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ponte

terça-feira 30 de abril de 2024

  

Parte-se de um estudo de Dona Luisa Coomaraswamy sobre a ponte, no qual ela insiste em particular sobre um ponto que mostra a estreita relação desse simbolismo com a doutrina do sutratma. Trata-se do sentido original da palavra setu, que é o mais antigo dos termos sânscritos para designar a ponte e o único que se encontra no Rig-Veda  . A palavra setu, derivada da raiz si, "atar", "prender", significa essencialmente uma "ligação"; e, de fato, a ponte deitada sobre um rio é o que liga as margens entre si. Além dessa observação geral, no entanto, o termo implica alguma coisa muito mais precisa. É necessário imaginar a ponte constituída primitivamente por linhas, que é o modelo natural mais ortodoxo, ou por uma corda fixada da mesma forma, por exemplo em árvores que crescem sobre as duas margens, parecendo assim de fato "presas" entre si pela corda. As duas margens representam simbolicamente dois estados diferentes do ser, o que torna evidente que a corda em tal caso é a mesma coisa que o "fio" que une esses estados entre si, isto é, o próprio sutratma. O caráter de tal ligação, ao mesmo tempo fina e resistente, é também a imagem adequada de sua natureza espiritual. Por isso a ponte, também assimilada a um raio de luz, é com frequência descrita em termos tradicionais como sendo tão estreita quanto o fio de uma espada, ou ainda, se for feita de madeira, como sendo formada de uma só viga ou de um único tronco de Árvore (v. beam). Essa estreiteza torna evidente ainda o caráter "perigoso" do caminho em questão, que é aliás o único possível, mas que nem todos têm êxito em percorrê-lo, sendo mesmo bem poucos aqueles que o conseguem sem ajuda e com seus próprios meios (trata-se de um privilégio dos "heróis solares" nos mitos e contos em que aparece a passagem da ponte), pois há sempre um certo perigo na passagem de um estado a outro. Isso se relaciona no entanto ao duplo sentido, "benéfico" e "maléfico", que a ponte representa, assim como muitos outros símbolos

A ponte equivale de forma exata ao pilar axial que une o Céu e a Terra, sem deixar porém de mantê-los separados; e é por causa dessa significação que a ponte deve ser essencialmente concebida como vertical, do mesmo modo que os demais símbolos do "Eixo do Mundo", por exemplo o eixo do "cano cósmico", quando as suas duas rodas representam também o Céu e a Terra. Isso também estabelece a identidade fundamental do simbolismo da ponte com o da escada. Assim, a passagem da ponte nada mais é, afinal, que o percurso do eixo, o único meio que une de fato os diferentes estados entre si. A margem de partida (v. margens) é este mundo, ou seja, o estado em que se encontra no presente o ser que deve percorrê-la; e a margem à qual ele chega, depois de ter atravessado os outros estados de manifestação, é o mundo do princípio. Uma das margens é o domínio da morte, onde tudo está submetido à mudança, e a outra, o domínio da imortalidade.

Lembramos há pouco que o eixo, ao mesmo tempo, liga e separa o Céu e a Terra. Da mesma maneira a ponte, que é na realidade o caminho que une as duas margens e permite passar de uma à outra, também pode ser, num certo sentido, como que um obstáculo colocado entre elas. E isso nos reconduz ao seu caráter "perigoso". Este, aliás, também está implicado na significação da palavra setu, que é uma ligação com dupla acepção: de um lado, é o que reúne duas coisas entre si, mas também, de outro, é um entrave no qual um ser se encontra preso. Uma corda pode servir igualmente a esses dois fins, e a ponte aparecerá assim sob um dos dois aspectos, isto é, como "benéfica" ou "maléfica", de acordo com o fato de o ser conseguir ou não transpô-la. Pode-se notar que o duplo sentido da ponte resulta ainda de poder ser percorrida nas duas direções opostas, embora só deva ser atravessada numa única direção, que vai "desta margem" para "a outra", enquanto que toda volta constitui um perigo a evitar, salvo no caso único do ser que, estando já libertado da existência condicionada, pode desde então "mover-se à vontade" através de todos os mundos, e para o qual esse retorno não passa de uma aparência puramente ilusória. Nos demais casos, a parte da ponte já percorrida deve normalmente ser "perdida de vista" como se não existisse mais, do mesmo modo que a escada simbólica é sempre considerada como tendo seu pé no próprio domínio em que se encontra atualmente o ser que sobe por ela, enquanto que sua parte inferior desaparece para ele à medida que efetua sua ascensão. Se o ser ainda não alcançou o mundo do princípio, de onde poderá a seguir tornar a descer na manifestação sem ser afetado de modo algum, a realização só pode de fato realizar-se no sentido ascendente. E para aquele que se ligasse ao caminho, pelo caminho em si, tomando assim o meio pelo fim, esse caminho se tornaria um verdadeiro obstáculo, ao invés de conduzi-lo efetivamente à libertação, o que implica uma destruição contínua dos laços que ligam aos estados já percorridos, até que o eixo seja por fim reduzido ao ponto único que contém tudo o que é o centro do ser total.

As figurações da ponte variam segundo sejam ou não assimiladas ao arco-íris, e, a esse respeito, poderíamos perguntar se não existe entre a ponte retilínea (v. reto caminho) e a ponte em arco, ao menos em princípio, uma diferença de significação que corresponde de certa forma à mesma existente entre a escada vertical e a escada em espiral, diferença esta equivalente à do caminho "axial", que leva diretamente o ser ao estado primordial, e do caminho mais "periférico", que implica a passagem diversa através de uma série de estados hierarquizados, ainda que em ambos os casos a meta final seja necessariamente a mesma. [Guénon]


Ver online : René Guénon