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magia

terça-feira 30 de abril de 2024

  

A confusão da iniciação com o misticismo se deve sobretudo ao fato daqueles que, por razões quaisquer, querem negar mais ou menos expressamente a realidade da própria iniciação reduzindo-a a algo diferente; por outro lado, nos meios que têm, ao contrário, pretensões iniciáticas injustificadas, como os meios ocultistas, tem-se a tendência de considerar como formando parte integrante do domínio da iniciação, inclusive a constituindo essencialmente, uma multidão de coisas de outro gênero que, elas também, são-lhe completamente estranhas, e entre as quais a magia ocupa o mais frequentemente o primeiro lugar. As razões deste equívoco são também, ao mesmo tempo, as razões pelas quais a magia apresenta perigos especialmente graves   para os ocidentais modernos, o primeiro dos quais é sua tendência a atribuir uma importância excessiva a tudo o que são «fenômenos», como dá testemunho disso por toda parte o desenvolvimento que deram às ciências experimentais; se são seduzidos tão facilmente pela magia e, iludindo-se até tal ponto sobre seu alcance real, é porque a magia é também uma ciência experimental, embora bastante diferente, certamente, daquelas que o ensino universitário conhece sob esta denominação. Assim, é mister não se enganar a seu respeito: nisso se trata de uma ordem de coisas que não tem em si mesma absolutamente nada de «transcendente»; e, se uma ciência como tal pode ser legitimada, como toda outra, por sua vinculação aos princípios superiores dos quais tudo depende, segundo a concepção geral das ciências tradicionais, não obstante, ela não se colocará então mais que na última fila das aplicações secundárias e contingentes, entre aquelas que estão mais afastadas dos princípios e que, por conseguinte, devem ser consideradas como as mais inferiores de todas. É assim como a magia é considerada em todas as civilizações orientais: que existe nelas, é um fato que não há motivo para dúvida, mas está muito longe de ser tida em tanta honra como se imaginam muito frequentemente os ocidentais, que emprestam tão prazerosamente a outros suas próprias tendências e suas próprias concepções. No próprio Tibete, tanto quanto na Índia ou na China, a prática da magia, enquanto «especialidade», caso se possa dizer assim, é abandonada àqueles que são incapazes de se elevarem a uma ordem superior; isto, bem entendido, não quer dizer que outros não possam produzir também, às vezes, excepcionalmente e por razões particulares, fenômenos exteriormente semelhantes aos fenômenos mágicos, mas o propósito e, inclusive, os meios postos em obra são então completamente diferentes na realidade. Além disso, para se ater ao que se conhece no próprio mundo ocidental, somente se deverá tomar histórias de Santos e de bruxos, e ver quantos feitos similares se encontram por uma parte e pela outra; e isso mostra bem que, contrariamente à crença dos modernos «cientificistas», os fenômenos, quaisquer que sejam, não poderiam provar absolutamente nada por si mesmos.

Agora, é evidente que o fato de se iludir sobre o valor destas coisas, e sobre a importância que convém lhes atribuir, aumenta grandemente seu perigo; o que é particularmente penoso para os ocidentais que querem se meter a «fazer magia», é a ignorância completa em que estão necessariamente, no estado atual das coisas e na ausência de todo ensino tradicional, daquilo com o que tratam em parecido caso. Inclusive deixando de lado os prestidigitadores e os enganadores, tão numerosos em nossa época, que não fazem em suma nada mais que explorar a credulidade dos ingênuos, e também os simples fantasiosos que acreditam poder improvisar uma «ciência» à sua maneira, aqueles mesmos que querem tentar seriamente estudar esses fenômenos, ao não terem dados suficientes para lhes guiar, nem organização constituída para lhes apoiar e lhes proteger, são reduzidos por isso a um empirismo muito grosseiro; atuam verdadeiramente como meninos que, liberados a si mesmos, querem dirigir forças temíveis sem conhecer nada delas e, se de semelhante imprudência resultam muito frequentemente acidente deploráveis, certamente não há lugar para se surpreender muito com isso.

Ao falar aqui de acidentes, queremos fazer alusão sobretudo aos riscos de desequilíbrio aos quais se expõem aqueles que atuam assim; este desequilíbrio é efetivamente uma consequência muito frequente da comunicação com o que alguns chamaram o «plano vital» e que não é suma outra coisa que o domínio da manifestação sutil, considerada, sobretudo, além do mais, naquelas de suas modalidades que estão mais próximas da ordem corporal, e por isso mesmo as mais facilmente acessíveis ao homem ordinário. A explicação disso é simples: nisso se trata exclusivamente de um desenvolvimento de algumas possibilidades individuais e, inclusive, de um ordem bastante inferior; se este desenvolvimento se produzir de uma maneira anormal, desordenada e inarmônica, e em detrimento de possibilidades superiores, é natural, e em certo modo inevitável, que deva desembocar em tal resultado, sem falar sequer das reações, que tampouco são desdenháveis e que às vezes são, inclusive, terríveis, das forças de todo gênero com as quais o indivíduo fica em contato tão inadvertidamente. Dizemos «forças», sem procurar precisar mais, já que isso importa pouco para o que nos propomos; preferimos aqui esta palavra, por vaga que seja, à de «entidades», que, ao menos para aqueles que não estão suficientemente habituados a algumas maneiras simbólicas de falar, corre o risco de dar lugar muito facilmente a «personificações» mais ou menos fantasiosas. Além disso, como já o explicamos frequentemente, este «mundo intermediário» é muito mais complexo e mais extenso que o mundo corporal; mas, o estudo de um e do outro entra, sob o mesmo título, no que se pode chamar de «ciências naturais», no sentido mais verdadeiro desta expressão; querer ver nisso algo mais é, repetimo-lo, iludir-se da mais estranha maneira. Nisso não há absolutamente nada de «iniciático», como tampouco, além disso, de «religioso»; de uma maneira geral, encontram-se inclusive muitos mais obstáculos que apoios para chegar ao conhecimento verdadeiramente transcendente, que é muito diferente dessas ciências contingentes e que, sem nenhum rastro de um «fenomenismo» qualquer, não depende mais que da intuição intelectual pura, a única que é também a espiritualidade pura.

