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epos

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Excertos traduzidos de Henri Maldiney  , Aîtres de la langue et demeures de la pensée

O epos é menos um gênero poético que a forma na qual se determina a essência da poesia em uma época determinada da cultura. A poesia é a fundação do ser do ente em uma palavra que faz parte, ela também, do ente. O epos exprime o ser das coisas, do pensamento e da palavra em se fundando numa dimensão específica desta: a nominação. Ele nomeia seres e coisas a elas mesmas. E designa cada um a sua individualidade fechada, em consignando todos seus possíveis no limite de uma forma circunscrita. Quem transgride o limite, como Ajax, cessa de ser si mesmo e não é mais o foco epônimo de seus atos — como o é precisamente o herói. O herói está presente em seus atos como a coisa em seus perfis. Ele é o polo de identidade imanente a cada uma de suas manifestações e transcendente a todas nesta identidade mesma — cuja forma verbal e real é seu nome. Unidade exclusiva, o herói engajado em uma ação comum não tem com os outros senão ligações paratáticas como aquelas da frase de Homero  . Qualquer que seja a complexidade da ação, sua unidade não é uma síntese; ela não tem outra ligação senão aquela da enumeração dos atos singulares. Para o poeta épico contar é contabilizar. Ele denomina e enumera. Não há diferença essencial entre o catálogo dos navios e o relato dos combates, entre os quais a descrição do escudo de Aquiles faz por assim dizer a ponte entre uma enumeração no espaço e uma enumeração no tempo. Que esta linguagem não seja reservada a um gênero, mas seja uma forma ao mesmo tempo histórica e essencial da palavra poética, o provam os poemas de Hesíodo  . Ao catálogo de navios responde o almanaque dos Trabalhos e dos Dias. Cada Dia é único. Da mesma maneira cada tarefa. A ordem dos trabalhos, dos cuidados e das ocupações, logo dos pensamentos dos homens, é aquela das estações, dos meses e dos dias, dos quais cada um tem seu tempo próprio no presente eterno do ano.

O mundo do epos tem por dimensão própria o ’’há’’: há.... há... Sem ligação sintática. Tudo se enumera segundo a ordem dos lugares justapostos no espaço ou segundo o antes e o depois, regiões de um tempo sem tensão. O epos exclui toda teleologia: O Si preexiste a seus atos e sua ação escapa à inquietude do tempo. Há portanto uma temporalidade épica. Emil Staiger soube descobri-la no fundo da questão de lugar que o herói épico jamais deixa de colocar a cada novo encontro: de onde és? «O poeta épico pergunta: de onde? A questão revela a dimensão cujo ser lírico que se confia ele mesmo ao fluxo do tempo não tem conhecimento. Pois só posso perguntar «de onde?» se existe um «aqui» fixo, como o «aqui» inversamente se determina pelo que se sabe do «de onde». A resposta à questão ancora o que faz problema em seu fundo. O fundo é o passado que, fechado sobre si, está em repouso e não pode mais mudar. É pela relação a este passado que o questionador deve se situar ele mesmo. Também se constitui a relação de oposição na qual o questionador assim como o questionado adquirem uma posição fixa». Situado em relação ao tempo, o homem épico pode tomar posição. «A interrogação sobre o passado pertence ao ato mais essencial do homem épico: ele funda». Pode-se portanto dizer «isto é». Ora o ouvinte-espectador está em uma mesma relação às figuras do mundo épico que, no epos ele mesmo, o questionador e o questionado. A seu aqui-presente responde não um ’’lá’’ mas o ’’aqui-passado’’ destas figuras que o epos presentifica. «O poeta épico, escreve Staiger, não se afunda no passado interiorizando-o em lembrança como o lírico; mas seu pensamento se reúne em memória e nesta reunião a distância temporal assim como espacial é mantida». A distância espacial é distância ao objeto, quer dizer às figuras que são os polos desta reunião. O espectador não se identifica com elas. Não somente sua grandeza, mas o estilo representativo do epos o interdita. Eles permanecem com efeito à distância. Mas sua distância é paradoxal. Ela exclui toda perspectiva. O público do epos não está presente a suas figuras no modo intencional de sua consciência atual ou histórica. Ele as percebe a partir delas mesmas através de suas próprias formas, que são, identicamente, não somente o objeto mas as estruturas mesmas de sua presença.