas enquanto “coisas da vida”, assuntos e importâncias. O conceito de uma coisa nos pretende dizer o que uma coisa é, o seu ser; este ser nos é declarado ou manifestado na definição. Pois bem: recorde-se o brinquedo das crianças quando se aproximam de um adulto e, para pô-lo num aperto lhe perguntam: “Que é uma matraca?” O adulto, como não encontra imediatamente as palavras que definiriam a matraca, faz instintivamente o gesto de mover uma matraca na mão, gesto que se torna um pouco ridículo e, em consequência do que, as crianças riem. A verdade, porém, é que esse gesto é como uma charada em ação cujo sentido, — o da charada, — é efetivamente algo para dar meias voltas, portanto, para fazer algo com ela. Trata-se de um ser para. Acontece o mesmo se nos perguntam o que é uma bicicleta, antes de que respondamos com palavras, os nossos pés engendram um germe de movimento pedalante. Ora, a definição verbal que logo enunciaria formalmente o ser da matraca, da bicicleta ou do céu, da montanha, da árvore, etc, não fará mais do que exprimir com palavras aquilo que esses mesmos movimentos significam; e o seu conteúdo não seria, não é senão o de nos fazer saber algo que o homem faz ou padece com uma coisa; portanto: todo conceito é a descrição de uma cena vital [[A condição primária das coisas consiste, pois, em servir-nos poro o impedir-nos de. Certamente a metafísica nasceu, lá na Grécia, no primeiro terço do século V, como a pesquisa do ser das coisas, entendendo-se por seu ser o que elas são, — diríamos, — por sua conta é não meramente o que são para nós. É o ser em si e por si das coisas. Aquela ciência que um cartesiano, no final do século XVII, chamou ontologia, se esforça denodadamente, sua e se extenua, há vinte e cinco séculos, para encontrar esse ser das coisas. A pertinácia do esforço revela que esse ser das coisas, que se procura, não foi ainda suficientemente encontrado. Isso seria razão nada parva para suspeitar-se que elas não o têm; mas é sem dúvida, razão de sobra para suspeitar que, se o têm, ele é problemático e, por outro lado é evidente que não o ostentam. De outro modo, ser-nos-ia notório e mais que sabido. Isto me levou, faz muitos anos, à audaciosa opinião de que o ser das coisas, enquanto ser próprio delas, à porte do homem, é somente uma hipótese, como o são todas as ideias científicas. Com isso, pomos de pernas para o ar toda a filosofia, faina endiabrada da qual, por fortuna, podemos exonerar-nos neste curso, cujo tema não é a ontologia. Direi somente que, entre as muitas respostas que se deram à pergunta: “que são as coisas?”, teve o melhor sorte na História aquela que Aristóteles deu, dizendo que são substâncias, portanto, que as coisas consistem ultimamente em substancialidade. Mas é também conhecido de todos o foto de que essa resposta já deixou, há muito, de satisfazer às mentes ocidentais, e foi preciso procurar outras.]].
Aqui não nos ocupamos do que são em absoluto as coisas, supondo-se que as coisas sejam em absoluto. Limitamo-nos rigorosa e metòdicamente a descrever o que as coisas são patentemente, — portanto, não hipoteticamente, — aí, no âmbito da realidade radical primária que é a nossa vida; e achamos que, nesse âmbito, o ser das coisas não é um presumido ser em si, mas o seu evidente ser para, o seu servir-nos ou impedir-nos; então dizemos que o ser das coisas como prágmata, assuntos ou importâncias, não é a substancialidade, mas a “serviçalidade” ou servidão, que inclui a sua forma negativa, a “desserviçalidade”, o ser-nos dificuldade, estorvo, dano. Ora, se analisarmos essa serviçalidade das coisas, — fiquemos agora com a positiva para simplificar, já que com isso temos o suficiente, — se analisarmos essa sua serviçalidade, acharemos que cada coisa serve para outra que, por sua vez, serve para uma terceira, e assim sucessivamente numa cadeia de meios para, — até chegarmos a uma finalidade do homem. Por exemplo, a coisa que chamamos enxofre serve para fazer pólvora, a qual serve para carregar fuzis e canhões, os quais servem para fazer a guerra, a qual serve para… Bem: para que serve a guerra?… Mas essa cadeia serviçal ou de meios para, que termina na guerra, não é a única que parte do enxofre e de sua primeira utilização para fabricar pólvora. Porque a pólvora serve também para carregar espingardas e rifles que servem para caçar, faina muito diferente de guerrear, caça que serve para uma finalidade humana que tratei de elucidar num vagabundo prólogo posto ao livro de arte venatória escrito pelo grande caçador conde de Yebes (“Prólogo a Veinte anos de caza mayor, do Conde de Yebes” obras Completas, tomo VI), um homem que já caçou em todas as paragens e já dormiu em todas us festas da sociedade elegante; um homem, portanto, que na selva caça a marmota e no sarau a imita.
