Página inicial > Termos e noções > tragoidia

tragoidia

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

A tragédia ática vive um século inteiro de hegemonia indiscutível, que coincide cronológica e espiritualmente com o crescimento, apogeu e decadência do poder civil do Estado ático. Como a comédia reflete, foi nele que a tragédia alcançou a maior grandeza da sua força popular. O seu domínio contribuiu para a extensão da sua ressonância no mundo grego e para a grande difusão do idioma ático no Império Ateniense. E por fim cooperou na decomposição moral e espiritual que, segundo o exato juízo de Tucídides, afundou o Estado, tal como lhe havia dado força e coesão interna no período do seu apogeu. Se encarássemos o desenvolvimento da tragédia grega, desde Ésquilo até Sófocles e Eurípides, do ponto de vista da estética pura, seria totalmente diverso o nosso juízo a seu respeito; mas, do ponto de vista da história da formação humana, no sentido mais profundo da palavra, é assim evidentemente que surge o seu processo, como claramente reflete, absolutamente sem pensar na posteridade, o espelho da consciência pública que é a comédia desse tempo. Os contemporâneos não consideravam nunca a natureza e a influência da tragédia de um ponto de vista exclusivamente artístico. Era a tal ponto a rainha, que a tornavam responsável pelo espírito da comunidade. E embora devamos pensar, como historiadores, que os grandes poetas não eram só criadores, mas também os representantes daquele espírito, isto não altera em nada a responsabilidade da sua função diretiva, que o povo helénico achou maior e mais grave que a dos chefes políticos que se sucederam no governo constitucional. Só a partir deste ponto de vista é que se pode compreender a intervenção do Estado platônico na liberdade da criação poética, tão inexplicável e insustentável para o pensamento liberal. Sem embargo, este sentido da responsabilidade da poesia trágica não pode ter sido o originário, se pensarmos que no tempo de Pisístrato a poesia era considerada apenas como objeto de prazer. É na tragédia de Ésquilo que aparece pela primeira vez. Aristófanes evoca a sua sombra do Hades, como único meio de recordar à poesia a sua autêntica missão no Estado do seu tempo, desprovido de uma censura análoga à que Platão exigia.

Desde que o Estado organizou as representações das festas dionisíacas, a tragédia tornou-se cada vez mais popular. Os festivais dramáticos de Atenas constituíam o ideal de um teatro nacional, do tipo daquele que os poetas e diretores de cena alemães da nossa época clássica se esforçaram em vão por implantar. É certo que era escassa a ligação entre o conteúdo do drama e o culto do deus para cuja glorificação se representava. Poucas vezes o mito de Dioniso entrou na Orquestra, o que sucedeu na Licurgia, de Ésquilo, que representa a lenda homérica do crime do rei trácio Licurgo contra o deus Dioniso, e na história de Penteu em As Bacantes, de Eurípides. O impulso dionisíaco convinha mais aos dramas cômicos, satíricos e burlescos, que subsistiam ao lado da tragédia como manifestação da antiga forma das representações dionisíacas e que o povo continuou a exigir após cada trilogia trágica. Mas o êxtase dos atores na tragédia era verdadeiramente dionisíaco. Era o elemento da ação sugestiva que se exercia sobre os espectadores para compartilharem como realidade vivida a dor humana que na orquestra se representava. Isto se aplica principalmente aos cidadãos que formavam o coro, os quais se exercitavam o ano inteiro para se compenetrarem intimamente do papel que iam representar. O coro foi a alta escola da Grécia antiga, muito antes de existirem mestres que ensinassem a poesia. E a sua ação era com certeza bem mais profunda que a do ensino meramente intelectual. Não é sem razão que a didascália coral guarda no seu nome a recordação da escola e do ensino. Pela sua solenidade e raridade, pela participação do Estado e de todos os cidadãos, pela gravidade e pelo zelo com que se preparavam e a atenção prestada durante o ano inteiro ao novo "Coro", como se dizia, pelo número de poetas que concorriam para a obtenção do prêmio, aquelas representações chegaram a ser o ponto culminante da vida do Estado. Era com a atitude elevada e solene com que os cidadãos se reuniam às primeiras horas da manhã para honrar Dioniso que eles agora se entregavam de corpo e alma e com alegre aceitação às impressões que as graves   representações da nova arte lhes ofereciam. O poeta não enfrentava, nos bancos dispostos em torno do local das danças, um público de gosto literário estragado, mas sim um público capaz de sentir a força da psicagogia, um povo inteiro disposto a emocionar-se num instante como jamais o teriam podido conseguir os rapsodos, com os cantos de Homero  . O poeta trágico alcançou verdadeira importância política. E o Estado pôde senti-lo, quando Frínico, um velho contemporâneo de Ésquilo, arrancou lágrimas ao povo ao representar numa tragédia uma catástrofe do tempo — a conquista de Mileto pelos Persas -, de que os Atenienses se sentiam responsáveis.

Não era menor a influência dos dramas míticos, uma vez que a força desta poesia não deriva da sua referência à realidade cotidiana. Abalava a tranquila e confortável comodidade da existência comum, por meio de uma fantasia poética de uma audácia e de uma elevação desconhecidas, e que atingia o seu auge e o seu dinamismo supremo no êxtase ditirâmbico dos coros, apoiados no ritmo da dança e da música. O consciente afastamento da linguagem cotidiana elevava o espectador acima de si mesmo, criava um mundo de uma verdade mais alta. Não era só por estilização convencional que nesta linguagem os homens eram chamados "mortais" e "criaturas de um dia". Palavras e imagens estavam animadas pelo sopro de uma nova religião heroica. Ó tu, o primeiro dos Gregos, que ergueste as palavras à altura da mais alta nobreza!, assim evoca a sombra de Ésquilo um poeta de uma geração posterior. Aquilo que havia de ousado na solene "torrente" trágica aparecia ao sentimento comum como a expressão mais adequada da grandeza da alma de Ésquilo. Só a força empolgante desta linguagem consegue compensar-nos, de certo modo, da perda da música e do movimento rítmico. Outro elemento era a magnificência do espetáculo, que seria vã curiosidade tentar reconstruir. Quando muito, a sua lembrança pode ajudar o leitor moderno a libertar-se da imagem do teatro fechado, totalmente contrária ao estilo da tragédia grega. Basta recordar a máscara trágica, tão frequente na arte grega, para notar esta diferença. Torna-se patente nela a diferença essencial entre a tragédia grega e qualquer outra arte dramática posterior. Era tão grande o seu afastamento da realidade comum, que a fina sensibilidade dos Gregos descobriu na paródia e transposição das suas palavras para as situações da vida cotidiana uma fonte inesgotável de efeitos cômicos. Todo o drama se consuma numa esfera da mais alta elevação e perante espectadores impregnados de piedade religiosa.