TEMA VII
ARTIGO ÚNICO – CONSIDERAÇÕES SOBRE O SÍMBOLO
I
Os conceitos, devido à sua homogeneidade, e por serem esquemas abstratos, são deficientes para expressar a interioridade de uma vida, de suas potências, etc.
Mas a combinação dos esquemas em tensões operatórias podem-nos servir como outros esquemas abstratos, aos quais imagens representadas de nossa vida ou coordenadas por nossa imaginação criadora podem ser assimiladas, como se vê na literatura, onde podemos reviver pathências ou vivê-las, através da imaginação criadora páthica do artista.
Dessa forma, o conceito ou as estruturas judicatórias podem, de sinais que são, transformar-se em símbolos. O mesmo pode dar-se em todo pensamento estético, que não é necessariamente construído com esquemas abstratos (conceitos), mas com outros elementos tensionais, como o realiza o pensamento musical atualizado, o pictórico, etc.
Por isso a arte fala através de uma simbólica que lhe é peculiar.
Quanto ao apreciador, este pode colocar-se como um tradutor de símbolos, através de vivências ou como simples apreciador dos próprios símbolos. No primeiro caso, ele vive misticamente á estética, pois parte para a simbolização, o que já é uma atividade mística (peneirar no que se oculta) ; no segundo caso, ele vive esteticamente o místico, porque apenas capta o símbolo e não o simbolizado (permanece no que se apresenta).
Não sendo as pathências exprimíveis apenas por sinais„ que as delimitam excessivamente, é o símbolo a linguagem do que é operatoriamente inexprimível. Por isso a arte é genuinamente imersa no páthico, e sua intelectualização só pode proceder a posteriori sob pena de, pelo excesso de cerebralização, provocar o estancamento do poder criador.
Ora, o juízo é uma função sintética da razão.
Os objetos ideais independem do tempo e do espaço (revelam intemporalidade e inespacialidade), como independem do homem como ser cognoscente.
Sem o homem, poderia haver quem não pensasse num círculo. Mas onde há o ato de pensar surgiriam objetos ideais, e onde surgisse um ser cognoscente, pensante, poderia captar o pensamento do círculo.
Os objetos ideais formam e constroem o pensamento, e eles estão em potência em todo cognoscente.
As imagens são vivências, mas o objeto ideal é diferente das vivências, enquanto consideradas como tais. A vivência dá-lhes uma coloração de vida.
O ser dos objetos ideais (do homem) não é o da realidade existencial que os imita (híbrida de ato e potência), mas sim o da potensão, a de uma tensão que pode ser atualizada na realidade vivencial do cognoscente.
Assim como o artista procura expressar a singularidade de suas vivências e emprega a simbólica, como expressão do inexprimível, também foi ela empregada, no campo social, pelas religiões e por todas as manifestações expressivas do homem.
Através dos exames que fizemos do símbolo no campo da psicologia, que abrangeu, por sua vez, a esfera sociológica, o processo simbólico encontrou em nossas exposições uma clareza que até então não tinha, pois tem sido matéria descuidada, indevidamente, pelos filósofos, psicólogos e sociólogos, em geral.
No entanto, no campo da sociologia, o símbolo, que foi tantas vezes estudado, oferece, ante as diversas opiniões que sobre ele se formularam, que apresentemos ainda alguns aspectos que são importantes e nos servem, por sua vez, de base para a compreensão de suas diversas manifestações da super-estrutura humana.
Observa-se na ordem social, nos ritos, costumes, modas, relações de toda espécie, quer entre indivíduos, quer entre indivíduos e grupos, dos grupos entre si, classes, estamentos e até colectividades maiores, etc, práticas de toda espécie que revelam um simbolismo do mais variado.
Nas relações humanas, o símbolo atua inegavelmente como um mediador, bem como um assinalador das hierarquias sociais e dos vários estamentos. Esses símbolos indicam uma participação a um simbolizado e como tais são caraterizadores de situações sociais e servem de afirmação à participação em comum do simbolizado.
É preciso evitar sempre que se reduza o símbolo ao seu gênero, que é o sinal, virtualizando-se a sua diferença específica. O símbolo, de quem é o seu portador, indica sempre, no caso social, que alguém é co-participante do simbolizado. O “muro das lamentações”, o que resta do antigo templo de Salomão, é um símbolo para o povo judeu, e todos os judeus, nele, junto a ele, em face dele, e ao considerá-lo como seu símbolo, sentem-se como participantes do simbolizado, que é a mesma raça judia, sacrificada, torturada, perseguida. A cruz, para os cristãos, irmana-os, porque, nela, há a simbolização de Cristo, mediador entre os homens e Deus, de quem todos os cristãos sentem participar.