Mesmo sem querer descobrir a pólvora, — ela se vai descobrindo por si, — tal como essas duas séries de serviços articulados, que partem do enxofre e da pólvora elaborada com ele, encontramos uma terceira; esta: com a pólvora se fazem foguetes e com os foguetes se fazem, sobretudo, festas populares. As festas são uma das grandes coisas que há no mundo, com as quais e nas quais o homem se encontra.
Temos, assim, que as coisas, enquanto serviços positivos ou negativos, se articulam umas com as outras, formando arquiteturas de serviçalidade, como a guerra, a caça, a festa. Formam dentro do mundo como pequenos mundos particulares a que chamamos o mundo da guerra, o mundo da caça, etc, como há o mundo da religião, dos negócios, da arte, das letras, da ciência. Eu os chamo campos “pragmáticos”. E esta é, por enquanto, a última lei estrutural do mundo, que enuncio assim: nosso mundo, o de cada um, não é um totum revolutum; ao contrário, está organizado em campos “pragmáticos”. Cada coisa pertence a algum ou alguns desses campos, em que articula o seu ser para com o de outros e assim sucessivamente. Ora, “esses campos pragmáticos” ou “campos de assuntos e importâncias”, ao serem, de uma ou de outra maneira, imediata ou mediatamente, campos de corpos, estão localizados com maior ou menor precisão e exclusividade, isto é, estão inscritos predominantemente, ao menos, em regiões espaciais. Poderíamos, pois, em vez de campos dizer “regiões pragmáticas”, mas é melhor falarmos especialmente de “campos”, usando esse termo da física recente, que enuncia um âmbito constituído por puras relações dinâmicas. Nossa relação prática ou pragmática com as coisas, e destas conosco, mesmo sendo corpórea, ao cabo, não é material, mas dinâmica. Em nosso mundo vital não há nada material: meu corpo não é uma matéria, nem o são as coisas que se chocam com ele. Aquele e estas, — diríamos para simplificar, — são puro choque e, portanto, puro dinamismo.
