«Mundus est fabula»·, podemos ler este aforismo no retrato de Descartes pintado por Jean-Baptiste Weenix. O mundo é uma fábula. Esta epígrafe parece-nos fornecer uma boa introdução ao mundo de Descartes. O mundo de Descartes: fórmula voluntariamente vaga e equívoca, designando aqui ao mesmo tempo os quadros culturais, sociais e políticos em que a obra cartesiana pôde ser produzida, e a ideia de mundo que se desprende da obra, a partir da elaboração de uma física nova. Desejamos tratar da gênese do mundo cartesiano e postulamos que não há em ciência nem em filosofia criação ex-nihilo. Ora, estas poucas palavras inscritas por baixo do retrato, na medida em que constituem uma variação sobre um tema obrigatório da cultura barroca, apontando ao mesmo tempo expressamente na direcção dos textos do corpus cartesiano, parecem-nos permitir encarar o processo através do qual o novo mundo se desprende da sua «prima matéria»·, a mentalidade barroca e o discurso proteiforme a que se liga essa mentalidade. Mundus est fabula: é difícil descobrir um autor que, no século XVII, não explore o motivo da fábula ou do teatro do mundo. Descartes, no Discurso do Método, faz do viajante que percorre o mundo o espectador de «todas as comédias que nele se representam» (VI, 28). Mas, sobretudo, quem presta atenção ao quadro é inevitavelmente remetido para uma obra determinada. A epígrafe está inscrita num livro que o filósofo tem aberto à sua frente. No livro do filósofo, o espectador pode ler que o mundo é uma fábula. Ora, Descartes é autor de uma obra a que deu o nome de Mundo e que apresentou, precisamente, como uma fábula. A obra, que Descartes renunciou a publicar depois da condenação de Galileu, era, apesar de tudo, do conhecimento dos contemporâneos pela quinta parte do Discurso do Método, que a resume, e pelos Princípios de Filosofia, cujas segunda, terceira e quarta partes retomam e desenvolvem sistematicamente a maior parte dos temas do tratado de 1632 [[Cf. o levantamento das correspondências entre o Mundo, a quinta parte do Discurso do Método e a física dos Princípios in XI, 702-706.]]. Confrontado com o quadro, o espectador do século XVII, acostumado à decifração das divisas e familiarizado com o filósofo ou as suas obras, não podia deixar de apreender a alusão a essa obra misteriosa cuja existência, na época do Discurso, chegou a passar por fabulosa, ela própria, junto de certos leitores [[Cf. as objecções de Pierre Petit ao Discurso do Método, publicadas na Revue de métaphysique et de morale, 1925, pp. 86-87.]]. O intérprete do século XX deverá, pelo seu lado, regressar do quadro à leitura do texto, ao mundo do tratado, através do duplo prisma da biografia, de que o retrato e a sua divisa são marcas preciosas, e do universo cultural a que tal representação do filósofo pertence.
[…]A fábula significa a comédia ou a tragédia — a tragicomédia — da vida. Este tema da comédia humana, cujo último acto, irrisório ou magnífico, é rematado pela morte, excede muito largamente o neo-estoicismo e assombra de facto o conjunto da cultura europeia entre o Renascimento e o final do século XVII [[O tema estóico alimenta igualmente as especulações do céptico. Cf. La Mothe Le Vayer, Cinq dialogues faites à l’imitation des Anciens par Orasius Tubero, 1a ed. provavelmente de 1630, Francoforte, 1717,1.1, «Lettre de l’Autheur». O texto é comentado, em relação com Descartes, por Guido Canziani, Filosofia e scienza nella morale di Descartes, Florença, 1980, pp. 25-26.]]. «Mundus est fabula», assim interpretado como memento mori, lembra, tanto do ponto de vista da forma como do do fundo, o célebre dito do imperador Augusto, retomado por Rabelais e, depois dele, por múltiplos autores barrocos: «Acta est fabula»·, a fábula terminou, a peça chegou a fim.
É inegável que a epígrafe do quadro deve ser lida antes do mais como uma variação sobre o tema do teatro do mundo. A partir de então, parece que nos embrenhamos na moral e nos afastamos da ciência. Mas parece apenas: em primeiro lugar, porque o laço que une a ciência à moral, se se torna efectivamente problemático no século XVII, está ainda longe de se ter desfeito. A finalidade fixada por Descartes à ciência no Discurso do Método, nunca o esqueçamos, é a aquisição da sabedoria; trata-se de descobrir «a verdade nas ciências» para bem «conduzir a sua vida». Embora esta relação, ao longo do desenvolvimento sucessivo da filosofia cartesiana, se torne cada vez mais crítico, o prefácio da edição francesa dos Princípios apresenta ainda a moral «mais alta e mais perfeita», «último grau da sabedoria», como uma «ciência» pressupondo o conhecimento de todas as outras (IX, II, 14). Esta ligação entre o saber e a moral encontra-se presente em todos os procedimentos científicos do século, incluindo e talvez sobretudo quando a nova ciência, alargando-se ao político, mais completamente reivindica a universalidade: a relação de subordinação é então invertida, e a moral anexada à ciência política, como acontece em Hobbes. Mas um tal empreendimento, conducente à negação de qualquer autonomia moral em proveito do político erigido em ciência, é ele próprio indissoluvelmente moral e científico. Não nos surpreenderá, pois, que os dois campos, que hoje separamos tão radicalmente, sejam no século XVII investidos pelos mesmos conceitos e pela mesma metafórica. É assim que a metáfora do teatro do mundo, na época barroca, assume desde o início um sentido ao mesmo tempo moral e cosmológico. A ideia-força segundo a qual o mundo é um teatro, sob o olhar de Deus ou nas mãos do destino, onde cada um é levado a desempenhar o seu papel, mostra-se estreitamente ligada a uma concepção artificialista da natureza. Estudar a natureza equivale a descobrir através de que mecanismos dissimulados aos espectadores são produzidos os fenômenos que formam os cenários mutantes e variáveis do mundo [[Cf. Fontenelle, Entretiens sur la pluralité des mondes, ed. Marabout Université, Paris, pp. 30-31, e o magnifico comentário que Pierre Bayle faz deste texto, OEuvres diverses, Nouvelles de la République des Lettres, mês de Maio de 1686, art. I, Haia, P. Husson, 1727.]]. Na esteira das relações sociais suspeitas de histrionismo generalizado, as aparências do mundo são percebidas como ilusões enganadoras cuja produção se trata de compreender e dominar. Mais exactamente, natureza e sociedade parecem obedecer no fundamental a uma mesma estrutura: a da teatralidade. Se a tarefa da moral é ensinar-nos como nos devemos comportar no palco do grande teatro do mundo, cabe à ciência empreender a desmontagem dos seus alicerces técnicos. A ciência parece então indissociável de uma moral, que constitui o seu desfecho prático. Em último recurso, são procuradas nos bastidores do mundo as regras de encenação e a didascália capazes de assegurarem aos actores uma boa prestação, com toda a ambiguidade moral que este imperativo de sucesso, na ordem do parecer, não deixa de suscitar. E descobre-se esta mesma metafórica técnico-moral da máquina teatral do mundo tanto no discurso profano do cortesão como no do ascetismo cristão. Descartes, como veremos, no uso que faz da metáfora, abre uma terceira via, tão afastada da estratégia curial como do exercício espiritual.