O símbolo social caracteriza-se sobretudo por ser um mediador de participação entre homens, como se vê sobretudo nos símbolos religiosos, símbolos nacionais, nos monumentos simbólicos dos povos. O símbolo reúne ao simbolizado, na vida social, todos os que dele participam.
Desta maneira, nos grupos sociais fechados, sociedades secretas, nas religiões, nos partidos políticos, na construção super-estructural da arte, do Direito, da Religião, da Filosofia, da Ciência, da própria Técnica, etc, o homem tem símbolos que irmanam os seus pares, porque eles participam do mesmo simbolizado.
Todas as culturas em suas fases e períodos, revelam-nos símbolos dos seus momentos cráticos (de Kratos, poder) das possibilidades atualizadas, do anseio que as anima, da maneira de sentir e viver o tempo e o espaço, como nos falam a linguagem simbólica das crenças, dos anseios, das esperanças e dos medos dos povos, os templos, os túmulos, a arte, desde o balbuciar das primeiras fases, até a plenitude dos seus períodos clássicos.
Toda a vida humana tem uma expressão e toda essa expressão está pejada de símbolos.
Mas essa expressão não é só do homem; é da própria natureza que também fala uma linguagem simbólica, nessas montanhas, nessas curvas suaves dos montes, ou nas arestas empinadas e agressivas, nas árvores frondosas que cobrem de sombra grandes lanços dos caminhos, ou na vegetação angulosa das regiões estéreis, na amplidão dos desertos, no azul imenso e profundo dos céus, nas borrascas e tempestades que avassalam, na pletora das enchentes que desbordam as margens, nos acenos das nuvens, nas vozes dos animais, tudo expressando uma grande linguagem de formas, de direções, de ritmos, de harmonias, de dissonâncias que esperam dos homens, poetas sem dúvida, os intérpretes da linguagem que fala o livro aberto da natureza.
São leis reveladas pelos f atos, mas leis que revelam uma ordem, símbolos sempre de um mais além, porque o símbolo, que já é um apontar ao mais profundo, ao místico, anuncia no seu próximo simbolizado, o símbolo de outros simbolizados e, assim, constantemente, numa coerente, concreta, universal afirmação conjunta do ser eterno, fonte e princípio de todas as coisas, subsistência de tudo quanto acontece na voragem da sucessão, mas que paira imutável, único e supremo, a atrair todos os nossos ímpetos mais profundos, os nossos desejos mais elevados e as nossas esperanças mai» amadas.
II
Pela sua adequação ao que expressamos até aqui, é de interesse examinar o simbolismo segundo Clemente de Alexandria, pois se trata de um dos melhores trabalhos, na cultura alexandrina, sobre este tema.
Em seu V Stromata, Clemente de Alexandria construiu uma teoria do símbolo. A análise das escrituras pode fundir-se no sentido literal, como também no sentido que ele chama místico e simbólico, o qual apresenta com o primeiro certas analogias mais ou menos amplas. As interpretações alegóricas ou simbólicas de Clemente tornaram-no célebre. Ele instituiu um método simbólico sobre o qual desejamos agora falar.
Partia Clemente de que tudo é símbolo na natureza, e que há uma correspondência misteriosa entre dois mundos, e que em nós mesmos o encontramos, já que o homem é um microcosmo, ou seja o kosmos aesthetós, que é o mundo sensível, e um kosmos noetós, que é o mundo espiritual.
Este seria o arquétipo daquele que, por sua vez, seria uma imagem, tomando aquele por modelo. Este pensamento encontramo-lo também na filosofia de Leibniz, como já o conhecêramos no “Timeu” de Platão.
Clemente de Alexandria sofreu grande influência de Filon, filósofo neo-pitagórico; e as idéias platônicas exerceram no seu pensamento uma decisiva direção.
Preocupou-se deste modo Clemente em descobrir e revelar as analogias que conectavam o mundo sensível com o mundo espiritual.
Para tal empresa, impõe-se uma alma poética e dela não era privado Clemente de Alexandria. Observou Clemente o simbolismo na linguagem, sobretudo usado pelos egípcios, quando, por ex., ao expressar o sol, assinalavam-no por um círculo, ora por um escaravelho, pois este permanece seis meses sobre e seis meses sob a terra.