O homem vive em um enorme âmbito, — o Mundo, o seu, o de cada um, — ocupado por “campos de assuntos”, mais ou menos localizados em regiões especiais. E cada coisa que nos aparece, nos aparece como pertencendo a um desses campos ou regiões. Daí o fato de que, mal a advertimos, fulminantemente há em nós como um movimento que nos faz referi-la ao campo, região ou, — digamo-lo agora, — ao lado da vida a que pertence. E como as coisas têm seu nome, — entre as coisas que encontramos no mundo estão os nomes destas mesmas coisas, — basta que eu pronuncie uma palavra para que, com ou sem palavras expressas os senhores “se digam”: isso, que se nomeou, pertence a tal ou qual lado da vida. Se eu dissesse agora “o vestido”, as mulheres que me ouvissem dirigiriam a sua mente, como uma nave dirige a sua proa, para o lado da vida que é a elegância indumentária; e se digo “plano Marshall”, todos sem necessidade de qualquer reflexão e sem se ocupar agora do assunto, automaticamente impelirão, por assim dizer, a palavra ouvida para um certo “lado” de suas vidas intitulado “política internacional”. “Impelem, por assim dizer”, — foi a minha expressão, mas agora tiro o “por assim dizer”, — impelem porque, na verdade, não se trata de uma metáfora mas de uma efetiva realidade. Com meios um pouco, — nada mais que um pouco, — refinados, de laboratório fisiológico, se pode demonstrar que, ao ouvir a palavra, em nossos músculos se produz uma minúscula contração, perceptível com aparelhos registradores, contração que inicia e que é como germe de um movimento para impelir algo, — neste caso, a palavra, — numa direção espacial determinada. Aqui há um tema interessante para a investigação dos psicólogos. Todos nós levamos em nossa imaginação um diagrama do mundo, a cujos quadrantes e regiões referimos todas as coisas, inclusive, como já disse, as que não são imediatamente corpóreas, mas, conforme se costumam chamar “as espirituais”, como ideias, sentimentos, etc. Pois bem, seria curioso precisar-se para que região desse diagrama imaginário cada indivíduo impele as palavras que ouve ou diz [[Eu tinha uma tia que, cada vez que pronunciava a palavra “demônio”, dirigia um olhar iracundo e lançava energicamente o seu queixo em direção ao centro da terra. Notava-se palmarmente que ali havia, com toda clareza e precisão, situado o inferno e nela instalado o diabo, como se o estivesse vendo. Igualmente, se se fizesse em mim essa investigação de laboratório, é quase certo que ao ouvir eu, por exemplo, “Conferência de Paris” e dirigi-lo para o lado da minha vida que é a “política internacional”, meus músculos empurrariam a palavra na direção de uma linha oblíqua, secante do horizonte, i. e. dirigida para baixo e para um lado. Isso seria uma curva pantomima, — somos, sobretudo: é o nosso corpo permanente pantomima, — do meu fato mental consistente em que detesto toda a política, em que a considero como uma coisa sempre e irremediavelmente má; ao mesmo tempo, porém, inevitável e constituinte de toda sociedade. Permito-me o luxo de enunciar esse fato que se dá em mim, sem mais explicações nem fundamentos porque, noutro lugar, espero fazer ver, com perfeita diafaneidade e evidência, o que é a política, e porque no universo há uma coisa tão estranha, tão insatisfatória e, não obstante, tão imprescindível. Veremos, então, como o porque toda política, mesmo a melhor, é forçosamente má; ao menos, no sentido em que são maus, por muito bons que sejam, um aparelho ortopédico ou um tratamento cirúrgico.]].
O mundo de nossa vida e, portanto, nossa vida nele, estão constituídos por uma orientação de lados diversos que chamei “campos pragmáticos”. E aqui se oferece momentânea ocasião para que vejamos, num ressalto e, graças a isso, com clareza, — embora não me vá deter morosamente em sua análise, — o que é o gênio do poeta; ainda mais; a própria poesia.
