Barbuy: visão filosófica

Toda a filosofia reflete uma visão fundamental, que é ao mesmo tempo religiosa, intelectiva, volitiva e emotiva. Estes elementos são inseparáveis, embora, didaticamente, se possa distinguir entre a intuição intelectiva e a volitiva, entre a intuição emotiva e a religiosa. A intuição intelectiva recebe as verdades racionais e os primeiros prinprincípios da Inteligência; é por exemplo a intuição que nos diz que o que é, é, e o que não é, não é; que não se pode afirmar e negar o mesmo do mesmo, ao mesmo tempo e na mesma relação; é a intuição que recebe os axiomas geométricos, através dos quais se demonstram os teoremas, mas que não podem ser demonstrados eles próprios, por isso mesmo que são intuitivos; os primeiros princípios são indemonstráveis, porque se fossem demonstráveis não seriam os primeiros. Esta é a intuição intelectual ou a intuição metafísica, cujo objeto é a essência da realidade. Platão e Aristóteles, Santo Tomás e Descartes se fundam nessa intuição intelectual, como ponto de partida de suas construções filosóficas. Mas, se examinamos os fundamentos de uma filosofia como a de Duns Scot, de Fichte, ou de Nietzche, vemos que se voltam para a existência do objeto, que descobrem essa existência, como partindo de uma intuição volitiva, digamos, uma Vontade que se põe contra o objeto que a nega. A intuição emotiva sente o ser e o valor do objeto, procede por uma compenetração sympathica, como em Bergson e William James. A intuição religiosa é o fundamento das grandes filosofias místicas como a de Jacob Böhme, Meister Eckhart e São João da Cruz. E é ainda o fundamento daquelas filosofias míticas que floresceram na época pré-socrática.

Mas estes diversos fundamentos da filosofia, estes diferentes sentidos da intuição filosófica, não devem levar a ignorar a unidade do ato intuitivo; se o filósofo se apoia na intuição intelectual ou na intuição emotiva, nem por isso estão as outras ausentes, como aspectos de um só e mesmo ato intuitivo. São diferentes modos de captar a essência e a existência, o valor e o sentido último dos seres. Como não é a vontade que quer, ou a inteligência que pensa, mas o homem todo que quer e pensa, (como dizia Santo Tomás), assim também no ato intuitivo é o homem todo que pensa, quer e sente.

Vimos pois que a filosofia não se confunde com nenhuma outra ciência e que tem um objeto próprio que é a essência e a existência dos seres. Esta observação preliminar é de capital importância em virtude do erro que consiste: 1.°) em querer explicar a substância dos seres, por algum de seus aspectos; 2.°) em julgar que a filosofia, desde os gregos, teria sido representada pela soma de todo o saber humano, incluído tudo quanto veio a constituir depois o objeto de cada uma das ciências particulares. — Os positivistas vulgarizaram essa noção e julgaram que, na proporção em formar várias ciências foram surgindo e crescendo, desmembraram-se da filosofia, cujo domínio se foi assim empobrecendo; e no dia em que não mais houvesse mistérios e regiões atualmente incognoscíveis, isto é, quando tudo fosse conhecido cientificamente, não mais haveria lugar para a filosofia; a filosofia seria então um campo de indagações, sobre o qual a ciência amplia constantemente o seu domínio; o progresso da ciência seria a morte da filosofia, porque a filosofia viveria do que a ciência ainda não explicou; a filosofia, que foi o fruto da ignorância, cederia lugar ao único saber verdadeiro, que é o saber científico: Tal a perspectiva do positivismo que decretou, do alto do saber científico, a morte da sabedoria filosófica. E este ponto de vista é ainda hoje divulgado por muitos manuais de filosofia, se assim se podem chamar.

