Página inicial > Sophia Perennis > palavra

palavra

terça-feira 30 de abril de 2024

  

VIDE vak

Se a origem da fala e, por conseguinte, das línguas se perde na noite dos tempos, a psicologia, as lendas tradicionais e a etimologia podem, por várias razões, fornecer-nos alguma luz sobre a mecânica de seu simbolismo.

A psicologia do homem falante é sempre acessível em estado nascente, ainda que a partir de nós mesmos. J.- B. Vico e G. Humboldt  , que trataram da questão, julgavam, segundo a sua própria experiência de escritores em busca de termos capazes de expressar o seu pensamento, que anteriormente a toda articulação verbal existia uma força interior, uma pulsão onde enxergavam a fonte de todas as metáforas e que era a forma arcaica e embrionária da teoria do gesto.

Convém analisar o mecanismo cuja intuição manifestava esse pressentimento, e ele nos instruirá sobre a maneira pela qual a palavra, sob o estímulo do que chamamos ideia, apresenta-se ao nosso espírito. Consideremos a ideia de árvore e perguntemo-nos como foi ela formulada. Os primitivos só se preocupavam com seres e coisas no meio dos quais viviam, na medida em que isso dizia respeito às suas necessidades. Os jardineiros da pré-história distinguiam perfeitamente o freixo, a bétula, o carvalho e o pinheiro, pois utilizavam para diferentes finalidades sua madeira, sua casca, sua semente e suas folhas. Uma palavra precisa correspondia a cada liso particular, sem que ninguém houvesse experimentado a necessidade de reunir todas as essências arborícolas na abstração de um só vocábulo.

Só depois de um lapso de tempo provavelmente bastante longo, os inovadores, menos comprometidos num trabalho especializado, mais sensíveis talvez ao aspecto estético da floresta, conceberam a ideia geral da árvore em si. Como lhes teria ela surgido? E por que a confusão da parte dos homens de outras profissões? Teria sido ela inspirada na própria expansão dos troncos, o desabrochar confuso das frondes, ou pelo conjunto dessas semelhanças?

Ajudando-nos a responder essas questões, tentemos captar a impressão que desperta em nós, como deve ter atuado sobre nossos antepassados a elevada estatura de um carvalho e, além dessa imagem isolada, a de toda uma antiga floresta. Alguma coisa de mais íntimo, de mais intenso, de mais geral nos impressiona de chofre, um poder irresistível de ereção, uma tensão vital inesgotável e subjacente, que acreditamos sentir em nós por simpatia. Isso explicaria que no indo-europeu a raiz "dreu", firme e vigoroso, tenha podido dar em grego os nomes do carvalho, da árvore, do homem fiel. "Assim como a árvore, rainha da floresta, assim é o homem", dizem os Upanixades  . (em português, a analogia é prejudicada pelo fato de ser árvore uma palavra feminina, enquanto no original a ereção do masculino "arbre" é mais concebível... Pensemos no tronco da árvore e transformemos o contexto. N.T.)

Nicole já havia notado que um espectador de fora é por dentro um ator secreto. Esse ator das origens, que primeiro reuniu na mesma sílaba "dreu" a ideia de carvalho, do gênio da floresta e do homem íntegro, mostra-nos que as palavras não têm valor fixo e exclusivo, mas satisfazem a um emprego. O criador da palavra procede como um caricaturista, que só retira das aparências múltiplas de seu modelo um único traço, suficientemente original, para tipificá-lo, mas o faz de maneira bastante genérica para que ele seja sentido e interpretado por todo o mundo. Se o gesto é bem escolhido, será tão revelador quanto um teste, e os psicólogos aí descobrirão a síntese de um caráter, a assinatura movente e comovente de um tipo do qual poderá tornar-se o símbolo.

Começamos a compreender aquilo que Humboldt entendia por sua misteriosa pulsão original. É o preâmbulo do gesto, o início de uma mímica inconsciente que nossos músculos delineiam e que emprestamos às coisas, quando na realidade foram elas que nos sugeriram o seu movimento. A palavra simbólica, que reúne essas duas noções contagiosas, representa o papel de um verbo. Com ele nós encontramos o aspecto mais elementar dessa história do gesto, na qual René Guénon enxergava a verdadeira chave do simbolismo.

Encarada na sua concepção mais vasta, a teoria do gesto postula a reintegração da continuidade em todos os níveis de um mundo que a física quântica apresenta como dominado pelo descontínuo. Restabelece um laço de solidariedade virtual entre estados separados, sobretudo quando o gesto inicial se transforma em ritmo pela sua própria repetição. Pois a atividade, imediata por definição, produz seus efeitos de maneira sucessiva e só escapa ao provisório graças ao ritmo, que comanda os gestos, os ritos e os símbolos.

Há identidade, nos diz Guénon, entre o símbolo e o rito. Não apenas porque o rito é um símbolo realizado no tempo, mas porque, em contrapartida, o símbolo gráfico a fixação de um gesto ritual. A palavra representa um exemplo bem mais puro, se lembrarmos que toda fala ritual é geralmente pronunciada por uma personagem consagrada, cuja qualificação não depende de sua individualidade, mas de sua função, o que define igualmente, como já vimos, o trabalho do ator e o papel da palavra. [Benoist  ]


Ver online : René Guénon