Há muito tempo sustento nos meus escritos que a poesia é um modo de conhecimento ou, por outras palavras, que o dito pela poesia é a verdade. A diferença entre a verdade poética e a científica, tem origem em caracteres secundários; secundários em comparação com o fato de que tanto uma como outra dizem coisas que são verdade, isto é, coisas que efetiva e realmente existem no mundo de que falam. Proust, o grande romancista, não tinha a menor ideia científica de que a vida humana e o seu mundo estivessem realmente estruturados numa articulação de lados. Não obstante, nos primeiros tomos do seu fluvial romance nos fala de um adolescente cuja sensibilidade estava prematuramente desenvolvida, adolescente que é ele próprio. O rapaz vive durante o verão no Hotel Palace de uma cidadezinha normanda, lugar de veraneio elegante. A família o leva a passear todas as tardes; umas vezes tomam a direção da esquerda, outras vezes a da direita. Na direção da esquerda, está a casa de um senhor Swann, mais ou menos amigo da família, um homem de origem judaica, sem estirpe ilustre, mas que tem a seu favor o raro talento da elegância, a que se acrescentam alguns retorcidos vícios. Na direção da direita está o palácio estivai dos Guermantes, uma das famílias francesas de mais antiga nobreza. Para um adolescente, cuja hipersensibilidade alerta registra as menores diferenças e elabora, numa vegetativa amplificação de fantasia, todo dado real que se lhe atira, estes dois nomes: Swann e Guermantes, representam dois mundos, isto é, em nossa terminologia, dois campos pragmáticos distintos, pois o fato de que Swann, mesmo sendo judeu, mesmo nascido sem pergaminhos, filtre uma das dimensões da sua vida no mundo Guermantes, não faz senão acentuar mais a diferença entre ambos os mundos. Swann e Guermantes são, pois, como dois pontos cardeais contrapostos, como dois quadrantes do grande mundo unitário do rapaz, dos quais sopram sobre a alma deste, em rajadas descontínuas, os estímulos, incitamentos, advertências, entusiasmos, tristezas sobremodo diferentes. E eis que, genialmente, nos intitula Proust dois de seus tomos: um, Du côté de chez Swann, — “Pelo lado de Swann”, — e o outro, Do lado dos Guermantes. Ora, com o que expusemos na lição anterior e com o que já se deu desta, digam-me se esses títulos de intuição poética não são dois termos técnicos na teoria científica da vida! Bem faria cada um em precisar para si quais são os lados da sua vida de onde sopram sobre ele, com mais insistência e veemência e abundância, os ventos do seu viver!
Com isso podemos dar por terminado o estudo da estrutura formal que possui o mundo em que cada um vive. Note-se que esse mundo, já quanto à sua estrutura, muito pouco se parece com o mundo físico; quero dizer, com o mundo que a física nos revela. Conste, porém, que não vivemos nesse mundo físico, simplesmente o pensamos, o imaginamos. Porque, se disse antes que, há muitos anos, sustento que a poesia é uma forma do conhecimento, acrescento agora que, desde aqueles mesmos anos, procuro fazer com que os demais percebam que a física é uma forma de poesia, isto é, de fantasia, e até é preciso acrescentar, de uma fantasia mudadiça que hoje imagina um mundo físico diferente do de ontem e amanhã imaginará outro diferente do de hoje. Onde efetivamente vive cada um é nesse mundo pragmático, imenso organismo de campos de assuntos, de regiões e de lados e, no essencial, invariável desde o homem primigênio.
Já é hora de, prescindindo dessa estruturação formal do mundo, darmos uma olhada ao seu conteúdo, para as coisas que nele aparecem, assomam, brotam, surgem, em suma, existem, afim de descobrirmos entre elas algumas que possamos, que devamos chamar sociais e sociedade. Aqui nosso tema nos obriga a não nos demorarmos no caminho, apesar das interessantes questões que nos vão saltar à vista. Podemos, velozmente e sem pouso, atravessar num voo quanto evidentemente não possa pretender ser social ou que, pelo menos, não o seja com evidência e saturadamente. Com efeito, as coisas que há no mundo se acham, por muito antiga tradição, classificadas em minerais, vegetais, animais e humanas. Pergunte-se cada um se o seu próprio comportamento diante de uma pedra pode qualificar-se de social. Evidentemente, não. A evidência se impõe se, indo ao outro extremo daquela série, o comparamos com o nosso comportamento diante de um homem. A diferença é palmar. Toda ação do homem, adulto para algo ou sobre algo conta, — é claro, — de antemão, com suas experiências anteriores referentes a esse algo, de sorte que a sua