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Ming

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

MING E XING
O Laozi   descreve no capítulo 16 [1], em síntese, o processo mental que seguiam os antigos chineses na transformação em Harmonia do conflito Xing-Ming: de certo modo é uma anulação da morte pela total indiferença à desintegração corporal. Não se trata, no taoismo puro, de procurar a imortalidade física sobre a terra. Esse foi o propósito, é bem verdade, de certas linhas mais populares de um taoismo deformado, dito religioso (Daojiao); no taoismo filosófico (Daojia), o que se busca é evitar o apego ao que forçosamente sofrerá mutações.

A palavra chave desse trecho extremamente sintético e críptico é Ming, caráter que associa o pictograma Sol (Ri) ao de Lua (Yuè) ("Signo de associação sugestiva", segundo Haroldo de Campos, em Ideograma, que cita Eisenstein, para quem o princípio de formação desse tipo de signos se denominaria copulativo ou combinatório. .. "o seu resultado não é uma simples soma, porém um produto, um valor de outro grau" - Ideograma, pg. 41). O Sol — melhor dizendo, sua essência - é o Yang máximo que se manifesta no Universo: é o princípio ativo da luz: a luz e o calor em conjunto A Lua é o emblema da luz sob o invólucro Yin: claridade fria, que só existe por reflexo; existe em consequência de um estado receptivo (Jing) que possibilitou a ação do sol. De um lado, pois, temos Ação (Yang); de outro, Absorção (Yin).

A metáfora que exprime Ming é a Luz Total, Conhecimento Superior que se atinge através do produto harmônico da inter-relação da Essência Yang e da Energia Yin na mente do indivíduo: Receber a Luz Total equivale a Conhecer a Permanência, isto é, transcender a noção do tempo. Em síntese, o Destino (Ming) do indivíduo (= o seu Yin) deixa de seguir a linha horizontal e retorna ao ponto imutável onde se acha Xing (= o seu Yang).

Em suma, o indivíduo que penetra nas profundezas do segredo da criação anula a primazia da sequência giratória do Céu Posterior, reconduzindo a linha Yang do trigrama Kan (Água) à sua posição inicial na sequência do Céu Anterior: ele transmuta, desse modo, o Fogo em Qian (trigrama do Yang puro). Por sua vez, em consequência do deslocamento da linha Yang para o zênite do diâmetro do círculo, a linha Yin em Fogo vai passar para o nadir do mesmo diâmetro, onde ela se situava originalmente, antes da criação da dimensão temporal dos fenômenos: Kan (Água) volta a ser Kun (Yin puro).

Todo o processo mental de retorno à sequência inicial das forças das mutações (de que os trigramas são os emblemas) tem uma só chave: 0 REC0NHECIN7ENT0, PELO INDIVÍDUO, DAS LEIS NATURAIS DO DAO. O centro imutável do círculo é Wuwu — o Não-Ser do Não-Ser — estado de vazio absoluto que, porque é assim, não age mas só reage, sem incorporar, entretanto, a causa da reação (Wuwu não tem contrapartida: é apenas potencialidade de contrapartidas). Ora, a Tranquilidade Receptiva (Jing) é a característica do Não-Ser do Não-Ser — é a raiz das causas. Todo indivíduo recebe o Tao - Dao integral sob a forma de centelha. Assim, é a partir da descoberta, no inconsciente profundo, da existência da centelha de Wuwu que começa a anulação do tempo. Estar no tempo poderia ser interpretado como pretender mudar a Natureza básica do indivíduo. Não estar no tempo, seria, pois, reagir sem agregar a causa da reação, para não tentar introduzir a aparência das criações no que, essencialmente, não é. O estado de Tranquilidade Receptiva (Jing) é como um espelho, que só reflete o que tem diante de si e permanece "Luz de si própria" [2], quando o objeto refletido se afasta do ponto em que o reflexo é possível.

Quando o indivíduo restaura, em si próprio, as Essências ao ponto primitivo que ocupavam na sequência do Céu Anterior, restabelece-se a possibilidade de inter-relação entre Yang e Yin diretamente sobre o diâmetro do círculo. Essa possibilidade está perdida no Céu Posterior (plano temporal dos fenômenos), onde a relação se faz no sentido giratório do relógio do tempo. Assim, no Céu Anterior, Yang (trigrama Qian = o Sol) relaciona-se diretamente com Yin (Kun = lua); no Céu Posterior, tal não é possível.

Atingindo — ou re-atingindo — o estado de Tranquilidade Receptiva, a mente deixa de procurar agir, retorna ao Vazio Absoluto (Xu Ji), o Não-Ser do Não-Ser, que fora sua verdadeira origem. . . Ora, a Lei do Tao - Dao é que sobre Yin age Yang: portanto, se, através do Repouso de Jing, o indivíduo faz o Destino (Ming) regredir ao ponto de encontro com Xing (Natureza de base), o tempo não terá mais ação sobre o Destino YANG VAI RELACIONAR-SE COM O YIN PURO RECOMPOSTO NO PRÓPRIO INCONSCIENTE INDIVIDUAL e entre os dois polos criar-se-á uma Harmonia (He) que se traduz pelo conceito de Ming (Luz Total: Yang jorra sua luz em Yin, que brilhará por reflexo).

