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pessoa

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Empregar, aqui ou ali, a palavra subjetividade como faz Benveniste, quando – para explicar que apenas a primeira e a segunda pessoa são “verdadeiras pessoas”, e os pronomes correspondentes “verdadeiros pronomes pessoais” – ele diz que “ao par eu/tu pertence exclusivamente uma correlação especial” chamada (é verdade, “na falta de melhor”) “correlação de subjetividade”, “correlação que permite definir o ‘tu’ como a pessoa não subjetiva, em face da pessoa subjetiva que ‘eu’ representa (as duas ‘pessoas’ se opondo juntas à forma [101] de ‘não-pessoa’ (‘ele’)” [1], empregar com ele, digo, essa palavra “subjetividade”, e no sentido que ele lhe atribui, decorre de uma decisão filosófica que tem sua história, que é histórica e que faz história, uma decisão que é tudo menos “normal”, “natural” ou “evidente”.

Essa decisão pode ser reportada ao equacionamento de duas propriedades ou características supostas do homem em geral: a primeira, “possuir o eu na sua representação”, determinando a segunda, “ser uma pessoa”. Dizer “eu” é dizer “eu falo”, “eu sou uma pessoa”, “eu falo a alguém” (eu sou uma pessoa, como tu, a quem eu falo, ou que me fala). Não é dizer “eu sou um sujeito”. Porém, a representação de “eu” e o ser enquanto pessoa são implicados no dispositivo da subjetividade. Por quê? Porque eles são para nós... desde Kant  .

Essa implicação se encontra exemplarmente – isto é, tacitamente – em uma página notável da Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático, assim traduzida por M. Foucault  :

Possuir o Eu em sua representação: esse poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a terra (Dass der Mensch in seiner Vorstellung das Ich haben kann, erhebt ihn unendlich über alle anderen auf Erden lebende Wesen). Por isso ele é uma pessoa (Dadurch ist er eine Person); e graças à unidade da consciência em todas as mudanças que podem lhe ocorrer, ele é uma única e mesma pessoa, isto é, um ser inteiramente diferente, pela posição e pela dignidade, de coisas como são os animais sem razão, dos quais se pode dispor à vontade; e isso, mesmo quando ele não pode dizer Eu (selbst wenn er das Ich nicht sprechen kann), pois ele o tem em seu pensamento; assim todas as línguas, quando elas falam na primeira pessoa, devem pensar [102] esse Eu, mesmo que não o exprimam por uma palavra particular (ob sie zwar diese Ichheit nicht durch ein besonderers Wort ausdrücken). Pois essa faculdade de pensar é o entendimento [2].

Poder pensar o eu, ou antes, a Ichheit — a egoidade, termo diante do qual Foucault recua eis o que faz de uma língua uma língua humana, capaz de “falar na primeira pessoa”, a saber, de ser falada por qualquer um que tem o eu em sua representação. Poder falar através desse eu, durch Ich zu sprechen (mesmo se a língua que se fala não dispõe para fazer isso “de nenhuma palavra particular”), poder, em suma – ele também ou ele em primeiro lugar, em sua língua – “falar na primeira pessoa”, eis o que faz do homem um homem, mais precisamente uma “pessoa”, uma pessoa humana, um homem que é uma pessoa, a saber: aquele que diz “eu”, ou melhor, aquele que diz “o Eu”, das Ich. Todo Satz do homem, enquanto ele é o ser capaz de “falar na primeira pessoa”, é implicitamente um Ich-Satz. Todo Satz é um (Ich)-Satz. Pois ser homem é ser dotado de entendimento: a forma moderna de dizer que o homem é o ser vivo dotado de logos. Mas ser uma pessoa não basta ao “Eu”. É preciso ser uma única e mesma pessoa”: essa é a função atribuída à unidade da consciência, “em todas as mudanças que podem lhe ocorrer”.

O sujeito moderno está aí. Só falta... a palavra e a alusão a uma qualquer “subjetividade”. Tudo o que se tem é um happax legomenon: a palavra Ichheit, e uma outra, mais familiar, mas sem relação visível com a sub-jetidade: Person. Por que então falar de “subjetividade” a propósito desse manifesto da expressão da pessoa em “primeira pessoa”? Kant não diz: dadurch ist er ein Subjekt, “por isso o homem é um sujeito”, mas sim dadurch [103] ist er eine Person, “por isso ele é uma pessoa”. A explicação é óbvia: o texto da Antropologia é solidário, para Kant como para nós, à invenção kantiana da subjetividade transcendental, à introdução na Crítica e em outros textos de Subjektivität e de Subjekt. Mas, sobretudo, o sujeito está aí, escondido atrás da exigência “de unidade da consciência em todas as mudanças que podem lhe ocorrer”, que supostamente faz da pessoa que eu sou uma mesma e única pessoa: ele ocupa o lugar, a função do sujeito ontológico, a da ousia primeira de Aristóteles, cuja característica fundamental é precisamente “a aptidão a receber as pressões sendo a mesma e numericamente uma” (Cat., 6,4a10-11). Essa será, essa foi, de Aristóteles a Kant, a de todos os seus substitutos.

O sujeito pode estar oculto sob a máscara de pessoa. A palavra não faz a coisa. A coisa não faz a palavra. O que conta é a ligação sob certas palavras de certos conceitos, que ainda não têm nome ou que têm um outro, com outros conceitos que querem se associar. Person é um desses termos saturados, ou mesmo supersaturados, que presidem secretamente o nascimento do sujeito. É um intercambiador conceitual. Não é o único. Sobre a trama da sub-jetidade, o atributivismo tece, tal como uma Parca conceitual, o destino de uma família de termos com parentescos secretos: sujeito, substância, hipóstase, supósito, eu, mim, si, si mesmo, consciência, consciência de si, pessoa, indivíduo, agente, ator, actante, espírito, alma, intelecto, entendimento. Todo termo da rede é um intercambiador. [LiberaAS  :101-104]

LÉXICO: pessoa

Observações

[1Sobre tudo isso, ver E. Benveniste, Problèmes de linguistique générale, 1, pp. 228-236.

[2Cf. E. Kant, Anthropologie d’un point de vuepragmatique, p. 17. O texto, como se sabe, é constituído de aulas publicadas em 1797.