ação parte das qualidades que, segundo o seu saber, essa coisa possui. Sabe, em nosso exemplo, que a pedra é muito dura, mas não tanto quanto o ferro, e se o que se propõe é quebrá-la em fragmentos para alguma finalidade sua, sabe que basta batê-la com um martelo. Tem, pois, diante de si, para orientar a sua ação, estes dois atributos da pedra: que é dura, mas frágil, fragmentável sem extrema dificuldade. Acrescentem os senhores as demais qualidades que, em nosso trato com a pedra, aprendemos. Entre elas, há uma, decisiva para o nosso tema. Sabemos que a pedra não se inteira da nossa ação sobre ela e que o seu comportamento, enquanto a martelamos, se reduz a quebrar-se, fracionar-se, porque isso é a sua mecânica e inexorável condição. À nossa ação sobre ela não corresponde, por sua parte, nenhuma ação sobre ou para nós. Nela não há em absoluto capacidade de qualquer ação. Em rigor tampouco devemos chamar ao que lhe acontece em relação a nós: paixão, — no sentido de padecer. A pedra não faz nem padece, mas nela se produzem mecanicamente certos efeitos. Portanto, em nossa relação com a pedra, nossa ação tem uma direção única que vai de nós à pedra e ali, sem mais nada, termina. O mesmo acontece, pelo menos macroscopicamente, com a planta, sem outra diferença senão a existente entre os atributos de um vegetal e os de um mineral. Mas já em nosso trato com o animal a relação se modifica. Se quisermos fazer algo com um animal, intervém em nosso projeto de ação a convicção de que eu existo para ele e que ele espera uma ação minha sobre ele, se prepara para ela e prepara a sua reação a essa minha esperada ação. Não há, portanto, dúvida sobre que, em minha relação com o animal, o ato do meu comportamento para ele não é, como era diante da pedra, unilateral; ao contrário, o meu ato, antes de ser executado, quando o estou projetando, já conta com o ato provável de reação por parte do animal, de maneira que o meu ato, mesmo em estado de puro projeto, vai ao animal, mas volta a mim em sentido inverso, antecipando a réplica do animal. Faz, pois, uma viagem de ida e volta, viagem que não é, senão, a representação, por adiantamento, da relação real que entre ambos, — o animal e eu, — vai realizar-se. Quando me aproximo do cavalo para arreá-lo, conto, desde logo, com o seu possível coice, e, quando me aproximo do mastim do rebanho, conto com a sua possível mordida e tomo, num caso e no outro, as minhas precauções.
Observe-se o novo tipo de realidade que, diante daquilo que não são pedras e vegetais, aparece em nosso mundo quando encontramos o animal. Se, para descrever a relação real, diante da pedra, dizemos: a pedra e eu somos dois, falamos inadequadamente. Porque nesse plural “somos”, que neste caso é um dual ou plural somente de dois, unimos e igualamos no ser a pedra e o homem. Ora, a pedra é pedra para mim, mas eu não sou para ela, para a pedra, em absoluto. Não cabe, pois, comunidade, — a comunidade que esse plural dual expressa, — entre mim e ela. Mas no caso do animal a realidade varia. Não só o animal é para mim animal e tal animal, — observem que o meu comportamento varia segundo seja a espécie, não me comporto da mesma forma diante de um pintassilgo e diante de um touro do plantei de Miúra, — não somente o animal o é para mim, mas também eu o sou para ele, a saber, sou para ele outro animal.
A conduta do animal conosco poderia resumir-se e simbolizar-se dizendo-se que o animal nos está chamando a nós, constantemente, de animais. Não parece duvidoso que o que acontece ao asno, quando o arrieiro lhe sova o lombo a pauladas, é algo que seria mister exprimir assim: que estúpido é este animal que, no mundo da fábula, onde até nós os asnos falamos, chamamos de homem! Que diferença com o outro animal que entra na cavalariça e me lambe e ao qual chamo de cachorro!
O que não parece questionável é que dizer “o animal e eu somos” tem já alguma dose de sentido, que faltava em absoluto em “a pedra e eu somos”. Somos o animal e eu, já que mutuamente somos um para o outro, já que me é notório que à minha ação sobre o animal este vai responder-me. Esta relação é, pois, uma realidade que necessitamos denominar “mutualidade ou reciprocidade”. O animal me aparece, diversamente da pedra e da planta, como uma coisa que me responde e, neste sentido, como algo que não só existe para mim mas que, ao existir eu também para ele, co-existe comigo. A pedra existe, mas não coexiste. O co-existir é um entrelaçar as existências, um entre ou inter-existirem dois seres, não simplesmente “estar aí” sem nada a ver um com o outro.