Não é talvez arbitrário que o caráter para Ming (Destino) se componha de um indivíduo ajoelhado sob um triângulo (Yin, Yang e a Harmonia — He — de sua conjunção) e ao lado do pictograma boca: a verdadeira vocação do destino individual expressa-se pela submissão à tríade, caminho de volta à Unidade do Grande Começo de que fala o Zhuangzi.

Igualmente talvez não seja fortuito que Ming (Destino individual) e Ming (Luz Total) se pronunciem do mesmo modo, apenas com diferença tonai: Destino, em tom descendente; Luz Total, em tom ascendente [3].

Num sentido amplo, Xing constitui a matéria básica do ser humano e engloba suas emoções (Qing) [4]. Entretanto, a emoção é uma característica perigosa do indivíduo criado: é através dela que se confunde a posição da linha Yang no trigrama Kan (Água) e da linha Yin em Li (Fogo). Como todo o resto, a emoção tem dois planos: um relativo, consciente, em que ela tende a ser Yang, isto é, agir dinamicamente, e, então, será o fator que levará a desenvolver Ming (Destino) na linha horizontal do tempo e outro, inconsciente profundo, sua vocação natural, no qual permanecerá em quietude (Yin), apenas respondendo (Ying) a impulsos externos ao ser, sem incorporar-lhes as causas. Nesse caso, a emoção deixará de promover mutações temporais, pois estará adequada à lei das impermanências e preencherá sua função sem obscurecer a natureza básica do ser criado.

Do exposto, uma constatação parece estar bastante evidente: a importância fundamental, para a China, do inter-relacionamento entre os elementos do Universo manifesto. Nenhum indivíduo é autossuficiente: para realizar-se, a personalidade deve refletir-se e deixar refletir em si o duplo que lhe serviu de apoio — um sutil jogo de Yin de Yang, alternado entre sujeito e objeto, a fim de conseguir-se a Harmonia da Tríade. Quer se conscientize tal fato ou não, a necessidade de relação permanece para cada um pois tudo está vivo à sua maneira e a Raiz é a mesma.

Para o homem, a conjunção natural imediata encontra-se dentro da própria humanidade, embora, ao mesmo tempo, ele não possa prescindir do macrocosmo pois a "integralidade é a suprema norma que rege a estrutura formal dos seres" [5]. O relacionamento entre dois humanos, entretanto, é sempre delicado pois se no profundo do inconsciente a Essência que os une é idêntica, a superficialidade do plano consciente transformado por simbolismos colhidos em relatividades constitui um bloqueio da Harmonia almejada.

Assim, na antiga China, a fusão de identidades fazia-se através do produto direto do inconsciente humano: a ARTE. No sublime universal de uma obra-prima autêntica estampa-se, sem lugar para enganos, a Centelha Universal do Tao - Dao. Pela Arte, o homem cria à maneira do Absoluto; é a transmissão da Realidade Última, que pode ser reconhecida e entrar em processo de fusão com quem a contempla:... "diante da arte, a atenção desfaz-se e o pensamento cessa de deliberar, para responder espontaneamente à solicitação todo-poderosa da imagem" [6].

Diante dessa presença essencial, desfaz-se tudo o que é exterior à Joppert   Centelha - Centelha do Absoluto (Shen): o homem, eliminando as barreiras que, paradoxalmente, lhe cria a própria inteligência, deixa-se levar por intuição simpática (SHENHUI), que é consonância universal. . . [7].


Observações

[1Laozi Cap. 16 - Tradução analítica
Quando se chega ao Vazio Absoluto
Deve conservar-se sólida a Tranquilidade Receptiva (estado Yin),
Os dez mil seres produzem-se da mesma maneira
E é através da contemplação (da mesma identidade original) em todos
Que posso discernir (o meio de) voltarem (ao Tao - Dao),
Pois, apesar de inumeráveis, cada um dos seres retorna à
Raiz...
Retornar à Raiz equivale a conservar a Tranquilidade
Receptiva
E conservar a Tranquilidade Receptiva
Equivale a Reconduzir o Destino (a seu ponto de início);
Reconduzir o Destino equivale a atingir a Permanência (fora do tempo),
Conhecer a Permanência equivale a receber a Luz Total,
Não conhecer a Permanência
É frivolamente desgraçar-se;
Conhecer a Permanência é poder abranger (todas as individualidades),
Abranger é ser como um pai (protetor),
Ser como um pai (Pai =Gong, sentido primitivo do ideograma nos ossos divinatórios da dinastia Shang-Yin (-1557 a -1050), onde a forma sugere uma interpretação fálica (emblema do ancestral masculino). Cf. Karlgren, Grammata Serica Recensa, entrada 1173 a-f) é saber governar,
Saber governar é ser como o Céu (que a todos cobre),
Ser como o Céu é ser como Tao - Dao,
Ser como Tao - Dao equivale a durar;
Diluir a individualidade no Absoluto
É a única posição sem perigos.

[2Luz Incubada - Bao Guang, cf. Zhuangzi, cap. 2.

[3Cf. Karlgren, op. cit. entradas 760 e 762.

[4Cf. O Alicerce Cultural da China, pg. 189

[5Cf. LIEZI. cap. 5.

[6Cf. Raymond Bayer, citado poi Nicole Vandier-Nicolas em Art et Sagesse en Chine - Mi-Fou.

[7SHENHUI - Compreensão da Centelha Universal presente em cada indivíduo - forma de contemplação estética chinesa, que abordaremos adiante.