Verificou, ademais, que o símbolo é imprescindível na linguagem, no uso das metáforas, das comparações, transposições, e que o espírito humano não pode expressar-se com propriedade usando os conceitos com o seu conteúdo exclusivamente material. O símbolo facilita, assim, o espírito a penetrar no que fica além, no que a linguagem humana não pode penetrar diretamente. Tomando uma nota do conceito, que indica certa qüididade, analogando esta com outros conceitos, que também contenham tal nota, pode assim o espírito humano, usando os recursos de que dispõe, penetrar no mundo arquetípico, no mundo espiritual. Todos os homens são aptos a alcançar a verdade, mas esta se revela coberta de véus, e no mistério, que poucos conseguem desvelar. Portanto, o método simbólico não só oferece uma via que permite o desvelamento da verdade, oculta ao comum dos homens, como o símbolo, tomado como tal, pode servir para ocultar o de que não se deve falar, o mistério. A linguagem escritural é uma linguagem parabólica, e é a parábola que caracteriza o estilo das escrituras. As parábolas envolvem os mistérios, tornando-os acessíveis aos que estão familiarizados com eles, enquanto os ocultam aos olhos profanos.
Não quer tal dizer que Clemente desejasse afirmar que, na confecção das escrituras, houvesse um intuito deliberado de ocultar a verdade, mas a expressão dessa verdade, não podendo ser feita diretamente, o homem que a expressou, teve de consigná-la através dos meios de que dispunha, que é a linguagem comum humana. A analogia entre esta linguagem comum e o conteúdo arquetípico da verdade, revela a relação que une o objeto material ao objeto espiritual. Considerando Clemente que todo o texto religioso é inspirado pela divindade, tem ele um segundo sentido, espiritual, mais elevado portanto que o sentido material do homem vulgar, da sensualidade dos nossos conhecimentos e da fraqueza da nossa natureza. Essa analogia, que o símbolo revela, aplica-se a toda interpretação escritural, bem como do que seja o mundo espiritual. Daí a necessidade de prestar atenção à letra para poder alcançar o espírito, de cuja confusão Cristo tanto acusava os fariseus.
Clemente estabelecia algumas regras para a interpretação simbólica. O antropomorfismo, verificado na Bíblia, deve ser transposto, pois considerado como tal seria indigno de Deus. Este antropomorfismo é uma manifestação metafórica, e pela analogia se pode alcançar a intenção evidente do texto. Este cânone de Clemente era um tanto combatido por alguns autores da Igreja, por poder levar ao desprezo total da letra. Clemente realmente o fazia quando se achava em face de contradições flagrantes. Podemos sintetizar o método de Clemente no que se refere aos livros sagrados, nesta fórmula: a interpretação deve consistir em encontrar a significação simbólica da letra oculta.
A teoria geral do simbolismo, de Clemente, aplicada à história religiosa da humanidade, revelaria que em todos os textos há sempre a referência a um mundo arquetípico, espiritual, do qual todas as religiões participam. Nesta interpretação, Cristo seria o mistagogo, o condutor dos homens, do mundo sensível ao mundo espiritual.
Deste modo, o cristianismo seria unia aliança, uma síntese do pensamento religioso dos povos do Oriente com a filosofia dos gregos.
Claude Mondésert, em seu livro “Clément de Alexandrie”, pág. 151 em diante, sintetiza a simbólica de Clemente nas seguintes palavras:
“No fundo do simbolismo, tal como Clemente o compreende, e tal como procura interpretá-lo na natureza, na vida humana, em particular na Escritura, há uma idéia profunda que os próprios excessos do método de interpretação salientam: é o parentesco de todos os seres entre si, o laço inteligível que os hierarquiza e os reúne, que os torna um sob sua multiplicidade aparente, e salvaguarda a sua própria multiplicidade pela sua coesão e unidade. É preciso volver aqui à escala dos seres, ao princípio platônico da participação. É preciso também considerar essa idéia religiosa, essencial ao cristianismo, da unidade da criação, e da orientação de todos os seres, do mais material ao mais espiritual, para o ser por excelência, do qual todos estão suspensos, como a sua última razão, e todos refletem, cada um a seu modo, alguma coisa das perfeições divinas, e, por conseqüência, anunciam-se uns aos outros, de grau em grau, até aos mais ricos, os mais próximos da divindade, embora permaneçam sempre, como seres finitos e criaturas, longe da divindade infinita, autor de todas as coisas”.
Sintetizando, pois, o pensamento de Clemente de Alexandria, vemos que está incluso no nosso modo de considerar a simbólica, inclusive até no emprego do método analógico, bem como da aceitação de que há uma participação por parte do símbolo. E como todas as coisas do universo participam particularmente de perfeições que outros seres possuem em sua essência, em plenitude, todas as coisas são sob certo aspecto, símbolos. E, deste modo, pela hierarquia das perfeições, tudo no universo se conecta a uma unidade suprema.
A simbólica é, assim, um método também de concreção, pois permite captar, através das heterogeneidades, a homogeneidade absoluta do Ser Supremo, graças às providências que aconselhamos nesta obra.