Alguns, depois de se dedicarem mais ou menos tempo a esta busca dos fenômenos extraordinários, ou supostos como tal, acabam não obstante por cansar-se dela, por uma razão qualquer, ou por estarem decepcionados ante a insignificância dos resultados que obtêm e que não respondem a sua expectativa e, coisa bastante digna de nota, ocorre frequentemente que esses se voltam, então, para o misticismo; é que, por surpreendente que isso possa parecer à primeira vista, este responde também, embora sob uma forma diferente, a necessidades ou a aspirações similares. Certamente, estamos bem longe de responder que o misticismo tenha, em si mesmo, um caráter notavelmente mais elevado que a magia; mas, apesar de tudo, indo até o fundo das coisas, qualquer um pode se dar conta de que, sob certa relação ao menos, a diferença é menor do que se poderia acreditar: efetivamente, aí também, não se trata, em suma, mais que de «fenômenos», visões ou outros, manifestações sensíveis e sentimentais de todo gênero, com as quais sempre se permanece exclusivamente no domínio das possibilidades individuais. Quer dizer, que os perigos de ilusão e de desequilíbrio estão longe de terem sido transcendidos e, se revestirem aqui com formas bastante diferentes, talvez não sejam menores por isso; e, num sentido, estão inclusive agravados pela atitude passiva do místico que, como o dizíamos mais atrás, deixa a porta aberta a todas as influências que podem se apresentar, enquanto que o mago está pelo menos guarnecido, até certo ponto, pela atitude ativa que se esforça em conservar a respeito dessas mesmas influências, o que não quer dizer, certamente, que o obtenha sempre e que não acabe muito frequentemente por ser submerso por elas. Daí vem também, por outra parte, que o místico, quase sempre, é muito facilmente enganado por sua imaginação, cujas produções, sem que o suspeite, vêm frequentemente se mesclar aos resultados reais de suas «experiências» de uma maneira quase inextricável. Por esta razão, é necessário não exagerar a importância das «revelações» dos místicos ou, pelo menos, nunca devem ser aceitas sem controle; o que constitui todo o interesse de algumas visões, é que estão em acordo, sobre numerosos pontos, com dados tradicionais evidentemente ignorados pelo místico que teve essas visões; mas seria um engano, e inclusive uma inversão das relações normais, querer encontrar nisso uma «confirmação» desses dados que, por outra parte, não têm nenhuma necessidade disso e que são, pelo contrário, a única garantia de que há realmente nessas visões outra coisa que um simples produto da imaginação ou da fantasia individual. [Guénon AI]


Um resultado extremamente surpreendente da pesquisa contemporânea sobre esse assunto foi a descoberta da função importante que a magia e o esoterismo hermético exerceram, não só durante a Renascença italiana, mas também como fator de influência no triunfo da nova astronomia de Copérnico, ou seja, da teoria heliocêntrica do sistema solar. Num livro recente, Giordano Bruno   and the Hermetic Tradition, Frances A. Yates   analisou de maneira brilhante as profundas implicações que o entusiasmo exaltado pelo hermetismo exerceu nesse período. Este entusiasmo revela o anseio do homem renascentista por uma revelação "primordial" que incluísse não só Moisés e Platão, mas também a Magia e a Cabala   e, mais que tudo, as religiões misteriosas do Egito e da Pérsia. O fato revela também unia insatisfação profunda com relação à Teologia medieval e com a concepção medieval do homem e do universo, uma reação contra o que podemos chamar uma civilização "provinciana", isto é, puramente Ocidental, e um anseio por uma religião universal, trans-histórica, "mítica". Durante dois séculos, o Egito e o hermetismo, ou seja, a magia egípcia e o esoterismo, obcecaram vários teólogos e filósofos - tanto os crentes quanto os céticos e os criptoateus. O fato de Giodano Bruno ter recebido entusiasticamente as descobertas de Copérnico não se deveu em primeiro lugar à sua importância científica e filosófica, mas ao fato de ter ele compreendido o profundo significado religioso e mágico do heliocentrismo. Enquanto estava na Inglaterra, Bruno profetizou a volta iminente da religião oculta dos antigos egípcios, conforme expressa em Asclepios, um texto hermético famoso. Bruno se sentia superior a Copérnico, porque, enquanto o último via sua teoria exclusivamente do ponto de vista matemático, o primeiro podia interpretar o diagrama celestial de Copérnico como um hieroglifo dos mistérios divinos. [Eliade  ]

Ver online : René Guénon