Ora, não é isto o que primeiramente chamamos “trato-social”? O vocábulo social não assinala de início uma realidade consistente em que o homem se comporta diante de outros seres, os quais, por sua vez, se comportam com relação a ele, — portanto, a ações em que, de um modo ou de outro, intervém a reciprocidade em que não só eu sou o centro emissor de atos para outro ser, mas esse outro ser é também centro emissor de atos para mim e, portanto, na minha ação tem de já estar antecipada a sua, conta-se com a sua, porque nela se conta também com a minha; — enfim, para dizer o mesmo noutra expressão, que os dois atuantes se respondem mutuamente, isto é, se co-rrespondem? O animal “responde” com os seus atos à minha presença, — me vê, me procura ou me foge, me quer ou me teme, me lambe a mão ou me morde, me obedece ou me acomete; em suma, me reciprocar a seu modo. Esse modo, não obstante, é, conforme a experiência me patenteou, muito limitado. Ao cabo, é somente a um reduzido repertório de atos meus aos quais o animal co-rresponde e isso com um repertório também muito exíguo de atos seus. Mais ainda: posso estabelecer uma escala que mede em cada espécie a amplitude desse repertório.
Essa escala, portanto, tabulará também a quantidade de co-existência de que posso usufruir com o animal. Ela nos manifestaria até que ponto, mesmo no melhor caso, essa co-existência é escassa. Posso adestrar ou ensinar o animal e então criar-me a ilusão de que ele co-rresponde a maior número de gestos e outros atos meus, mas advirto logo que no adestramento ele não responde a partir de si mesmo, do seu centro espontâneo, mas se torna puro mecanismo, é uma máquina onde pus alguns discos, como o são as respostas de vitrola que o papagaio real roda, sempre as mesmas, conforme o programa. Ao contrário – para co-existir mais com o animal, a única coisa que posso fazer é reduzir a minha própria vida, elementarizá-la, fazer-me tolo ou estúpido até ser quase outro animal, como sucede a essas senhoras de idade que vivem anos e anos sozinhas com um cachorro, ocupadas exclusivamente com ele, acompanhadas unicamente por ele e que acabam por se parecer até fisicamente ao seu cão. Para co-existir com o animal é preciso fazer o que Pascal nos propõe que façamos diante de Deus: il faut s’abêtir.
Repito a minha pergunta: Podemos reconhecer na relação do homem com o animal um fato social? Não podemos decidir sobre isso, assim, sem mais nada. De início nos retinha, para responder afirmativamente, a limitação da co-existência e, além disso, um caráter confuso, impreciso, ambíguo, que percebemos no modo de ser da fera, por muito esperta que esta seja. A verdade é que, não só nesta, como em todas as ordens, o animal nos perturba. Não sabemos bem como tratá-lo, porque não vemos clara a sua condição. Daí, em nossa conduta com ele, o passarmos a vida oscilando entre tratá-lo humanamente ou, ao contrário, vegetalmente e até mineralmente. Compreendem-se muito bem as variações de atitude diante do bruto, pelas quais o homem passou ao longo da história: desde ver nele quase um Deus, como os primitivos e os egípcios, até pensar, como Descartes e seu discípulo, o doce e místico Malebranche, que o animal é uma máquina, um pedregulho algo mais complicado.
Só podemos convercer-nos de que a nossa relação com ele é ou não social se a compararmos com fatos que sejam inquestionavelmente, saturadamente sociais.
É o caso plenário, diáfano, evidente, que nos permite entender os casos confusos, débeis, ambíguos.