Mas, o erro básico desta visão positivista da filosofia consiste numa confusão inicial entre saber e sabedoria, entre opinião e verdade, entre “progresso” e aprofundamento. É além disso um ponto de vista falso porque: 1.°) o ser não é o conjunto dos seus aspectos superficiais; o ser é uma totalidade radical, da qual os aspectos (examinados pela ciência) são apenas as manifestações. 2.°) O objeto da filosofia não é atingido por nenhuma ciência secundária, porque nenhuma ciência tem por objeto a essência ou a existência sequer do seu próprio objeto; as ciências secundárias partem do objeto como existindo e não lhes cabe, de direito, examinar a sua essência ou a sua existência. 3.°) Não é exato que o campo da filosofia diminui à medida em que progridem as ciências, porque, mesmo admitido esse progresso como um progresso do conhecimento, deve-se notar que, as ciências, para cada problema resolvido, levantam novos problemas, de sorte que o número de problemas aumenta e não diminui com o chamado progresso das ciências; haverá tanto mais problemas não resolvidos, quanto mais problemas a ciência houver “resolvido”; isto já fez alguns filósofos pensar que as ciências não resolvem nada, senão que giram no círculo vicioso dos problemas que desaparecem e reaparecem sob outras formas; o progresso das ciências não elimina, mas antes, cria problemas. O campo das indagações filosóficas, ainda que fosse o mesmo da problemática científica, longe de diminuir, cresceria com o progresso das ciências.

Que é, afinal de contas, um problema? A palavra grega problema é como sinônimo de objecto. Etimologicamente significa, e de fato é, algo jogado na frente, ob-jectum. O problema é, para mim, algo posto na minha frente, algo que intercepta o meu caminho e que devo “resolver”. Os problemas se multiplicam com a progresso das ciências e multiplicam-se assim os temas da meditação filosófica. O objeto porém da meditação filosófica, não são os problemas descobertos, levantados, ou quem sabe, projetados pelas ciências. A filosofia tem por objeto a realidade fundamental, ou a realidade trans-física e seu horizonte se confunde também com o mistério.

Problema não é mistério. O problema se põe já com a sua solução ou ainda, é a solução que põe o problema. Mas o mistério é insolúvel. — A distinção entre problema e mistério, implícita em quase todos os filósofos e místicos, tornou-se com Gabriel Marcel tema explícito de cogitações filosóficas. É uma distinção importante para diferençar também a filosofia das demais ciências.

O problema é algo ante-posto, posto na frente, ao passo que o Mysterio é algo em que nós estamos postos. Há o mistério do objeto, por mais conhecido que seja. Há o mistério do estarmos aqui e de serem as cousas e serem assim. Há o mistério de toda a realidade, porque a mesma realidade, por mais que se desvele, mais se oculta, como sublinhou recentemente Heidegger a propósito da exegese do sentido da palavra grega aletheia, desocultamento [[A este respeito, La Pensée de Heidegger et la Poesie de Hölderlin, de Jean Wahl.]]; segundo os filósofos realistas a realidade se manifesta no fenômeno, mas enquanto se manifesta se oculta, porque não se manifesta exaustivamente. Em suma, a realidade se revela, mas é um mistério. — As ciências particulares lidam com problemas, com ob-jecções ante-postas; as ciências resolvem os seus problemas, porque são elas mesmas que os põem; põem os problemas dentro de uma perspectiva em que as soluções vêm dadas por si mesmas. Deste modo pode-se dizer que toda indagação científica já é feita no sentido de uma resposta determinada. Inversamente, a meditação filosófica não põe o mistério, como as ciências põem os problemas. A perscrutação filosófica está cercada e constrangida de mistério por todos os lados. E a diferença essencial entre o problema e o mistério, é que o problema é o que está posto na minha frente, como algo exterior a mim; mas o mistério é algo em que eu estou posto e que está em mim. O problema está diante de mim; e eu estou no mistério. Estamos como na interioridade do mistério; e tudo o que entra na vida e no mundo, entra no mistério.

Se a filosofia não é apenas uma fria investigação racional da existência e da essência dos seres, mas se, ao contrário, suas meditações envolvem o mistério em que estamos, é justamente porque a filosofia traz em si a densidade de uma preocupação sobre o destino. A filosofia não é pois um conhecimento desinteressado, gratuito. É, ao contrário, um conhecimento interessado. Quando Aristóteles disse que a filosofia era um conhecimento pelo conhecimento, isto é, um conhecimento desinteressado, isto significava desinteressado de técnicas, desinteressado de aplicações. Mas interessado e profundamente, no mistério do mundo e no destino do homem. — O mistério é um processo em que estamos inseridos; não podemos dizer exatamente o que é, porque estamos nele. E se as respostas da filosofia aos mistérios da vida e do mundo são várias, divergentes e opostas, isto mostra claramente que a filosofia se move numa região que as outras ciências não atingem. Se a filosofia se movesse na região superficial dos objetos científicos, não haveria nenhuma necessidade de filosofar.

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