O leitor lerá a frase que se segue, talvez com horror, mas vou escrevê-la como se fosse um remédio amargo, embora seja, de fato, um bálsamo: o Mal é superficial. Este livro é de Ontologia, é sobre a raiz das coisas. É só apesar disso que há nele uma Seção dedicada às “superficialidades” apavorantes de um pesadelo endêmico. O que vou descrever é a “equivocação instrumental”, ou como é possível a impressão de que a “realidade das coisas”, ou a realidade dos “fatos”, ou “a vida como ela é”, pareça-se com aquilo que as “Éticas” chamam de “Mal”. Já não estamos mais construindo teoria filosófica nem fundamental, nem em Filosofia da Ciência e Teoria do ConhConhecimento Científico, mas colhendo seus frutos, aplicando-as à resolução ou quiçá à dissolução da maior fonte de sofrimento para nossa espécie, que é, não o Mal, mas a incompreensão do Mal. O que teria causado a chamada tripla separação (“A Queda do Homem”) entre o Ser Humano e Deus, entre os Seres Humanos, e entre o Ser Humano e aquilo que ele pensa que é? O primeiro passo é compreender que o assunto de nossa investigação nesta Seção não é aquilo que nós concebemos como o Mal, pois não o concebemos absolutamente, mas aquilo que o Instrumento chama de “O Mal”. O “problema” é compreender como se pode gerar, no Instrumento um “efeito” tão monumental, e que ao mesmo tempo é simplesmente tudo aquilo — insisto: para o Instrumento! — que “se pareceria” tanto conosco, tudo aquilo que “parece normal”, que “seria aceitável”, tudo aquilo com que se pensa que se está tão… familiarizado! Minha tarefa, neste livro, é quase impossível, justamente porque consiste em constatar a extrema “estranheza” disso tudo que parece tão familiar, o caráter prepóstero desse “arranjo de coisas”, já que, verdadeiramente, nada daquilo que constitui o “Mal” pode ter qualquer efeito sobre o nosso Ser; não esquecer que a possibilidade do equívoco já deve estar de algum modo contida na própria “Estrutura da Experiência” (Cap. 1); compreendê-lo como efeitos da Mente, do Pensamento e da Linguagem; ousar expô-lo à luz do Espírito (“ousar” porque estas são coisas cuja verdadeira natureza o Instrumento foi feito para esconder); e, usando o Instrumento, a Mente, o Pensamento e a Linguagem, apontar para onde está o nosso Ser verdadeiro, que procurei descrever no primeiro Capítulo (releia a epígrafe do livro). Ora, afirmo que a dissolução de toda essa problemática ou problemáticas do Mal, está em um punhado de “intuições fundamentais”. Introduzo-as com um convite ao leitor para que compare pequenas parábolas: no Oriente, àquele que levantou, depois abaixou a espada, o Zen mostrou primeiro a porta do inferno, depois a porta do céu; no entanto, a epifania da Gita, que se dá na suspensão do tempo… passa-se no corpo-campo… de batalha. No Ocidente, séculos depois, o “olho por olho, dente por dente”, da Guerra nas Estrelas do Antigo Testamento foi substituído, noevangelion, pelo “mostrar a outra face”, “não julgar”, “amar os inimigos”, etc., até culminar no sábio “Ama…”, de Santo Agostinho. Chegou a hora, portanto, de prestar atenção ao que da teoria que aqui se articulou, no primeiro Capítulo, aqui está sendo aplicado arquitetonicamente, ainda que o desenho do arquiteto não possa ser executado neste Mundo por um engenheiro. Sabemos (ou não sabemos?) que toda defesa é uma forma de ataque e todo ataque um pedido de ajuda? Sabemos (ou não sabemos?) que não se combate o mal com o mal, não porque se devesse combatê-lo com “o bem”, mas certamente porque não se combate o que quer que seja, já que aquilo que “vencemos” na verdade nos assujeita? Quem sabe se com este último pensamento a Mente já completou a montagem de um cenário adequado ao drama, sobre um palco cheio de alçapões, e fica contente, quieta por um instante!? É neste teatro, então, que havemos de recitar o texto?! Suspenda-se a cortina, e que se faça a luz, as palavras e a ação.
O “Problema do Mal”, do qual uma das versões mais especializadas inclui o conceito de “Inferno”, mas que em qualquer versão pressupõe sofrimento (alternância entre prazer e dor), comporta-se em Filosofia como se fosse um personagem conceptual fantasmático e amnésico, às vezes angélico, et pour cause às vezes satânico, que não pertence ao texto original da peça, que abre a temporada do Grande Teatro do Mundo, mas na qual se intromete infalivelmente, por algum equívoco aparentemente inexplicável (não se sabe de quem, talvez da produção), entrando em cena à revelia do diretor e do contra-regra, só contracenando se o ponto lhe sopra a deixa ponto a ponto, não desempenhando na verdade nenhum papel conhecido, embora acabe sempre — dizem… — por confundir a todos, da bilheteria ao frisson que antecede o espetáculo, do palco à plateia, das récitas à crítica, a ponto de se lhe atribuírem todos os aplausos e todas as vaias, além de figurar nos créditos sob qualquer pseudônimo que acaso venha coincidir com o nome do ator principal. Uma vez admitida a existência desse personagem, o espetáculo torna-se imperdível: faz imediatamente os efeitos de participar dos melhores argumentos filosóficos contra a “existência” de Deus; e dos melhores argumentos teológicos contra a inocência de suas criaturas. [p. 307-309]