Essas considerações demarcaram o montão de fenômenos únicos, entre os quais pode aparecer de modo palmar e irrecusável algo que seja social. Do conteúdo do mundo só nos ficam por analisar as coisas a que chamamos “homens”.
Como aparecem no meu mundo vital esses seres a que chamo “os outros homens?” Basta enunciar a pergunta para que todos sintamos uma mudança em nossa tempera. Sentiamo-nos até agora em abandono, placidamente. Neste instante, diante do aviso de que em nosso horizonte reflexivo, o horizonte de temas que estas lições desenvolvem, se vão apresentar “os outros homens”, sentimos, não sabemos bem porquê, uma ligeira inquietação e como se uma fina onda elétrica nos houvesse percorrido a medula. A coisa será tão absurda quanto se quiser, mas é. Vimos de um mundo vital em que até agora só havia pedras, plantas e animais: era um paraíso, era o que chamamos a natureza, o campo. Embora do mundo vital que analisamos tenhamos dito cem vezes que é o de cada um, o concreto da minha vida, não falamos dele senão abstratamente. Não pretendi descrever o mundo singular de cada um, tão pouco o de alguém, nem sequer o meu. Do super-concreto estamos falando abstratamente e em geral. Este é o paradoxo constitutivo da teoria da vida. Esta vida é a de cada um, mas a sua teoria é como toda teoria, geral. Dá os quadros vazios e abstratos em que cada qual pode alojar a sua própria autobiografia. Pois bem, o que agora sublinho é que, mesmo falando, como o fazemos, em abstrato, basta anunciar que vão aparecer em nossa análise os outros homens para que em todos se produza um alerta, um “quem vem lá?” Já não vivemos em abandono, mas em guarda e com cautela. Até esse ponto são, pelo visto, temíveis os outros homens!
Antes, no mundo como mundo mineral, vegetal, animal, nada nos preocupava. É a tranquilidade que sentimos no campo.
Porque a sentimos? Vamos vê-lo, mas com duas palavras Nietzsche já disse o essencial: “Sentimo-nos tão tranquilos e tão a vontade na pura natureza, porque esta não tem opinião sobre nos .
Aqui está a origem super-suspicaz da nossa inquietude. Vamos falar de seres, — os homens, — que se caracterizam porque sabemos que têm uma opinião sobre nós. Por isso nos pusemos em guarda, de alma alerta: no doce horizonte do mundo paradisíaco — assoma um perigo: o outro homem. E, — não há dúvida! — mais ou menos, e pouco a pouco, isto se vai animar. E vamos todos perturbar-nos um pouco.
Efetivamente, no contorno que o meu horizonte cinge, aparece o OUTRO. O “outro” é o outro homem. Com presença sensível, tenho dele somente um corpo, um corpo que ostenta sua forma peculiar, que se move, que maneja coisas diante da minha vista, isto é, que se comporta externa ou visivelmente, o que os psicólogos americanos chamam “behavior”. Mas o surpreendente, o estranho e o ultimamente misterioso é que, sendo-nos presentes apenas uma figura e uns movimentos corporais, vemos nisso, ou através disso, algo por essência invisível, algo que é pura intimidade, algo que cada um somente por sisi mesmo conhece diretamente: o seu pensar, o seu sentir, o seu querer, operações que, por si mesmas, não podem ser presenças para outros; que são não-externas, nem diretamente se podem exteriorizar, porque não ocupam espaço, nem têm qualidades sensíveis, — por isso são, diante de toda a externidade do mundo, pura intimidade. Mas, já no animal não podemos ver o seu corpo sem que este nos assinale, além de cores e resistências, uma certa corporeidade; e mais: sem que ele seja para nós o sinal de algo completamente novo, diferente, — a saber, de uma incorporeidade, de um dentro, um intus ou intimidade no animal, na qual este forja a sua resposta a nós, na qual prepara a sua mordida ou a sua chifrada, ou, ao contrário, o seu doce e terno vir roçar-se em nossas pernas. Disse que o nosso trato com o animal tem algo de co-existência. Esta co-existência surgiria porque o animal nos responde de um centro interior que há nele, isto é, da sua intimidade. Todo coexistir é um coexistir de duas intimidades e há tanto coexistir quanto haja um mútuo tornarem-se presentes, de algum modo, essas intimidades. Se o corpo do animal nos faz, através de si mesmo, entrever, presumir, suspeitar essa sua intimidade, é porque no-la indica com a sua figura, movimentos, etc… Ora, quando um corpo é sinal de uma intimidade que vai nele como que inclusa e reclusa, é que o corpo é carne, e essa função que consiste em indicar a intimidade se chama “expressão”. A carne, além de pesar e mover-se, expressa, é “expressão”. A função expressiva do organismo zoológico é o mais enigmático dos problemas que ocupam a biologia, já que, da vida biológica mesma, há muito tempo, crêem os biólogos que não devem ocupar-se, por ser excessivo problema.
