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quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Amnésia, amnésia
Nosso parceiro de site, Antonio Carneiro  , nos faz lembrar, uma citação de Annick de Souzenelle  , em Souzenelle Ressonâncias Bíblicas, que diz:

É necessário, portanto, entrar em ressonância conosco mesmo, com a Imagem divina que é o “Filho do Homem”, estéril em nós enquanto estivermos no esquecimento dele e de sua exigência de crescimento.

Mitologia
Mircea Eliade   História das Crenças e das Ideias Religiosas

A amnésia (ou seja, o esquecimento da própria identidade), o sono, a embriaguez, o entorpecimento, a prisão, a queda, a saudade, alinham-se entre os símbolos e imagens especificamente gnósticos  , embora não sejam criação dos mestres da Gnose. Ao voltar-se para a Matéria e ao desejar conhecer os prazeres do corpo, a alma esquece a sua própria identidade. "Esquece a sua morada de origem, o seu verdadeiro centro, o seu ser eterno." A mais dramática e comovente apresentação do mito gnóstico da amnésia e da anamnese encontra-se no Hino da Pérola, conservado nos Atos de Tomé. Um príncipe chega do Oriente para procurar no Egito "a pérola inigualável, que se acha no meio do mar, cercada pela serpente de sonoro sibilo". No Egito, ele é capturado pelos nativos da região. Dão-lhe iguarias para comer, e o Príncipe esquece a própria identidade. "Esqueci-me de que era filho de rei e servia o rei deles; esqueci-me da pérola pela qual meus pais me tinham enviado e pelo peso do alimento caí em profundo sono." No entanto, os pais do príncipe souberam o que lhe havia acontecido e escreveram-lhe uma carta. "Desperta e levanta-te do teu sono, e ouve as palavras da nossa carta. Lembra-te de que és filho de rei. Vê em que servidão caíste. Recorda-te da pérola pela qual foste enviado ao Egito." A carta voou como uma águia, desceu sobre ele e converteu-se em palavras. "Ao ouvir-lhe a voz e o sussurro, acordei e saí do meu sono. Apanhei:a, beijei-a, quebrei-lhe o lacre e a li (...). Lembrei-me de que nascera de pais reais (...), Lembrei-me da pérola pela qual fora enviado ao Egito e pus-me a encantar a serpente de sonoros sibilos. Encantando-a, fi-la adormecer, e depois pronunciei sobre ela o nome de meu pai; arranquei a pérola e preparei-me para retornar à casa de meu pai."

Trata-se do mito do "Salvador salvo", Salvator salva-tus, na sua versão mais feliz. Acrescentemos que, para cada motivo mítico, encontram-se paralelos nos diferentes textos gnósticos. É fácil compreender o sentido das imagens. Tanto o Mar como o Egito são os símbolos comuns do mundo material em que se viram presos a alma do homem e o Salvador enviado para libertá-la. Ao descer das regiões celestes, o herói abandona a sua "veste de glória" e enfia a "veste imunda", para não se distinguir dos habitantes da terra; é o "envoltório carnal", o corpo em que ele se encarna. Em certo momento da sua ascensão, é acolhido por causa da sua gloriosa veste de luz, "semelhante a ele próprio", e compreende que esse "duplo" é o seu verdadeiro Eu. O encontro com o seu "duplo" transcendente lembra a concepção iraniana da imagem celeste da alma, a daênâ, que se depara ao defunto no terceiro dia depois da sua morte (cf. tomo I, vol. 2, pp. 169 s–ž 265). Como observa Jonas, a descoberta desse princípio transcendental no interior do Próprio Eu constitui o elemento central da religião gnóstica.

O tema da amnésia ocasionada por uma imersão na "Vida" (= a Matéria) e da anamnese obtida pelos gestos, canções ou palavras de um mensageiro, encontra-se também no folclore religioso da Índia medieval. Uma das lendas mais populares relata a amnésia de Matsyendranâth. Esse mestre iogue tomou-se de amores por uma Rainha e instalou-se em seu palácio, esquecendo-se completamente da própria identidade, ou, segundo outra variante, caiu prisioneiro das mulheres "na terra de Kadali". Ao saber que Matsyendranâth estava preso, o seu discípulo, Goraknâth, apresenta-se diante dele, sob a forma de uma bailarina, e põe-se a dançar, cantando canções enigmáticas. Pouco a pouco, Matsyendranâth vai recordando-se da sua verdadeira identidade: compreende que a "via carnal" conduz à morte, que o seu "esquecimento" era, no fundo, o esquecimento da sua natureza verdadeira e imortal e que os "encantos de Kadali" representam as miragens da vida profana. Goraknâth explica-lhe que foi a deusa Durgâ quem provocou o "esquecimento" que quase lhe custou a imortalidade. Esse sortilégio, acrescenta Goraknâth, simboliza a eterna maldição da ignorância lançada pela "Natureza" (i.e., Durgâ) sobre o ser humano.

As "origens" desse tema folclórico datam da época dos Upanixades  . Deve-se lembrar o apólogo da Chandogya   Upanixade (o homem capturado pelos ladrões e levado para longe da sua cidade, de olhos vendados) e o comentário de Sankara  : os ladrões e a venda representam a ignorância e a ilusão; quem lhe retira a venda é o Mestre que lhe revela o verdadeiro conhecimento; a sua casa, para onde consegue voltar, simboliza o seu Atman, o Eu, idêntico ao Ser absoluto, Brahman. O Samkhya-Yoga apresenta uma formulação similar: o Eu (Purusha) é por excelência um "estranho", que não tem a menor relação com o Mundo (Prakriti). Tal como para os gnósticos, o Eu (o Espírito, o pneüma) "é solitário, indiferente, simples espectador inativo" no drama da vida e da história.

As influências, num ou noutro sentido, não estão excluídas; contudo, é mais provável que estejamos às voltas com correntes espirituais paralelas, que se desenvolvem a começar das crises deflagradas vários séculos antes, na Índia (os Upanixades), na Grécia e no Mediterrâneo oriental (o Orpheus - orfismo e o Pitagoras - pitagorismo), no Irã e no mundo helenístico. Muitas imagens e metáforas utilizadas pelos autores gnósticos têm uma história, até mesmo uma pré-história, veneráveis, e uma enorme difusão.