Não me detenho para penetrar nesse sugestivissimo assunto: a função expressiva, — de certo modo o sugestivo por antonomásia, pois nele se acha a causa de toda sugestão, — porque já me ocupei largamente dele, no meu estudo intitulado “Sobre a expressão fenômeno cósmico”, (veja-se tomo VII de El Espectador, em Obras Completas, tomo II) e sobre o que concerne mais à aparição do outro homem diante de cada um, direi algo nas lições seguintes.
Baste dizer por agora que o corpo do outro, quieto ou em movimento, é um abundantissimo semáforo, que nos envia constantemente os mais variados sinais, indícios ou indicações daquilo que se passa no “dentro” que é o outro homem. Esse dentro, essa intimidade não é nunca presente, mas com-presente, como o é o lado da maçã que não vemos. E aqui temos uma aplicação do conceito da com-presença, sem o qual, como disse, não poderíamos esclarecer como o mundo e tudo nele existem para nós. Por certo, neste caso, a função da com-presença é mais surpreendente. Porque, ali, a parte da maçã, em cada instante oculta, me foi presente outras vezes, mas a intimidade que o outro homem é não me foi feita nem me pode ser feita nunca presente. E, não obstante, a encontro aí, — quando encontro, um corpo humano.
A fisionomia desse corpo, sua mímica e sua pantomimica, gestos e palavras, não patenteiam, mas manifestam que há ali uma intimidade similar à minha. O corpo é um fertilíssimo “campo expressivo” ou “de expressividade”. Vejo, por exemplo, que ele olha. Os olhos, “janelas da alma,” nos mostram mais do outro do que nada, porque são olhares, atos que vêm de dentro como poucos. Vemos o que é que olham e como olham. Não apenas vêm de dentro, mas notamos até de que profundidade olham.
Por isso, nada o namorado agradece tanto como o primeiro olhar. Mas é preciso ter cuidado. Se os homens pudessem medir a profundidade de que provém o olhar da mulher, muitos erros e muitas penas se poupariam. Porque há o primeiro olhar que se concede como uma esmola, — pouco profundo, o suficiente para ser olhar. Mas há também o olhar que vem do mais profundo, trazendo consigo a sua própria raiz do abismo do ser feminino, olhar que emerge como carregado de algas e pérolas e de toda a paisagem submersa, essencialmente submerso e oculto que é a mulher quando é de verdade, isto é, profundamente, abismaticamente mulher, é o olhar saturado, em que transborda o seu próprio querer ser olhada, enquanto o primeiro era astênico, quase não era olhar, mas simples ver. Se o homem não fosse vaidoso e não interpretasse qualquer gesto insuficiente da mulher como prova de que ela está enamorada dele; se suspendesse a sua opinião até que nela se produzissem gestos saturados, não padeceria as dolorosas surpresas que são tão frequentes.
Repito, do fundo da radical solidão que é propriamente a nossa vida, uma ou outra vez, tentamos uma interpenetração, tentamos desoledadizarmo-nos, assomando a outro ser humano, desejando dar-lhe nossa vida e receber a sua.